O FMI e a Luta de Classes na América Latina: Desvendando o Papel do FMI

David Barkin e Juan Santarcángelo – 1° de maio de 2024

Nota do Saker Latinoamérica: Olá, Dakini aqui. O presente artigo dá uma ótima ideia da enrascada na qual estamos e do que pode dar errado ao se apostar todas as cartas no capital e em seus ferrenhos representantes e defensores. Podemos tomar como um exemplo, bem atual, o Rio Grande do Sul. 

Assolado pela catástrofe das águas, mas também pela catástrofe das ondas prévias de sucateamento e implementação do tal estado-mínimo levando ao que vemos atualmente: uma articulação ampla para (ex)terminar os serviços estatais e liquidar de vez o estado. É nesses momentos que podemos ver claramente a necessidade do controle e da manutenção de serviços vitais ao povo e onde estão melhor „cuidados“.

Mas o que dizer: agora a frente da reconstrução do estado vamos nos topar com o antigo secretário da Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados e atual secretário de Parcerias e Concessões. Será o capital no comando? Boa leitura!

David Barkin é um distinto professor da Universidade Autônoma Metropolitana da Cidade do México, membro emérito do Conselho Nacional de Pesquisa e ganhador do Prêmio Nacional de Economia Política (1979). Em 2016, ele foi premiado com uma posição de pesquisa da Fundação Alexander von Humboldt, na Alemanha. Juan Santarcángelo é pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica e Diretor do Centro de Estudos de Desenvolvimento, Inovação e Economia Política da Universidade Nacional de Quilmes, Argentina.

A economia dominante postula que o caminho para a prosperidade dos países em desenvolvimento é alcançado através da implementação de um conjunto de políticas de “livre mercado”, que, entre suas principais medidas, defende a abertura econômica, a desregulamentação e liberalização do mercado e a privatização das empresas públicas. Apesar das evidências empíricas mostrarem que nenhum país desenvolvido atingiu sua capacidade atual por meio da aplicação dessas políticas, os países centrais do mundo continuam mantendo esse discurso e, mais importante, tentam garantir que os países em desenvolvimento implementem essas medidas. O Fundo Monetário Internacional (FMI) é parte integrante dessa configuração. Com o suposto objetivo de salvaguardar a estabilidade da economia global, o FMI tem sido fundamental na reconfiguração e extensão do domínio do capital financeiro internacional sobre os recursos produtivos locais da América Latina, favorecendo a consolidação das classes capitalistas locais subordinadas aos desígnios e poder do capital global.

O objetivo deste artigo é, por um lado, demonstrar que a relação entre a América Latina e o FMI é um reflexo fiel de uma luta de classes global, na qual dinâmicas de poder internas e externas foram articuladas ao longo dos anos em favor do capital. Por outro lado, o objetivo é refletir sobre as possibilidades concretas que se abrem para a região no futuro se ela decidir não repetir sua história. 1 Com esses objetivos em mente, começamos revisando brevemente o papel do FMI na economia global, os países que controlam suas decisões e suas principais funções e fontes de financiamento. Em seguida, examinamos a relação de longo prazo entre os países latino-americanos e o FMI desde meados da década de 1970 até o presente. O objetivo é reconsiderar esses elementos para dar conta das formas específicas pelas quais a intervenção do FMI inevitavelmente se mostrou decisiva na luta de classes para países da região, sempre favorecendo o grande capital. Por fim, na última seção, refletimos sobre a natureza do FMI e as possibilidades que temos pela frente para a região se ela optar por reverter esse legado histórico desastroso.

Surgimento do FMI e suas principais funções

As origens do FMI remontam a 1944, quando o mundo ainda estava imerso na Segunda Guerra Mundial. Nesse contexto, quarenta e quatro nações aliadas e associadas, juntamente com um país neutro (Argentina), liderado pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, reuniram-se em Bretton Woods, New Hampshire, para discutir os planos econômicos que seriam implementados na paz do pós-guerra. [2] Os governos visavam garantir a paz e a prosperidade globais por meio da cooperação econômica internacional, que seria articulada por meio de um mercado global onde o capital e os bens pudessem circular livremente sem barreiras.

O Acordo de Bretton Woods não só estabeleceu as regras gerais para o funcionamento das relações internacionais projetadas pelas duas últimas potências mundiais hegemônicas (Grã-Bretanha e Estados Unidos), mas também representou fundamentalmente o desejo dessas potências de expandir o mercado capitalista globalmente e subordinar os países periféricos dentro de seus esquemas de acumulação global. Também é importante ressaltar que, enquanto Bretton Woods resultou do planejamento e da cooperação entre os Estados Unidos e o Reino Unido, os Estados Unidos dominaram a conferência, direcionando-a de acordo com seus interesses nacionais e emergindo como a potência mundial hegemônica indiscutível.

