Vivendo nos escombros da cidade de Gaza

Huda Skaik – 05 de outubro de 2025

“Enquanto os olhos do mundo se voltam para a proposta de Trump, nós aqui vivemos o que parece ser o desaparecimento da própria Gaza.”

CIDADE DE GAZA – A cidade de Gaza é uma cidade fantasma. A escuridão, a fumaça e as sombras pairam sobre ela, iluminada apenas pelo brilho vermelho das explosões. A cidade se assemelha a cenas de filmes apocalípticos – histórias sobre o fim do mundo, catástrofes humanas e guerras globais. As casas estão abandonadas, as ruas estão vazias e a morte nos cerca por todos os lados.

Todas as manhãs, novos panfletos caem do céu como neve, ordenando que deixemos a cidade de Gaza e sigamos para o sul. A maioria dos residentes ignora os panfletos. Algumas crianças os recolhem – não para ler, mas para queimar como combustível para cozinhar; para ferver o pouco de arroz ou lentilhas que possam ter. A ironia é insuportável: os mesmos papéis que exigem nossa partida agora mantêm nossas pequenas fogueiras acesas.

A cada dia, a sobrevivência fica mais difícil, mais pesada. Tarefas básicas se tornam lutas insuperáveis. Os preços continuam subindo e quase não há nada para comprar. As ondas de deslocamento que antes enchiam as ruas diminuíram para um fio.

Para buscar água, é preciso caminhar longas distâncias carregando vasilhames pesados, arriscando-se a ser atingido por tanques e balas de quadricópteros ao longo do caminho. A lenha para cozinhar é inacessível, já que 1 kg custa cerca de US$ 2, o que só dá para aquecer uma chaleira de chá.

É muito difícil encontrar comida de boa qualidade, e ela é extremamente escassa porque as passagens estão fechadas e os comerciantes não podem mais trazer mercadorias do sul, já que a principal estrada costeira está fechada.

Os poucos vendedores se reúnem em áreas como o cruzamento de Al-Saraya, no bairro de Al-Rimal, a oeste da cidade de Gaza. Os poucos itens disponíveis nas barracas do mercado são inacessíveis e pouco saudáveis – principalmente alimentos açucarados como Nutella, biscoitos, queijos, batatas fritas e macarrão, que não fornecem proteína suficiente ao corpo.

Os produtos enlatados são ainda mais escassos e caros. Apenas 250 gramas de café custam agora US$ 38 no norte, enquanto a mesma quantidade custa US$ 16 no sul. Os itens que fortalecem nosso corpo, como vegetais, frutas, ovos, frango e carne, não estão disponíveis há muito tempo.

Interseção Al-Saraya no bairro Al-Rimal da cidade de Gaza – 04 de outubro de 2025. (Crédito da foto: Khamis Al-Rifi.)

Produtos de limpeza são extremamente raros, especialmente lenços de papel e absorventes higiênicos. É quase impossível obter medicamentos, deixando os doentes e idosos desamparados. A maioria dos profissionais de saúde deixou a cidade de Gaza com suas famílias e é difícil obter tratamento médico. O hospital Al-Shifa mal está funcionando.

Poucos jornalistas permaneceram. A cobertura da cidade de Gaza diminuiu porque muitos repórteres fugiram, e os que permaneceram operam com uma espécie de coragem racionada: movendo-se apenas quando necessário e assumindo riscos calculados em relação a um conjunto cada vez menor de recursos.

Desde o mês passado, a ocupação israelense intensificou seus ataques noturnos para assustar as pessoas e abrir caminho para suas tropas. Eles nos bombardeiam para proteger seus soldados e cometem massacres. Todas as noites, há bombardeios e ataques implacáveis, incluindo drones, caças, ataques aéreos, fogo de artilharia, helicópteros e explosões de robôs controlados remotamente e carregados de explosivos, com as forças armadas israelenses destruindo bairros inteiros à medida que avançam. Os robôs destroem quarteirões inteiros da cidade – uma tática usada pela primeira vez durante esta operação terrestre na cidade de Gaza. Eles não estão longe. A sobrevivência tornou-se nada mais do que uma aposta diária. Esperamos que a morte possa chegar a qualquer momento e que qualquer minuto possa ser o nosso último.

Os ataques se intensificam a cada dia. Ouço os projéteis da artilharia atingindo os distritos oeste e leste, drones zumbindo acima de nossas cabeças, bombardeios em massa e ataques aéreos, balas de helicópteros Apache e quadricópteros, e tanques avançando. E ouço as explosões dos robôs controlados remotamente. A ocupação continua emitindo avisos de desocupação para prédios residenciais que mais tarde são alvos, espalhando o pânico e deixando as pessoas sem teto.

À noite, a cidade é mergulhada em uma escuridão profunda – uma paisagem vazia e espectral iluminada apenas por chamas gigantescas. É silenciosa, exceto pelos sons do genocídio, enquanto eles trabalham para nos exterminar e destruir nossa cidade. Nessas horas, é impossível descansar ou dormir. Cada explosão traz consigo outra pergunta: nosso prédio será o próximo? Os tanques cercarão nosso bairro? O próximo projétil destruirá nossa casa? Acordaremos presos? Seremos forçados a nos deslocar, deixando tudo para trás?

