Medo e Delírio na Rota da Seda Afegã

por Pepe Escobar, em Asia Times e Blog do Alo. Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu

Será que algum dia as Novas Rotas da Seda, também conhecidas como Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE), algum dia conseguirá atravessar o Hindu Kush?

O nome do jogo é “temeridade”. Embora estrategicamente colocado a cavalo sobre a Antiga Rota da Seda, e virtualmente contíguo ao Corredor Econômico China-Paquistão (CRCP) de US$50 bilhões – nodo chave da ICE –, o Afeganistão continua atolado em guerra.

É fácil esquecer que nos idos de 2011 – antes até de o presidente Xi Jinping anunciar a ICE, no Cazaquistão e Indonésia, em 2013 – a então secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton inventou uma Rota da Seda só dela, em Chennai. Não surpreende que a visão do Departamento de Estado tenha dado com a cara na poeira do Hindu Kush –, porque pressupunha um Afeganistão destroçado pela guerra, como eixo central do plano.

O estado do jogo no Afeganistão em 2017 é ainda mais deprimente. Dizer que o governo que emergiu das eleições presidenciais de 2014 e até hoje passa por governo é disfuncional é muito pouco.

Desde 2002, Washington consumiu estonteantes US$780 bilhões em sua Operação (nunca concluída) Liberdade Duradoura. Os EUA têm absolutamente nada para mostrar como efeito gerado por aquela fortuna – além de mais de 100 mil afegãos mortos.

O muito elogiado plano do presidente Obama em 2009, de construir-nação-e-surge-de-contrainsurgência-no-mesmo-pacote foi, como se podia prever, desastre completo. À parte reenquadrar a Guerra Global ao Terror, que passou a aparecer em termos de OCO (Overseas Contingent Operations [Operações Contingentes do Além-mar]), conseguiu nada, zero. Nada de “limpar, ocupar e construir”: os Talibã estão de volta virtualmente por todos os lados.

Washington gastou cerca de US$110 bilhões na “reconstrução” do Afeganistão. Com a inflação corrigida, é dinheiro equivalente ao custo total do Plano Marshall. Mas nenhuma Frankfurt luminosa floresceu em torno do minarete Ghazni; mais de US$70 bilhões foram para os militares e a polícia afegãos; e o desperdício e a corrupção nunca deixaram de prosperar por toda parte. Ano passado, o PIB do Afeganistão ainda não passava de míseros US$17 bilhões, ou US$525 per capita.

A nova “política” afegão do governo Trump consistiu exclusivamente em lançar uma MOAB (Mãe de Todas as Bombas) no leste, que de nada adiantou, combinada com a solicitação, pelo Pentágono, de mais soldados. Liberdade Duradoura Eterna Para Sempre, com certeza.

Quer saber das minas? Consulte os Talibã

Não deveria surpreender que, por baixo dos radares e sem que muitos círculos atlanticistas sequer percebessem, pesquisadores do governo chinês reuniram-se recentemente com estrangeiros em Pequim, para uma discussão intitulada “Afeganistão Reconnected”.

Sun Yuxi, primeiro embaixador chinês em Cabul, depois que os Talibã foram arrancados à bomba do governo no final de 2001, resume nos seguintes termos, corretamente, a questão: “Se não se abrirem as vias e a conectividade por todo o Afeganistão, será como se uma das principais veias da Iniciativa Cinturão e Estrada estivesse bloqueada, com graves consequências para a saúde desse importante órgão.”

Como reconectar/reconstruir/reerguer o Afeganistão é tema de noites e noites de insônia em locais como o think-tank Centre for China & Globalization, com sede em Pequim.

Todos sabem sobre as projeções segundo as quais o Afeganistão pode estar pousado sobre pelo menos US$1 trilhão em minérios como cobre, ouro, ferro, urânio e pedras preciosas. Mas como extrair com segurança?!

O dilema de segurança de Pequim, quanto a proteger os próprios investimentos aparece dramaticamente ilustrado na saga, em andamento, da mina de cobre Mes Aynak. O grupo Chinese Metallurgical Group Corp comprou a mina – 40 km ao sul de Kabul – em 2008. Foi o maior projeto de investimento estrangeiro no Afeganistão. Os Talibã demoraram oito anos para prometer que o projeto não seria atacado.

Enquanto isso, no front ferroviário – que é criticamente importante para a Iniciativa Cinturão e Estrada –, em setembro de 2016 o primeiro trem cargueiro de todos os tempos, vindo da China, chegou a Haratan, no Afeganistão, via Cazaquistão e Uzbequistão. Mas o fluxo comercial ainda é desprezível, o que significa que não há até hoje serviço regular.