Essencial a este acordo, três instituições reguladoras foram vislumbradas para auxiliar no novo funcionamento global. Essas instituições eram o FMI, o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (mais tarde conhecido como Banco Mundial) e a Organização Internacional do Comércio (que mais tarde se tornaria a Organização Mundial do Comércio). O FMI era a instituição mais poderosa das três, originalmente focada em questões financeiras relacionadas a taxas de câmbio e empréstimos de balanço de pagamentos, que eram importantes, mas não muito controversas ou discutíveis. [3] No entanto, no início dos anos 1970, no contexto de transformações significativas no capitalismo global, incluindo o abandono do padrão-ouro, a instituição alterou sua postura política em relação aos chamados países do terceiro mundo. Começou a oferecer empréstimos em troca da implementação de uma bateria de políticas que incluíam a abertura e liberalização das economias, privatizações e insistência na aplicação de maior “austeridade” na gestão fiscal dos governos nacionais.

Essa transformação nas condições impostas aos países devedores não foi uma coincidência, mas sim uma resposta a interesses claros dos países centrais, particularmente dos Estados Unidos, para subjugar qualquer tentativa de um modelo de desenvolvimento alternativo que pudesse desafiar a hegemonia dos EUA. De acordo com sua carta, o FMI é um órgão supranacional com os propósitos de fomentar a cooperação monetária internacional, facilitar a expansão e o crescimento equilibrado do comércio internacional, promover a estabilidade cambial, auxiliar no estabelecimento de um sistema multilateral de pagamentos e fornecer (com salvaguardas adequadas) recursos à disposição dos países membros que experimentam desequilíbrios em seu balanço de pagamentos. Essas funções, em termos práticos e organizacionais, são agrupadas em três categorias básicas: assistência financeira (que envolve a concessão de empréstimos aos países membros que enfrentam problemas de balanço de pagamentos), vigilância (com o suposto objetivo de manter a estabilidade e prevenir crises no sistema monetário internacional) e capacitação (para a qual o FMI fornece constantemente assistência técnica e treinamento para promover e estabelecer um conjunto de práticas que supostamente visam melhorar as instituições existentes e fortalecer as capacidades técnicas de suas equipes no país)4.

Em 1969, o FMI criou um novo ativo de reserva internacional conhecido como Direitos Especiais de Saque (DSE) para complementar as reservas oficiais dos países membros. Os SDRs são a principal fonte de recursos financeiros disponíveis para a organização para operações, e seu valor, de 1º de outubro de 2016 até o presente, é baseado na evolução de uma cesta de cinco moedas: dólar americano, euro, renminbi chinês, iene japonês e libra esterlina do Reino Unido. O total mundial de alocações de SDR atualmente está em torno de SDR 204 bilhões (aproximadamente US$ 296 bilhões).

Os membros do FMI contribuem com diferentes cotas, refletindo seu tamanho e posição relativa na economia mundial, bem como seu poder dentro da organização. As nove principais economias do mundo – Estados Unidos, Japão, China, Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Índia e Rússia – contribuem com 53% dos DSE, dando-lhes 50,39% do total de votos e permitindo-lhes controlar a organização financeira internacional. Fica claro que o FMI não é uma instituição democrática no sentido de igualdade entre os países, uma vez que as possibilidades de concessão de créditos e a aplicação (ou não) de condicionalidades para esses empréstimos dependem unicamente da concordância e dos desejos das grandes potências econômicas mundiais.

Os empréstimos do FMI estão estruturados em torno de dois programas principais: Acordos Stand-By e Linha de Crédito Alargada ou Acordos de Linha de Crédito Alargada. O primeiro é mais frequentemente usado pelos países membros e é tipicamente por períodos relativamente curtos, com duração entre doze e vinte e quatro meses, mas raramente superior a trinta e seis meses. Geralmente, esses acordos envolvem monitoramento constante das políticas econômicas do país pelo FMI, mas têm poucas condicionalidades em relação às reformas estruturais focadas no cumprimento de certos objetivos estabelecidos. O segundo tipo de acordo, a Linha de Crédito Estendida, é aplicado a países que não apenas enfrentam um problema temporário de balança de pagamentos, mas são considerados como tendo desequilíbrios estruturais. Com esse tipo de acordo, o FMI se propõe a intervir na estrutura econômica do país, impondo austeridade fiscal, liberalização cambial e diretrizes de taxas de juros; geralmente inclui também uma série de medidas relacionadas a privatizações, reformas trabalhistas e mudanças na previdência social. Esses planos não são projetados genuinamente para ajudar os países devedores a resolver seus problemas econômicos e financeiros; pelo contrário, o FMI claramente pretende intervir em suas políticas internas, impondo políticas neoliberais de mercado sob o pretexto de assistência “incondicional”, garantindo assim sua conformidade com as demandas dos mercados de capitais internacionais.

