23/10/2019, Pepe Escobar, Asia Times
As negociações em Sochi foram demoradas – mais de seis horas –, tensas e duras. Dois governantes numa sala com seus intérpretes e vários importantes ministros turcos mantidos próximos, para o caso de ser necessário alguma específica consulta. O que ali se discutia era imenso: em resumo, um mapa do caminho para afinal pacificar o nordeste da Síria.
A conferência de imprensa que se seguiu foi, pode-se dizer, esquisita – só se falou de generalidades. Mas não há dúvidas de que no final o presidente russo Vladimir Putin e seu contraparte turco Recep Tayyip Erdogan conseguiram o quase impossível.
O acordo Rússia-Turquia estabelece uma zona segura ao longo da fronteira sírio-turca – ideia em que Erdogan insiste desde 2014. Haverá patrulhas militares conjuntas de russos e turcos. As Unidades de Proteção do Povo (sigla em curdo YPG), parte das chamadas Forças Democráticas Sírias, FDS, alinhadas aos EUA, terão de recuar e terão de ser desmobilizadas, especialmente no trecho entre Tal Abyad e Ras al-Ayn, e terão de abandonar suas tão estimadas áreas urbanas, como Kobane e Manbij. O Exército Árabe Sírio voltará a todo o nordeste. E a integridade territorial síria será preservada – condição absolutamente imperativa, da qual Putin não abriria mão [sobre o acordo, ver também Elijah Magnier Blog (ing.) (traduzido no excelente blog bBacurau, aqui, aqui, aqui e aqui. Não há nada melhor que essas análises, no mundo, em língua portuguesa) NTs].
É acordo de ganha-ganha-ganha entre Síria-Rússia-Turquia – e, inevitavelmente, o fim de um Curdistão Sírio separatista controlado. Significativamente, o porta-voz de Erdogan, Fahrettin Altun, destacou “a integridade territorial” e a “unidade política” da Síria. Esse tipo de retórica de Ancara já não se ouvia há algum tempo.
Putin imediatamente telefonou ao presidente Bashar al-Assad da Síria, para detalhar os pontos chaves do Memorando de Entendimento (MdE, ing. MoU). O porta-voz do Kremlin Dmitry Peskov, mais uma vez chamou a atenção para o principal objetivo de Putin – preservar a integridade do território sírio – e para o importante trabalho que resta pela frente, para formar uma Comissão Síria Constituinte, que detalhe os passos legais rumo a um ainda difícil arranjo político final.
Policiais militares russos e guardas de fronteira sírios já estão chegando para monitorar a retirada imediata doa YPG – para profundidade de 30 km dentro dos limites da fronteira turca. Espera-se que as patrulhas militares conjuntas comecem a operar na próxima 3ª-feira.
No mesmo dia em que isso acontecia em Sochi, Assad visitava a linha de frente em Idlib – de fato, em plena zona de guerra que o exército sírio, aliado à força aérea russa acabará de limpar de todas as milícias jihadistas que ali ainda estão, muitas apoiadas pela Turquia, literalmente, até ontem. Vê-se assim em imagem graficamente muito clara como Damasco, devagar, mas sem interrupção, está recuperando território soberano depois de oito anos e meio de guerra.
Quem fica com o petróleo?
Apesar do suspense e dos incontáveis boatos que que cercaram Sochi, ninguém ouviu sequer uma sílaba sobre elemento absolutamente chave: quem está hoje controlando os campos de petróleo da Síria, especialmente depois do hoje já notório tuíto do presidente Trump, segundo o qual “os EUA já garantiram a segurança do petróleo”. Ninguém sabe de que petróleo fala Trump. Se falou de petróleo sírio, seria ilegal, nos termos da lei internacional. Para nem lembrar que Washington não tem qualquer delegação ou mandato – da ONU ou de quem seja – para ocupar território sírio.
A rua árabe está inundada com vídeos da não exatamente gloriosa retirada de tropas dos EUA, que deixaram a Síria sob chuva de pedradas e tomates podres por todo o caminho até o Curdistão iraquiano, onde foram recebidos por instruções claras: “Todas as forças dos EUA que estão em retirada da Síria foram autorizadas a entrar na região do Curdistão [apenas] para que possam ser transportadas para fora do Iraque. Essas forças não receberam qualquer permissão para permanecerem em território iraquiano” –, palavras do comando militar iraquiano em Bagdá.
O Pentágono diz que uma “força residual” pode permanecer no vale do médio Rio Eufrates, ao lado de milícias das Forças Democráticas Sírias, próximas de uns poucos campos de petróleo, para garantir que o petróleo “não caia em mãos do ISIS/Daech ou outros.” ‘Outros’, na verdade, significa Damasco, legítimo dono do petróleo sírio. Em absolutamente nenhum caso o Exército Árabe aceitará isso, engajado que está agora, em tempo integral, na missão nacional de recuperar as fontes sírias de alimento, agricultura e energia. As províncias do norte da Síria abrigam riquíssimas reservas de água, usinas hidroelétricas, petróleo, gás e alimentos.
No pé em que estão as coisas, a retirada dos EUA é, no melhor dos casos, parcial, considerando também que uma pequena guarnição está ficando para trás em al-Tanf, na fronteira com a Jordânia. Estrategicamente não faz sentido, porque a fronteira em al-Qaem entre Irã e Iraque está agora aberta e em plena operação.
O mapa que aí se vê mostra a posição das bases dos EUA no início de outubro, mas essas informações estão mudando rapidamente. O exército Árabe Sírio já trabalha para recuperar campos de petróleo em torno de Raqqa, mas a estratégica base dos EUA de Ash Shaddadi ainda parece estar ativa. Até bem pouco tempo, soldados dos EUA controlavam o maior campo de petróleo da Síria, al-Omar, no nordeste.
Fontes russas divulgaram acusações de que mercenários recrutados por empresas militares privadas dos EUA treinaram milícias jihadistas, como o Maghawir al-Thawra (“Exército das Tribos Livres”) para sabotar a infraestrutura de gás e petróleo sírios e/ou vender petróleo e gás sírios para subornar líderes tribais e financiar o terrorismo jihadista. O Pentágono nega.
Gasoduto
Como tenho dito há anos, a Síria foi, em grande medida, uma guerra chave do Oleogasodutostão ( ‘Pipelineistan’ war em ing.; artigo traduzido ao português, aqui; não só em termos dos oleodutos e gasodutos dentro da própria Síria, e de os EUA impedirem Damasco de comercializar os próprios recursos naturais, mas principalmente por tudo que se relaciona ao destino do gasoduto Irã-Iraque-Síria, decidido num Memorando de Entendimento firmado em 2012.
Esse gasoduto foi, ao longo dos anos, uma espécie de linha vermelha, não só para Washington mas também para Doha, Riad e Ancara.
A situação deve mudar dramaticamente quando os $200 bilhões previstos para a reconstrução da Síria realmente começarem a ter efeitos, depois de construído um amplo acordo de paz. Será fascinante assistir à União Europeia – depois de a OTAN tanto ter conspirado em operações de mudança de regime tipo “Assad tem de sair” – obrigada a cortejar Teerã, Bagdá e Damasco, oferecendo-lhes incontáveis propostas financeiras em troca do gás ‘regional’.
A OTAN apoiou explicitamente a ofensiva turca “Operação Primavera de paz” (ing. Operation Peace Spring). E ainda nem assistimos à máxima ironia geoeconômica: a Turquia, membro da OTAN, expurgada de seus sonhos neo-otomanos, alegremente integrada ao mapa do caminho do Oleogasodutostão Irã-Iraque-Síria apoiado pela Gazprom.*******
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