A Organização de Cooperação de Xangai (OCX), liderada por Rússia e China, está finalmente avançando. Na mais recente reunião de cúpula, ao mesmo tempo em que alertava para a “deterioração” da segurança, a OCX prometia engajar-se diretamente em encontrar solução “totalmente asiática” para o Afeganistão, com a colaboração de Índia e Paquistão, agora afinal admitidos como membros-plenos da OCX.

A conexão “Siriaque”

Afeganistão é vizinho muito próximo da região autônoma de Xinjiang – e algumas de suas áreas mais inacessíveis abrigam membros do Movimento Islamista do Turquestão Oriental uigure separatista [ing. East Turkestan Islamic Movement (ETIM)], intimamente conectado à al-Qaeda (ao mesmo tempo em que é descartado pelo Estado Islâmico).

Para completar o problema, qualquer possível Nova Rota da Seda que aspire a atravessar o Hindu Kush tem de considerar a conexão direta com o que está acontecendo com o falso califato no “Siriaque”.

O Exército Árabe Sírio está inexoravelmente avançando na direção da fronteira com o Iraque. Ao mesmo tempo, as Unidades de Mobilização Popular Iraquianas já alcançaram a fronteira síria em Al-Waleed. Entre essas unidades acontece de se encontrarem forças dos EUA – que estão ocupando al-Tanaf na Síria. Damasco e Bagdá já concordaram contudo, em fechar a passagem de fronteira de al-Tanaf pelo lado iraquiano da fronteira. Significa que as forças dos EUA ficarão sem ter para onde ir, exceto para trás, de volta à Jordânia.

Pode-se apostar que o Pentágono não aceitará cordatamente essa solução. O Ministério da Defesa em Moscou está convencido de que essas forças dos EUA usarão o sistema de artilharia de foguetes de alta mobilidade [ing. High Mobility Artillery Rocket System (HIMARS)] para impedir o encontro das unidades iraquianas com o Exército Árabe Sírio, cuja missão é perseguir remanescentes do Daech que ainda haja em território sírio.

Esse encontro no “Siriaque” dos exércitos é muito importante porque anuncia com efeito o realinhamento de um nexo chave nas Novas Rotas da Seda: Teerã, Bagdá, Damasco, Beirute.

É imperativo categórico, para Pequim, expandir a ICE por todo o Levante, conectando a China às terras mediterrâneas, exatamente como fez a Antiga Rota da Seda. E isso colide de frente com o fato crucial que o próprio tenente-general Michael Flynn admitiu oficialmente: que o governo Obama tomou uma “decisão premeditada” de deixar o Estado Islâmico apodrecer, com o objetivo de chegar a um “sunistão” pelo “Siriaque”, como meio para acelerar a mudança de regime em Damasco. Tradução: deixar o ISIS fraturar a Iniciativa Cinturão e Estrada no Levante.

Não há dúvida alguma que setores influentes do Estado Profundo nos EUA não abandonaram esse projeto. Ao mesmo tempo, o presidente Trump declarou guerra sem trégua contra o ISIS. A questão fundamental é se a “política da Casa de Saud” – doentiamente contra Damasco e seus apoiadores no Irã – prevalecerá em Washington.

Quando os Talibã saíram em luta contra os senhores da guerra afegãos pelas terras Pashtun em meados dos anos 1990s, a população local os apoiou porque levaram segurança a estradas e vilas. Eram amplamente vistos como anjos caídos do céu para ajudar o Profeta contra seus inimigos em Meca.

Em minhas viagens pelo “Talibanistão,” algumas das quais documentadas em Asia Times, descobri que os Talibã são moralistas impiedosos, envelopados numa espécie de obscurantismo peso pesado virtualmente inabordável.

Mas os principais atores nesse renovado Grande Jogo no Hindu Kush de modo algum são os Talibã. O caso ali é a diáspora jihadista, depois do colapso do califato no “Siriaque”.

O ISIS Já está embarcando jihadistas para fora, em retirada no Iraque e Síria para o Hindu Kush. Ao mesmo tempo, está ativamente alistando legiões de Pashtuns, com muito dinheiro e armas – uma força tarefa que inclui dezenas de milhares de potenciais suicidas-bomba.

Além de afegãos, uma nova leva de recrutas inclui chechenos, uzbeques e uigures, todos perfeitamente capazes de sumir, misturados no cenário numa região montanhosa inacessível até para as MOABs do Pentágono.

Não é surpresa que os afegãos secularizados em Cabul já temam que o Afeganistão seja a nova cidadela do califato reformatado. Contra o autodeclarado Estado Islâmico do Corasão [ing. Islamic State Khorasan (ISK), cabe à OCX – primariamente China, Rússia, Índia, Paquistão – fornecer uma brigada de resgate. É isso, ou a integração da Eurásia passa a viver sob perigo mortal em toda a intersecção do centro e do sul da Ásia.

 

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