A relação entre o FMI e a América Latina

Para entender a relação entre o FMI e a América Latina, devemos primeiro compreender o papel que os Estados Unidos historicamente atribuíram à região. Para o país mais poderoso do mundo, a América Latina atua principalmente como fornecedora de matérias-primas e recursos naturais baratos. Isso é muito diferente do papel que a Europa, por exemplo, teve (e continua a ter) para os Estados Unidos, como analisado de forma pungente por Eric Toussaint. [5] No âmbito da reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos enfrentaram o dilema de como emprestar dinheiro a seus países europeus aliados. De acordo com Toussaint, historiador belga, o objetivo central dos Estados Unidos no período pós-guerra era manter o pleno emprego alcançado através do colossal esforço de guerra e garantir um superávit comercial nas relações dos EUA com o resto do mundo. No entanto, os principais países industrializados capazes de importar mercadorias dos Estados Unidos estavam literalmente sem dinheiro. Para permitir que eles comprassem produtos fabricados nos EUA, grandes quantidades de dólares precisavam ser fornecidas. Havia três maneiras de fazer isso: (a) emprestar dinheiro e fazer com que os destinatários pagassem em espécie; (b) emprestar-lhes dinheiro e exigir que pagassem suas dívidas em dólares; e (c) doar o dinheiro até que se recuperassem. Com a primeira possibilidade, os produtos europeus competiriam nos Estados Unidos e o pleno emprego seria impossível. Com a segunda possibilidade (reembolso em dólares), para quitarem a dívida, teriam que ser emprestados duas vezes o mesmo valor acrescido de juros. O risco de entrar em um ciclo incontrolável de endividamento (que poderia bloquear ou mais uma vez desacelerar as operações comerciais) coincide com o risco evocado na primeira possibilidade. Portanto, a opção escolhida foi doar os dólares no que era conhecido como Plano Marshall, onde os europeus os usariam para comprar bens e serviços, garantindo uma saída para as exportações dos EUA e, consequentemente, o pleno emprego. [6] O Plano Marshall também fazia parte da estratégia da Guerra Fria de reconstruir a Europa Ocidental em oposição ao bloco soviético.

Em contraste com esse estado de coisas, a situação na América Latina era completamente diferente. Isso pode ser observado tanto na evolução do relacionamento global quanto na situação de cada país da região. Durante os anos do pós-guerra (1945-70), a região latino-americana buscou estimular o desenvolvimento econômico a partir da estratégia de industrialização por substituição de importações, seguindo a liderança das políticas um tanto heterodoxas formuladas pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. A região precisava de dólares para manter o volume de importações necessário para sustentar seu crescimento industrial e, ao longo desse período, o setor financeiro esteve inteiramente subordinado ao setor produtivo, estruturado como instituição de estímulo ao desenvolvimento industrial.

No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, a região experimentou várias ditaduras militares que tomaram o poder e impuseram um novo modelo econômico destinado a assegurar a hegemonia do capital financeiro (internacional). O principal objetivo desses golpes militares era reduzir drasticamente o papel predominante da classe trabalhadora no processo de acumulação, suprimindo os salários reais e reduzindo os gastos sociais. Mudaram também a lógica da dívida para os países da região. O empréstimo que os países latino-americanos usaram para superar suas restrições externas e promover a industrialização tornou-se um elemento-chave na ascensão e consolidação da hegemonia de interesses financeiros internacionais. [7]

Após o abandono do padrão-ouro pelos EUA em 1971 e um período relativamente curto de ajuste, juntamente com um aumento da inflação, uma crise de confiança nos mercados internacionais do dólar gerou um período de instabilidade, durante o qual Paul Volcker foi nomeado presidente do Federal Reserve dos Estados Unidos (o Banco Central dos EUA) em agosto de 1979. Para conter a inflação, ele implementou um conjunto de políticas monetárias contracionistas dramáticas e elevou as taxas de juros, induzindo uma recessão nos Estados Unidos e na maioria dos países avançados. O acesso ao crédito tornou-se significativamente mais caro, criando as condições para uma “crise da dívida” no México e obrigando o ministro das Finanças do México, Jesús Silva Herzog, a anunciar o inadimplemento do país em suas obrigações de dívida externa. A decisão do México foi rapidamente seguida pela Argentina, Brasil e Venezuela, e posteriormente estendida a outros países da região. Como resultado, os bancos privados cortaram todos os financiamentos para a região.

