Zugzwang*


Alastair Crooke – 22 de junho de 2022 – [Traduzido por Vila Mandinga]

 
O futuro da Europa parece sombrio. Está agora pressionado pelas sanções que a própria Europa impôs e pelo salto que delas resultou, nos preços das commodities. A UE zanza atordoada, de um lado para o outro.


A autodestruição do Ocidente – quebra-cabeça que desafia qualquer explicação causal única – continua. Exemplos em que a política é seguida com aparente indiferença a qualquer coisa que se assemelhe a reflexão rigorosa, tornaram-se tão extremos, que levaram um antigo comandante militar britânico (e antigo comandante das forças da OTAN no Afeganistão), Lord Richards, a esbravejar que a relação entre estratégia e qualquer a sincronização de fins foi irremediavelmente rompida no Ocidente.

O Ocidente persegue uma ‘estratégia’ de tipo “p’ra ver como é que fica”, ou, dito de outro modo, não persegue estratégia alguma, argumenta Richards. Muitos diriam que algum culto, de rotação implacável, desenfreada e de avançada perpétua asfixiou as faculdades críticas dominantes. Como é possível que o Ocidente, inundado de ‘think-tanks’, erre tanto, tão invariavelmente? Por que ninguém ou quase ninguém desafia tantos memes e ilusões fáceis, que circulam por aí como se fossem geopolítica? Só a reverência aos pés das narrativas oficiais e convencionais conta. É desconcertante, mas a reverência vai virando rotina, aparentemente sem que ninguém veja os riscos nela implicados.

O epicentro chave da crescente instabilidade geopolítica de hoje é o estado da economia ocidental: as autoridades foram e são tão complacentes – convencidas de que a inflação jamais agitaria as águas da economia dos EUA baseada em moeda de reserva –, que chegaram a dar por ‘erradicada’ a recessão cíclica; nunca mais voltaria a macular a esfera (eleitoral) do consumidor, graças a uma ‘vacina’ (imprimir dinheiro; além disso, de qualquer forma, o aumento da dívida ‘não importa’.

Essa visão simplória assumia que o ‘status de reserva’ [do dólar], só ele e por si só erradicaria a inflação. E para o exterior, haveria para sempre o sistema petrodólar, obrigando o mundo inteiro a comprar dólares para financiar suas necessidades; foi a enxurrada de itens de consumo chineses baratos; e a energia barata disponibilizada para a indústria ocidental pela Rússia e pelos Estados do Golfo… que mantiveram a inflação sob controle.

Os gastos do governo ocidental ‘chegaram à Lua’ após a crise de 2008; simplesmente explodiram durante os bloqueios do Covid. Então, em seguida – num episódio de visão geoestratégica caolha – aquela energia barata e aqueles outros recursos vitais que sustentam a produtividade econômica… foram descuidadamente sancionados. Foram até ameaçados de banimento.

Os usuários de lentes cor-de-rosa para Energy Transition simplesmente se recusaram a reconhecer que se consome energia para gerar e extrair energia gerada. E que é indispensável obter um número REEI (Retorno em Energia sobre Energia Investida) maior que sete e múltiplos de sete.** Ou a sociedade moderna não funciona.

Agora estamos vendo as consequências: inflação desenfreada, e o Ocidente correndo pelo mundo à procura de alternativas baratas que não ‘quebrem a banca’. Infelizmente, esses recursos são escassos. Qual a implicação geopolítica disso tudo? Em três palavras: extrema fragilidade sistêmica.

Essa extrema fragilidade sistêmica já pôs completamente abaixo a política doméstica dos EUA. Contudo, nem aumentar as taxas de juros, nem destruir a demanda (derrubando o valor dos ativos) conseguirá ‘curar’ a inflação estrutural.

Os economistas ocidentais continuam obcecados com os efeitos monetários sobre a demanda. Com isso, ficam impedidos de reconhecer as consequências de atacar com marteladas de guerra comercial, um complexo sistema de rede.

A dor social será imensa. Muitos norte-americanos já estão tendo de comprar sua comida com cartões de crédito já quase esgotados. E só vai piorar.

Mas o dilema é ainda mais profundo. O modelo econômico ‘anglo’ de Adam Smith e Maynard Keynes – o sistema de consumo alimentado por dívidas, recoberto por superestrutura hiperfinanceirizada – destruiu as economias reais. O consumir coisas supera o fazer e fornecer coisas.