Todas as noites, fico acordada em meu colchão e minha mesinha, tentando estudar para as provas finais e enviar meus trabalhos. Mas acabo apenas contando os segundos entre o estrondo das explosões e o barulho dos tiros dos tanques. O chão treme à medida que as forças israelenses se aproximam do meu bairro, Al-Rimal, e me pergunto se esta será a noite em que chegarão até nós. A preocupação é constante, pressionando meu peito como um peso que não consigo levantar. Cada noite parece mais longa e mais escura do que a anterior. Para aqueles que ainda permanecem na cidade de Gaza, é assim que são as noites – intermináveis e pesadas de medo.

A rua Al-Rashid, a principal via costeira que liga o norte e o sul de Gaza, foi fechada na quarta-feira. O exército israelense proibiu qualquer movimento do sul para o norte. O movimento do norte para o sul – para deslocamento – ainda é permitido, embora sem nenhuma garantia de segurança.

Rua Al-Rashid em 04 de outubro de 2025. (Crédito da foto: Khamis Al-Rifi.)

Na sexta-feira, tanques e tropas israelenses avançavam sobre o bairro de Tel al-Hawa, na parte oeste da cidade de Gaza. Naquela noite, os ataques foram implacáveis e violentos. Houve inúmeros e intensos ataques aéreos em diferentes áreas da cidade de Gaza. Pensamos que eles invadiriam pela manhã.

Depois que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, apresentou um plano de 20 pontos para o cessar-fogo em Gaza, ele estabeleceu um prazo para o Hamas responder até domingo. Na manhã de sexta-feira, acordamos com a notícia de que o Hamas havia sinalizado um acordo condicional com partes do plano, enquanto insistia em salvaguardas e novas negociações sobre pontos-chave.

Em resposta, Trump instou publicamente Israel a “parar imediatamente de bombardear Gaza” para tornar a libertação dos reféns mais segura – um raro momento de pressão direta dos EUA sobre as operações militares de Israel. As forças armadas israelenses também anunciaram que começariam os “preparativos para a primeira fase” do plano de Trump.

Enquanto os olhos do mundo se voltam para a proposta de Trump, nós aqui vivemos o que parece ser o apagamento da própria Gaza. O que está acontecendo no terreno é totalmente diferente. Os tanques ainda estão na cidade e nunca se retiraram. O drone quadricóptero sobrevoava a área de Kanz, no bairro de Al-Rimal, no centro da cidade de Gaza, e também nas áreas ocidentais da cidade. Também houve bombardeios pesados de artilharia no sábado em torno da área da universidade, na parte oeste da cidade de Gaza, e os bombardeios continuam enquanto escrevo.

As forças armadas israelenses afirmam que suas tropas passaram a realizar operações defensivas. Mas, no sábado, cometeram um massacre brutal contra a família Abdel Aal, com pelo menos 18 mártires, a maioria crianças, mortos em um ataque aéreo à casa da família no bairro de Al-Tuffah, na parte leste da cidade de Gaza. Mais de 30 pessoas ficaram feridas, a maioria delas crianças. Há mais de 20 pessoas ainda soterradas sob os escombros. Um massacre horrível, e quase não há capacidade para atendimento médico, e as equipes de defesa civil não têm capacidade para resgate nessa área.

Mesmo com os rumores de um cessar-fogo ficando mais fortes no exterior, aqui na cidade de Gaza vivemos em um estranho limbo, suspensos entre a esperança e a aniquilação. Se o plano de Trump se tornar uma ferramenta para forçar um fim real, verificável e imediato aos ataques israelenses, libertar os prisioneiros de ambos os lados e obter acesso humanitário, então há uma pequena chance de começar o trabalho quase impossível de reconstrução. Se o plano falhar, Gaza será completamente destruída e as pessoas serão massacradas.

Os palestinos em Gaza estão cautelosamente otimistas com a proposta de cessar-fogo, mas ainda há uma profunda sensação de preocupação. As pessoas no norte têm alguma esperança de que não serão mais deslocadas para o sul. Vidas serão salvas. Os deslocados para o sul sonham em retornar às suas casas na cidade de Gaza e em outros lugares do norte. Eles têm esperança de que as cenas de alegria, alívio e takbirs [em sentido literal, significa algo como “Deus é grande”, “Deus é o maior de tudo” – nota da tradutora] em janeiro, quando centenas de milhares retornaram ao norte, se repitam.

A perspectiva de um cessar-fogo não é uma questão política, é uma questão de sobrevivência. É uma questão de saber se as famílias viverão para ver outro dia. A única pergunta que passa pela cabeça de todos aqui é: será que este genocídio em curso finalmente terminará desta vez, ou será que os bombardeamentos recomeçarão pouco depois de cessarem? Porque se esta oportunidade for perdida, Gaza poderá não sobreviver.

Nota da tradutora: Huda Skaik é uma estudante de literatura inglesa e escritora de Gaza. Ela tem grande interesse em reportagem e escrita. É membro da WANN e também colaboradora do The Intercept, MEE, The New Arab, The Nation, EI e WRMEA. Contato: @hudaskaik

Fonte: https://www.dropsitenews.com/p/gaza-city-erasure-ceasefire-proposal-airstrikes-hunger?r=1mg0b&utm_campaign=post&utm_medium=web


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