Em um ano, a exposição financeira dos nove maiores bancos dos Estados Unidos atingiu 180% de seu patrimônio líquido. O declínio no valor de mercado da dívida latino-americana não apenas ameaçou esses bancos, mas também tinha o potencial de levar a uma crise bancária global. [8] A região enfrentou um verdadeiro esforço conjunto dos credores, coordenado pelo governo dos EUA para evitar uma grande crise bancária interna. [9] Foi a primeira crise desse tipo no mundo “em desenvolvimento” e causou pânico nos mercados financeiros internacionais. O FMI concedeu ao México um empréstimo de US$ 1 bilhão, acalmando os mercados internacionais e proporcionando uma breve trégua à economia mexicana. [10] O FMI condicionou essa “ajuda” à imposição de austeridade extrema e outras políticas econômicas, inaugurando o que seria conhecido como a “década perdida” (em termos de crescimento econômico) para os maiores países da América Latina. No México, isso envolveu não apenas uma redução dramática nos gastos públicos, levando a cortes significativos nos serviços públicos e projetos de investimento, mas também obrigou a adesão do país ao Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio. Isso se tornaria um prelúdio para a negociação do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, um instrumento central em toda a gama de políticas para impor o neoliberalismo no país, um pacote abrangente de medidas amplamente conhecido como Consenso de Washington. [11]

Após a implementação deste programa, um esforço para gerar uma frente independente para contrabalançar as pressões do norte, o Consórcio de Cartagena surgiu em junho de 1984, reunindo representantes de onze países latino-americanos: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, República Dominicana, Equador, México, Peru, Uruguai e Venezuela. [12] Esses países representavam 80% da dívida regional, mas, apesar das tentativas de ação e cooperação conjuntas, sua declaração final apenas criou um mecanismo de consulta e monitoramento regional para auxiliar nas negociações com credores. A rápida reação do Tesouro dos EUA, coordenada com um consórcio de bancos norte-americanos e o FMI, conseguiu neutralizar essa ameaça dos países latino-americanos.

A crise da dívida na região durou oito anos, até o início dos anos 1990, apesar de várias tentativas frustradas de resolução. [13] O último esforço para resolver o problema da dívida veio com o Plano Brady, elaborado pelo secretário do Tesouro dos EUA, Nicholas Brady. O plano propunha a troca de antigos títulos da dívida externa por novos lastreados pelo Tesouro dos EUA. O México foi o primeiro a adotar o plano em 1989 e, nos anos seguintes, dez países da região assinaram: Argentina, Brasil, Costa Rica, Equador, México, Panamá, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. A redução da dívida oscilou entre 35% e 45%, reduzindo a relação dívida/PIB de 54% em 1987 para 32% em 1997. [14] As consequências da crise foram dramáticas em termos econômicos e sociais para a maioria dos países da região, à medida que os níveis de dívida aumentaram e os graus de autonomia nas decisões soberanas foram perdidos para sempre. [15]

Em meados da década de 1990, a região sofreu uma nova crise da dívida, originada mais uma vez no México. A “Crise da Tequila”- uma crise relacionada ao peso mexicano – levou a uma “corrida bancária”, ameaçando a estabilidade dos bancos privados. Desta vez, foi um resultado perfeitamente previsível de um programa insustentável para manter uma taxa de câmbio artificialmente fixa durante a administração do presidente Carlos Salinas de Gortari, na tentativa de polir sua reputação internacional. Com a mudança nas administrações em 1995, a comunidade financeira forçou uma grande desvalorização, levando a um aumento dramático da inflação e ao aumento das taxas de juros que levaram milhões à falência, levando à destruição de pequenas empresas e forçando segmentos significativos da população a perder suas casas à medida que os bancos as executavam devido a inadimplência hipotecária. O FMI interveio com um empréstimo de US$ 50 bilhões, apoiando a decisão do México de “socializar” as dívidas impagáveis do sistema bancário privado por meio do “Fundo Bancário para Proteção da Poupança” (FOBAPROA, popularmente chamado de “Rob-aproa”), nome infeliz, para um total de mais de 500 bilhões de pesos. Ficou claro que seu objetivo era salvar os bancos privados (principalmente estrangeiros), fornecendo-lhes liquidez e absorvendo suas dívidas impagáveis às custas de um ônus público que a população mexicana estaria pagando por gerações, limitando a capacidade do setor público de financiar as obras e serviços públicos essenciais de que o país precisava. [16]