Estruturalmente, começam a existir empregos cada vez mais mal remunerados, à medida que a economia real faz cada vez menos, deslocada por uma efêmera bolha de marketing.

E… o que fazer com os 20% da população que já não são economicamente necessários nessa economia cada dia mais tênue?

Pergunta-se: e essa falha estrutural não foi absolutamente previsível? Foi previsível e deveria ter sido prevista: a crise financeira de 2008, que quase derrubou o sistema, foi um sinal de alerta.

A miopia novamente prevaleceu; enquanto zumbiam as máquinas de imprimir dinheiro.

Então a Europa, graças à onda risonha e festiva, mas autodestrutiva, de aprovação das sanções contra a energia e os recursos russos, pôs-se a criar desastre inflacionário semelhante (ou pior).

Agora é absolutamente evidente que a União Europeia não fez qualquer estudo ou pesquisa ou devida diligência, nada, antes de sancionar a Rússia. A possibilidade de revide foi descartada sem cuidado, jogada na névoa de Net Zero e muita fanfarronice ideológica.

Com o mesmo descuido, a Europa jogou-se no conflito militar na Ucrânia, novamente sem nem cogitar de definir objetivos estratégicos ou meios com vistas a um (qualquer que fosse) fim – levada numa onda panglossiana de entusiasmo pela ‘causa’ ucraniana.

A inflação aqui na Europa está bem avançada nos dois dígitos. Pois mesmo assim, Lagarde, do Banco Central Europeu, BCE, declara sem qualquer pudor: “Temos a inflação sob controle”. Ainda vamos crescer em 2022, e o crescimento vai acelerar em 2023 e 2024. Estratégia? Objetivos sincronizados? Os dela não passavam de itens numa lista escrita, apartados de qualquer realidade.

Aquele evento do BCE, no entanto, tem alto significado geopolítico. Com o Fed a aumentar as taxas de juros nos EUA, o BCE está sendo exposto como organização que não tem ferramentas prestáveis para lidar com a espiral ascendente; e que tira, das taxas da dívida soberana europeia, qualquer aparência de convergência.

Já começou uma crise da dívida soberana europeia. Pior: algumas dívidas soberanas provavelmente perderão valor de leilão, deixarão de ser procuradas e serão convertidas em párias.

Para que fique bem claro: a crescente crise de inflação na Europa mina as posições políticas de quase todos os principais líderes políticos da zona do euro, pois enfrentarão verdadeira fúria popular, à medida que a inflação corrói a classe média, e os altos preços da energia destroem os lucros das empresas.

Há ainda mais, nessa impotência do BCE – um significado mais profundo: o Fed está aumentando as taxas de juros – bem ciente de que está ‘muito atrás da curva’ – para vir a ter impacto significativo na inflação (durante a era Volcker, a taxa dos fundos do Fed atingiu 20%).

Os aumentos do Fed levantam a questão de se teria outros objetivos em mente, além da inflação dos EUA. Powell ficaria muito infeliz, se visse o BCE e a eurozona soçobrando em crise? Possivelmente não. As palhaçadas do mercado (europeu offshore) de eurodólar e as políticas de taxas do BCE têm efetivamente amarrado as mãos de Powell.

Agora, o Fed está agindo de forma independente – e no interesse norte-americano em primeiro lugar – e o BCE enfrenta problemas. Terá de acompanhar o exemplo e aumentar as taxas. O Fed é propriedade dos grandes bancos comerciais de NY. E esses bancos sabem que o ‘conjunto’ Davos-Bruxelas pretende migrar, quando possível, para uma única moeda digital do Banco Central Europeu – movimento que ameaçaria o próprio modelo de negócios dos grandes bancos dos EUA. (Portanto, talvez não seja coincidência que as moedas digitais estejam entrando em colapso, amplamente, no mesmo momento).

Michael Every, do Robobank, escreve:

“Se os EUA vierem a perder o poder do dólar como garantia global – como garantia para commodities – nesse caso também se esvairá o poder da economia e dos mercados [norte-americanos]”.

“Talvez essa lógica não se mantenha, mas hoje um Fed linha-dura extremista sugere que se trate precisamente disso”. Powell dizer, como disse em março, que “pode haver mais de uma moeda de reserva” é certamente um aceno na direção dessa tendência, com a Rússia vinculando o rublo a um grama de ouro, e vinculando energia ao rublo.