Essa etapa marca o auge da influência do neoliberalismo na região, e as políticas implementadas provocaram transformações estruturais de enorme importância. Talvez o caso paradigmático nesse sentido tenha sido a Argentina, que, durante a década de 1990, prontamente implementou todas as recomendações do Consenso de Washington, levando a um processo de superendividamento e fuga de capitais que culminou em 2001 com a pior crise econômica e social da história do país. No final de 2001, a Argentina declarou um calote parcial de sua dívida externa de mais de US$ 100 bilhões, um dos maiores calotes de dívida soberana da história mundial. A inadimplência foi parcial porque não incluiu uma inadimplência nos empréstimos das principais organizações internacionais, incluindo o FMI. [17]

Esse processo, que em graus variados foi replicado na maioria dos países da região, envolveu uma forte redistribuição de renda em favor de grandes grupos de capital nacionais e internacionais que não teria sido possível sem a intervenção deliberada do FMI. Operando com cumplicidade local, o FMI conseguiu forçar os países latino-americanos a implementar essas políticas.

O início do novo século marcou o fim da implementação ativa das políticas neoliberais em meio a uma profunda crise econômica, política e social que levou ao colapso do modelo econômico anterior. Em muitos países da região, foram eleitos novos governos progressistas, fortemente críticos à doutrina neoliberal, ao papel desempenhado pelo FMI e à retirada do Estado da prestação de serviços públicos de saúde, educação, serviços sociais e moradia. Assim vieram Néstor Kirchner, Luiz Inácio Lula da Silva, Evo Morales, Rafael Correa e Hugo Chávez, entre outros, que com graus variados de sucesso conseguiram reverter alguns dos mais infames legados deixados pelo neoliberalismo. Entre suas principais conquistas, podemos destacar um processo significativo de redução da dívida nos países da região, um aumento dos salários reais e um declínio nas taxas de desemprego e pobreza. Além disso, em 2005, durante a Cúpula das Américas em Mar del Plata, Argentina, os países conseguiram rejeitar a Área de Livre Comércio das Américas.

Outro elemento-chave na relação entre os países latino-americanos e o FMI ocorreu em 2006, quando o Brasil e a Argentina, de forma organizada, decidiram pagar antecipadamente as dívidas que tinham com a organização internacional. [18] Isso foi especialmente significativo, tanto em termos do valor envolvido (por exemplo, para a Argentina representava 34% das reservas do país), mas também para acabar com a longa interferência do FMI na política interna por meio da imposição de todos os tipos de condições. As palavras do então presidente Kirchner anunciando o cancelamento da dívida refletiram essa realidade: “Essa dívida tem sido um veículo constante de interferência porque está sujeita a revisões periódicas e tem sido fonte de demandas e mais demandas, que são contraditórias e opostas ao objetivo de crescimento sustentável. Além disso, desnaturado como está em seus propósitos, o Fundo Monetário Internacional tem atuado, em relação ao nosso país, como promotor e veículo de políticas que causaram pobreza e dor ao povo argentino, de mãos dadas com governos que foram proclamados estudantes exemplares de ajuste permanente.“ [19]

O descrédito do FMI devido ao impacto das políticas econômicas que promoveu foi tão extenso e profundo na região que os países do centro (Atlântico Norte) iniciaram um processo de “rebranding” do FMI. Assim, certos intelectuais “orgânicos” começaram a postular a existência de um novo FMI, que havia aprendido com seus erros e modificado e corrigido alguns erros técnicos. Como resultado, surgiram discussões sobre a existência desse FMI reimaginado, que propunha o surgimento de um “novo” e “revisado” Consenso de Washington. No entanto, na prática, não ocorreram mudanças substanciais na organização, e suas recomendações continuaram a se alinhar com uma visão dominante da economia, apoiando o capital financeiro.

Como contrapeso aos governos progressistas que dominaram o cenário regional no início do século XXI, novos partidos de direita e ultradireita surgiram em toda a região e começaram a disputar espaços políticos. Fortemente apoiados e financiados pelos Estados Unidos, alguns desses novos grupos chegaram ao poder durante a segunda década do século XXI. Isso inclui casos como Mauricio Macri na Argentina, Michel Temer e Jair Bolsonaro no Brasil, Lenín Moreno no Equador, Enrique Peña Nieto no México e Luis Lacalle Pou no Uruguai, entre outros. Assim, iniciou-se um duplo processo de regressão econômica e social. Por um lado, houve um retorno à implementação de políticas econômicas neoliberais, à desregulamentação do mercado, à redução do papel do Estado e à priorização do setor financeiro sobre o setor produtivo; por outro lado, muitos desses governos recorreram mais uma vez ao endividamento externo com o FMI para garantir que, em caso de novas vitórias eleitorais de governos progressistas, seriam confrontados com condições impostas externamente e subordinados aos ditames do FMI.

Mais uma vez, o caso emblemático é a Argentina, onde Macri retomou os empréstimos do FMI em 2018. Por meio de um Acordo Stand-By, o FMI forneceu um pacote de assistência, sem precedentes em sua história (US$ 44 bilhões) e incluiu suas recomendações clássicas de política econômica, como “consolidação fiscal”, reforma dos regulamentos do Banco Central e implementação de um esquema de metas de inflação. [20] A injeção maciça de dólares do FMI, que excedeu em muito as cotas máximas da Argentina na organização, não pode ser entendida sem considerar o apoio explícito fornecido pelo governo de Donald Trump ao seu aliado regional no contexto de sua disputa contra governos progressistas na região. [21] A esse respeito, Mauricio Claver-Carone, ex-diretor executivo dos EUA no FMI, reconheceu que foi Washington quem promoveu o maior programa de assistência da história da organização para “ajudar a Argentina”, mesmo quando os representantes europeus se opuseram a ele. O ex-presidente Macri, no entanto, declarou cinicamente: “Usamos o dinheiro do FMI para pagar os bancos comerciais que queriam sair porque tinham medo de que o kirchnerismo retornasse“. [22]

A disputa permanece aberta e, em vários países da região, governos progressistas se alternam com governos neoliberais. O que está claro é que a relação do FMI com a América Latina mostra repercussões profundas e extensas e continua a moldar o desenvolvimento da América Latina depois de mais de quatro décadas. Durante esses anos, o FMI tornou-se o representante político e técnico dos credores da comunidade bancária internacional na América Latina, responsável por projetar programas de ajuste e monitorar sua implementação. Nesse sentido, os credores não querem que esses países reduzam seu fardo de endividamento; em vez disso, o objetivo é estimular o endividamento permanente, maximizar os benefícios na forma de pagamento da dívida e impor políticas alinhadas aos interesses de seus credores, garantindo a subordinação desses países na arena internacional. O FMI trabalha efetivamente para reforçar grupos financeiros e sociais que devastam a economia e sociedade do país. Essa reestruturação intensifica a pobreza na região e desmantela os esforços para criar uma estrutura produtiva que atenda às necessidades da população.

Os desafios da classe trabalhadora latino-americana

As organizações internacionais não são instituições neutras. Elas desempenham um papel fundamental no desenvolvimento do capitalismo e estão fundamentalmente alinhadas com os interesses de grupos poderosos nos países que lideram essas instituições. O FMI foi crucial na imposição dos planos de ajuste estrutural, que, sob o pretexto de serem planos de “ajuda”, dificultaram o genuíno desenvolvimento econômico dos países devedores. Além disso, como é evidente, o FMI opera como uma ferramenta usada pelas elites locais de direita em sua luta nacional pelo tipo de políticas adotadas, garantindo um alinhamento com o modelo de globalização neoliberal vigente em nível global.

As implicações desta análise são claras. O FMI continua a assumir um papel preponderante na política interna dos países “em desenvolvimento” que estão com sérios problemas devido à sua exposição nos mercados internacionais de dívida. Esse agravamento da armadilha da dívida leva à incapacidade do setor público na maioria dos países latino-americanos de responder às demandas de sua base social (a classe trabalhadora, os camponeses e outros “de baixo”), uma vez que o poder político é controlado pelo setor financeiro e grupos empresariais que efetivamente impedem a promulgação de uma estrutura tributária progressiva. Restringindo ainda mais a margem de manobra desses governos, os lucros da exploração dos recursos naturais são geralmente alocados em projetos de infraestrutura para promover o modelo produtivo neoliberal. Para expressar isso claramente, está sendo travada uma luta de classes, que o setor público tenta mitigar emitindo dívida pública claramente insustentável (impagável) nos mercados financeiros globais. O FMI intervém e pressiona os governos a adotarem políticas restritivas que punem deliberadamente as massas “populares”, reequilibrando a escala de poder em favor de grupos ricos.