Os grandes bancos dos EUA, portanto, com Powell como porta-voz, estão ‘fritando’ ‘Davos’, e deixando Lagarde ser carregada ao sabor dos ventos. Os grandes bancos dos EUA estão pondo em primeiro lugar os interesses financeiros norte-americanos. É enorme diferença em relação à era do Acordo do [Hotel] Plaza (1985).

Do que, afinal, se trata? Trata-se de que a zona do euro da União Europeia foi – por insistência da Alemanha – construída como apêndice do dólar. Diferente disso, o Fed dedica-se agora a tentar conter o deslizamento de commodities rumo à posição de garantia global. E a Europa, com suas predileções ‘davosianas’, está sendo empurrada para baixo do caminhão. Os dólares alavancados no sistema eurodólar estão ‘a caminho de casa’.

Haverá futuro para a zona do euro, dado que, como se sabe, ela é incapaz de se reformar?

O que chama atenção é que todas essas mudanças tectônicas derivam, na essência, da saga da Ucrânia – e de o Ocidente ter-se engajado em guerra financeira de amplo espectro contra a Rússia.

Com isso, o epicentro da fragilidade financeira ocidental entrou em convergência com o epicentro do conflito na Ucrânia, que já se mostra como desastre político em fogo lento, tanto para a Europa como para os EUA.

Com chamas inflacionárias já acesas e ardendo nas respectivas economias, a Europa não poderia ter escolhido pior momento para brincar de boicotar tudo que seja russo.

O significado geopolítico da convergência entre o que é financeiro e o que é militar reside no paulatino ‘retroceder’ dos objetivos (supostamente estratégicos) do Ocidente.

Primeiro, queriam impor derrota militar humilhante a Putin. Depois, enfraquecer militarmente a Rússia, de modo que jamais pudesse repetir sua Operação Militar Especial em outro lugar da Europa. Depois, queriam só obter sucesso militar no Donbass; depois, só em Kherson e Zaporizhzhia. Até que tudo se converteu em mera narrativa, segundo a qual bastaria manter atrito contra as forças russas nos próximos meses, para infligir sofrimentos à Rússia.

Recentemente, o objetivo declarado passou a ser é conseguir que as forças ucranianas continuem na luta, para ter alguma voz em algum ‘acordo de paz’ que talvez aconteça. E, sendo possível, para ‘salvar’ Odessa também. Hoje, o que se diz é que só Kiev pode tomar a dolorosa decisão sobre quanto, de perda soberana de território, podem ‘engolir’ – em nome da paz.

É ‘Game over’. Agora é só jogo de um pôr a culpa no outro.

A Rússia imporá suas próprias condições à Ucrânia, argumentando com fatos militares em campo.

A importância estratégica desses eventos ainda não foi completamente absorvida: os líderes ocidentais, claro, jogaram logo a jogada de ‘anunciar’ que, se tendo revelado inviável qualquer dolorosa humilhação e qualquer derrota militar a ser impingida a Putin… acabou-se a ordem liberal baseada em regras.

É claro que, para mostrar ao mundo que o Ocidente não perdeu totalmente a coragem, a Equipe Biden reinventa a ‘questão’ Taiwan, para cutucar a China. Na recente conferência de segurança de Xangrilá, Zelensky (sem dúvida conversando com teleprompter ocidental) insistiu em que os países asiáticos ‘perderiam’, se esperassem o desenrolar da crise, para agir em nome de Taiwan. Para ‘ganhar’, a comunidade internacional deveria “agir de modo preventivo – não do modo de depois que a guerra já começou” – palavras de Zelensky.

Compreensivelmente, os chineses ficaram furiosos e seguiu-se tensa reunião entre o secretário Austin e o general Wei. Sim, mas… qual é exatamente o objetivo estratégico de provocar a China tão implacavelmente? Quais as táticas mais amplas implícitas nessa estratégia?

E há também o Irã. Após oito rodadas de negociações, parece que os EUA silenciosamente se afastam de qualquer ‘acordo nuclear’ (ing. JCPOA), movimento que sugeria que os EUA estivessem prontos para a conviver com o Irã, definido como ‘estado nuclear limiar’ – perspectiva considerada não tão assustadora ou não tão imediata, para terem como justificar o gasto de capital dos EUA, ou o movimento da Casa Branca, de desviar sua atenção, de ‘largura de banda’ limitada, para temas mais urgentes.