A situação atual no mundo “em desenvolvimento” está mudando. Com os conflitos internos vivenciados nos Estados Unidos e a consequente busca por alternativas à hegemonia estadunidense e ao caráter “universal” do dólar, há diversas iniciativas voltadas a encontrar outras formas de financiamento do comércio internacional. Primeiro, há os avanços feitos pela China, não apenas economicamente, mas também financeiramente, para facilitar seu comércio com contas em sua moeda, o yuan. Isso implica necessariamente maiores esforços para promover o comércio entre o gigante asiático e seus novos parceiros, bem como iniciativas para proporcionar alguma forma de alívio a muitos países do Sul Global que acumularam dívidas com a China devido a investimentos em infraestrutura. Uma nova força internacional surgiu na forma da união BRICS+ (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), recentemente expandida para outros países. Isso ganhou um novo impulso com a eleição de Lula pela terceira vez no Brasil. As nações BRICS+ estão ansiosas para reduzir a dependência internacional do sistema liderado (e controlado) pelos Estados Unidos e pelo FMI. Por fim, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, criada em 2010, está discutindo propostas que ainda estão em fase de conversas exploratórias, mas que podem se tornar uma alternativa. Essas tentativas ainda são incipientes em termos de oferecer um contrapeso real ao domínio dos EUA. No entanto, indicam uma desilusão com o exercício do poder que inclinou o equilíbrio de poder em favor de grupos financeiros nacionais e internacionais em detrimento do bem-estar da maioria.

O poder financeiro global, com sede nos Estados Unidos/Canadá, Europa Ocidental e Japão, também puniu fortemente muitas tentativas de implementar programas de “sustentabilidade” ambiental que envolveriam a limitação de investimentos extrativos, causando danos significativos aos planos de expansão capitalista em todo o mundo. Esse é outro aspecto do investimento estrangeiro que está causando grandes conflitos dentro dos países “receptores” desses investimentos, impactando principalmente grupos sociais como pequenos agricultores e povos indígenas, que ficam indefesos em cenários nacionais. O equilíbrio de poder em alguns desses países do Sul Global está começando a mudar em certa medida devido a uma maior conscientização sobre os direitos e contribuições dos grupos locais diante das atuais crises sociais, econômicas e ambientais. Atualmente, eles estão envolvidos em diversos esforços para formar alianças nacionais e internacionais para impulsionar suas demandas.

O FMI continua a desempenhar um papel crucial na reestruturação e ampliação do domínio do capital financeiro internacional sobre os recursos produtivos locais, intervindo para arbitrar disputas entre classes sociais dentro dos países, promovendo a consolidação de uma classe capitalista local subordinada aos ditames e ao poder do capital internacional. Da mesma forma, entendemos que em toda a América Latina, há uma pressão crescente do FMI que visa claramente prevenir ou impedir qualquer tentativa de rebelião nacional. Assim, torna-se irrelevante o quão “progressista” ou mesmo centrista é um governo nacional, ou quais constelações de forças estão em jogo no nível nacional, ou mesmo os “graus de liberdade” que a política doméstica possui, pois são invariavelmente profundamente limitados pela natureza das finanças internacionais. Hoje, o desafio colocado para as forças progressistas na região – e no Sul Global em geral – é como organizar uma oposição compensatória que limitará a eficácia do FMI.

Foto de capa: Protesto contra as práticas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional no domingo, 26 de abril de 2009, em Washington, D.C. Por Ben Schumin de Montgomery Village, Maryland, EUA – Protesto contra Banco Mundial/FMI [06]CC BY-SA 2.0Link.

Notas

  1. David Barkin e Gustavo Esteva, Inflación y Democracia: El caso de México (México: Siglo XXI Editores, 1979). Para um resumo em inglês, ver David Barkin e Gustavo Esteva, “Social Conflict and Inflation in Mexico,” Latin American Perspectives 9, n°. 1 (1982): 48–64.
  2. Richard Peet, Unholy Trinity: The IMF, the World Bank and WTO (Londres: Zed Books, 2003).
  3. Peet, Unholy Trinity.
  4. Fundo Monetário Internacional, “IMF and Argentine Authorities Reach Staff-Level Agreement on an Extended Fund Facility”, comunicado de imprensa nº. 22/56, 3 de março de 2022.
  5. Eric Toussaint, “Why the Marshall Plan?,” Comitê para a Abolição da Dívida Ilegítima, 7 de fevereiro de 2024.
  6. Toussaint, “Por que o Plano Marshall?”
  7. Essa nova constelação de forças econômicas foi dramaticamente incentivada pela intervenção por atacado de um novo grupo de consultores econômicos liderados pelos “Chicago Boys”, cuja liderança intelectual foi fornecida por Milton Friedman e Arnold Harberger.
  8. Diana Tussie, “La Concertación de Deudores: Las negociaciones financieras en América Latina”, Ola Financiera 8, n°. 20 (2015): 201.
  9. Robert Devlin, Debt and Crisis in Latin America: The Supply Side of the Story (Princeton: Princeton University Press, 1989).
  10. Carlos Alfredo Justo Parodi Trece, “La Crisis de la Deuda en América Latina de la década de los ochenta”, Working Paper, Universidad del Pacífico Centro de Investigación, Lima, 2015.
  11. John Williamson, Latin American Adjustment: How Much Has Happened (Washington, DC: Institute of International Economics, 1990).
  12. José Eduardo Navarrete, “Política exterior y negociación financiera internacional: la deuda externa y el Consenso de Cartagena,” Revista de la CEPAL, no. 27 (1985): 7–26; Manuel Pastor, “Latin America, the Debt Crisis and the International Monetary Fund,” Latin American Perspectives 16, n°. 1 (1989): 79–110.
  13. José Antonio Ocampo, “The Latin American Debt Crisis in Historical Perspective” em Life After Debt: The Origins and Resolutions of Debt Crisis, Joseph Stiglitz, ed. (Londres: Palgrave Macmillan, 2014), 87–115.
  14. Barbara Stallings, “La economía política de las negociaciones de la deuda: América Latina en la década de los ochenta”, em José A. Ocampo, Barbara Stallings, Inés Bustillo, Helvia Belloso e Roberto Frenkel, La crisis latinoamericana de la deuda desde la perspectiva histórica, CEPAL (Santiago: Comisión Económica para América Latina y el Caribe, 2014), 71.
  15. Juan Santarcángelo, “The Argentinean Financial and Debt Crisis of 2019”, em The Encyclopedia of Financial Crisis, Sara Hsu, ed. (Northampton: Edward Elgar, 2023), p. 351–53.
  16. Mesmo a revista Expansión, publicada por e para a classe empresarial e bancária, caracterizou-a “como um ato de corrupção e oportunismo por parte dos banqueiros, que classificaram as dívidas das instituições como vencidas e foram resgatadas pelo governo” (Selene Ramírez, “Claves para entender qué es el Fobaproa y por qué se sigue pagando”, Expansión, 7 de junho de 2023). Para uma revisão e avaliação abrangente do processo, consulte Andrés Manuel López Obrador, Fobaproa: expediente abierto. Reseña y Archivo (México: Grijalbo, 1999), e especialmente o CD que o acompanha, que contém dados valiosos.
  17. Juan Santarcángelo e Juan Manuel Padín, “Endeudamiento en Argentina: crisis, factores estructurales y condicionantes de largo plazo (2001–2021),” Realidad Económica 52, n°. 351 (2022): 94–101.
  18. Eduardo Basualdo, Estudios de Historia Economica Argentina. Desde Mediados del Siglo XX a la actualidad (Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2006).
  19. Néstor Kirchner, “Palabras del presidente de la nación, Néstor Kirchner, en el acto de anuncio del plan de desendeudamiento con el fondo monetario internacional,” Casa Rosada, Argentina, 15 de dezembro de 2005, casarosada.gob.ar.
  20. Fundo Monetário Internacional, “IMF and Argentine Authorities Reach Staff-Level Agreement on an Extended Fund Facility.”
  21. O crédito totalizou 1,277% da cota da Argentina – muito maior do que o normalmente permitido por suas diretrizes operacionais. Diz-se que esta operação foi o resultado da intervenção direta do regime de Donald Trump. Foi fortemente criticado por grupos importantes dentro da equipe do Fundo e amplamente questionado na imprensa financeira internacional (Santarcángelo e Padín, “Endeudamiento en Argentina”).
  22. “Mauricio Macri: ‘La plata del FMI la usa para pagarle a bancos comerciales que tenían miedo de que volviera el kirchnerismo,” Perfil, 11 de agosto de 2021.
  23. Veja, por exemplo, a história da Via Campesina (viacampesina.org), a maior organização social do mundo, com mais de duzentos milhões de membros em oitenta e um países, que está promovendo organizações comunitárias para disseminar a autossuficiência alimentar local com sistemas agroecológicos. Há também o consórcio internacional de “Territórios da Vida” em mais de duzentos países, através do qual os membros da comunidade estão promovendo a autonomia local e se comprometendo com medidas de conservação que cobrem mais de um quarto do território do planeta (iccaconsortium.org). A Tapeçaria Global de Alternativas é outra rede que une comunidades em dezenas de países para apoiar suas iniciativas de independência política e fortalecer sua capacidade de promover o bem-estar local (globaltapestryofalternatives.org).

Fonte: https://monthlyreview.org/2024/05/01/the-imf-and-class-struggle-in-latin-america/

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