Mas então rapidamente tudo mudou: a Agência Internacional de Energia Atômica, AIEA censurou o Irã; e o Irã, como resposta, desconectando 27 câmeras de vigilância da AIEA. Israel relançou seu programa de assassinato de cientistas iranianos e recentemente cruzou linhas vermelhas, quando bombardeou o aeroporto de Damasco. Israel claramente se esforça para que o Ocidente encurrale o Irã.

Mas… “Estamos à deriva” – disse o ex-enviado dos EUA Aaron David Miller – “esperando que o Irã não force os limites do possível nuclear. Israel não faz coisa realmente grande; e o Irã e seus representantes não matam muitos norte-americanos no Iraque ou em qualquer outro lugar”. Aí quem fala é Miller, mas parece muito o “Isso não é estratégia”, de Lord Richards.

Mas fato é que a guerra na Ucrânia tem importância estratégica, sim, para os EUA e para Israel – mesmo que Miller ainda não tenha percebido. Pois, se a nova ‘doutrina’ da Ucrânia é que Kiev deve fazer concessões dolorosas de território, para alcançar a paz… doutrina boa para o ganso ucraniano é boa também para o ‘ganso’ israelense.

É claro que as ondulações estratégicas que emanam do epicentro da Ucrânia espalharam-se muito mais – para o Sul Global, para o subcontinente indiano e além.

Mas, pergunto, essa análise, até aqui, não é também míope, capenga? Não está faltando uma peça no quebra-cabeça estratégico?

Subjacente, percorrendo tudo que expus até aqui, está sempre, repetindo-se, o tema do desdém de governos ocidentais, que resistem contra se comprometer com a necessária diligência, combinado com uma complexa obsessão cultural com a coesão e absoluta singularidade do próprio discurso. E esse discurso proíbe que qualquer ‘outro’, qualquer ‘alteridade’ penetre nas narrativas-chave.

Será verdade também para Rússia e para China? Não. Não é.

Consideremos, para começar, os objetivos estratégicos da Rússia: redefinir a arquitetura de segurança global e empurrar para trás a OTAN, até as linhas de 1997. Mas com que meios conta a Rússia, para chegar a essa meta ambiciosa?

Bem, viremos agora o telescópio, para ver pelo outro lado. Não há dúvidas de que o Ocidente padece de miopia severa, quando se trata das próprias contradições e falhas internas. Prefere concentrar-se, com exclusividade, nas dos outros.

Sabemos, no entanto, que tanto a China como a Rússia estudaram o sistema financeiro e econômico ocidental e, sim, identificaram ali as contradições estruturais. E não fizeram segredo do que fizeram. E expuseram à plena luz aquelas contradições estruturais (a partir do século 19).

Aparece frequentemente uma analogia com o judô, quando se fala da capacidade do presidente Putin, que usa a força física do oponente contra o oponente, para derrubá-lo.

Não é provável que Rússia e China tenham interpretado assim a indiscutivelmente poderosa musculatura econômica do Ocidente. Mas… e se consideraram a alta probabilidade de o Ocidente ter superdistendido sua grande força? E que nessa superdistensão pode estar o meio de ‘derrubá-lo’? E se fosse só questão de esperar que aquelas contradições econômicas amadurecessem para a desordem?

O futuro da Europa parece sombrio. Está agora pressionado pelas sanções que a própria Europa impôs e pelo salto que delas resultou, nos preços das commodities.

Além disso, a UE está fortemente limitada pela rigidez das próprias instituições, tão grave, que a grande estrutura europeia não consegue nem avançar nem retroceder. A UE zanza atordoada, de um lado para o outro.

Como a Europa conseguirá salvar-se? Rompendo estrategicamente com Washington e fazendo um acordo com a Rússia? Ou será ‘derrubada’ pela ‘muscularidade’ de suas próprias sanções? Deem tempo à Europa. Eventualmente, se entenderá o tempo, como a solução.

NOTAS

* Zugzwang. Do jogo de xadrez. Aplica-se à situação em que o jogador, obrigado a jogar, só tem movimentos que agravarão sua situação. “As pretas estão em Zugzwang”.

** Sobre isso, interessante, aqui.

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