Vitória pírrica ou derrota estratégica?

Quantum Bird – 02 de novembro de 2022

As eleições federais acabam de ser concluídas no Brasil e o resultado – apesar da relutância da militância de “esquerda” – foi o esperado: Lula foi eleito presidente, pela terceira vez. Lula derrotou Bolsonaro por uma margem de aproximadamente 1%, em um universo de quase 100 milhões de votos úteis.

O profundo descrédito acumulado doméstica e internacionalmente por Bolsonaro, que executou um mandato caótico, reduzindo o Brasil a um anão geopolítico, e marcado por crimes, desmandos, corrupção, perda de controle sobre a economia, privatizações de recursos estratégicos e mais uma miríade de acontecimentos incrivelmente bizarros sugeriria, de acordo com a lógica mais simples, uma vitória de Lula por avalanche, ainda no primeiro turno.

[Sidebar: As pesquisas de opinião nunca indicaram que isto aconteceria, mas os institutos de pesquisa não são minimamente confiáveis no Brasil, portanto, deixemos de lado a pseudo-informação vinda dessas pesquisas.]

A “esquerda” não foi capaz de impor a Bolsonaro, e seu mítico “bolsonarismo” – imbecilismo seria termo mais adequado – uma derrota clara e definitiva. Nas linhas seguintes examino alguns dos fatores conjunturais e os prospectos para o exercício da presidência por Lula.


Militância eufórica e woke: a sexta-coluna brasileira

Jair Bolsonaro projetou-se durante o impeachment de Dilma Rousseff como um proxy de Olavo de Carvalho e militares rebeldes de alta patente, liderados pelo General Villas Boas, e acabou eleito em 2018 como resultado do colapso da estratégia da direita e quinta-coluna nativas, que apresentaram Geraldo Alkimin, então no PSDB – agora no PSB e vice-presidente de Lula (sic) – como candidato a presidente. A quinta-coluna surfou a onda do antipetismo fomentado por quase 20 anos por alguns dos setores, mas foi derrotada por algo ainda mais visceral: o discurso de ódio puro, difuso e imbecilizado, catalisado por Bolsonaro. Alkimin não passou ao segundo turno, e seus proponentes apoiaram automaticamente Bolsonaro contra Fernando Haddad, do PT. Lula estava então preso ilegalmente, sob ordem de Sérgio Moro, um dos líderes da famigerada operação Lava-Jato e agora eleito Senador por seu estado, o Paraná.

A militância de “esquerda”, que tolerou o golpe contra Dilma Rousseff e não conseguiu evitar a prisão de Lula, nunca foi capaz de entender e combater o bolsonarismo. De fato, os estrategistas wokes da campanha de Haddad preferiram se desconectar da realidade da maioria dos trabalhadores, e desprezar outros fatores táticos bem concretos, como por exemplo a profunda capilaridade do bolsonarismo nas redes sociais, igrejas evangélicas e forças de ordem do Estado, para aderir à sinalização de virtudes e ridicularização (memes) para contrapor-se a Jair Bolsonaro. As “virtudes sinalizadas” foram extraídas, como sempre, do wokeismo e do identitarismo que sensibilizam apenas um pequeno setor da classe média urbana, que por outro lado é majoritariamente reacionário e ideologicamente escravista. Slogans como o “O amor vai vencer o ódio” dizem muito pouco para uma população de trabalhadores vivendo em uma situação de vulnerabilidade permanente e expostos ao assalto cognitivo das redes sociais e a uma violência urbana avassaladora.

Os últimos quatro anos do Brasil sob Jair Bolsonaro viram o aprofundamento e consolidação do wokeismo e do identitarismo como atitudes ideológicas dominantes entre os militantes de “esquerda”. Esta militância aderiu massivamente ao “Ele não”, “Fora Bolsonaro” e denunciou incansavelmente o governo como fascista e opositor das diretivas civilizatórias wokeistas, reagindo a clickbaits políticos com memes, e sinalizando virtudes e cancelando vozes dissidentes, reiteradamente. Tudo isto enquanto ignorava o desmonte da infraestrutura econômica e industrial do Brasil. Por exemplo, protestos massivos foram organizados ao longo dos anos durante, e ao redor, das Paradas ao Orgulho Gay, mas poucos moveram um dedo para defender a Eletrobras ou a Petrobras da privatização. Durante a pandemia, esta “esquerda” aderiu e legitimou a erosão dos direitos humanos atacados durante o estabelecimento de lockdowns e apoiou amplamente a inviabilização da estrutura sanitária nacional para fabricação de vacinas, favorecendo as multinacionais da Big Pharma. Por fim, a mesma “esquerda”, que denunciou Bolsonaro como fascista por quatro anos, posicionou-se ao lado do Ocidente Coletivo e do Regime Nazista em Kiev, quando a Operação Militar Especial Russa foi lançada para defender a População do Donbass na antiga Ucrânia.

Tudo isto contribuiu para formar um quadro de desconexão com a realidade e dissonância cognitiva que produziu anomia na população e desmobilização das entidades e quadros representativos da agenda de esquerda real, trabalhista e soberanista, abrindo espaço para a formação de alianças amplas à direita, articuladas de modo a sinalizar as devidas virtudes wokes à massa de trabalhadores e desempregados que tomou conta das ruas do país, mas sem qualquer detalhamento real a respeito do que de fato importa, ou seja, a agenda econômica e a recuperação dos recursos liquidados a toque de caixa por Bolsonaro. O próprio vice de Lula é um quadro orgânico da quinta-coluna nativa, e sua escolha passou ao largo das opiniões da militância mais crítica e comprometida. A militância woke, por outro lado, papagaia ad nauseum slogans vazios como “garantia de governabilidade”, “ele (Alckmin) mudou e busca redenção” e outros disparates.

Instituições renegadas

A perda de controle sobre as instituições começou ainda no primeiro mandato de Lula, que perdeu por pura inépcia o controle da ABIN. Desde o início, o principal fomentador da erosão da ordem institucional é o STF, que passou a atuar como um partido político de oposição ao governo de esquerda, em colusão com a mídia nativa e conspirando com os partidos políticos da direita quinta-colunista e interesses transnacionais. Nos anos seguintes, a rebelião reacionária alastrou-se para setores inferiores do Judiciário e Ministério Público – vide Operação Lava-Jato – Polícias Federais (judiciária e rodoviária) – policiais federais postaram rotineiramente vídeos nas redes sociais treinando tiro de pistola em alvos com o rosto da presidente Dilma Rousseff, sem sofrerem punições além de uma reprimenda. O quadro de balburdia institucional logo se alastrou para a sociedade civil, para o baixo clero do Judiciário e contaminou as polícias estaduais e municipais. Boicotes promovidos por caminhoneiros e apoiados pelas instituições que deveriam reprimi-los, judicial e criminalmente, se tornaram comuns. As instituições renegadas da República, que agora incluíam também o alto-comando das forças armadas, toleraram oficialmente, e fomentaram nos bastidores, todo tipo de ação que pudesse minar o governo de esquerda e contribuíram para jogar o país no abismo da crise institucional.

Entretanto, a caixa de Pandora da anarquia institucional que foi aberta para debelar o governo de Dilma Rousseff e prender Lula não pode mais ser fechada. E aqueles que a abriram perderam o controle sobre os ânimos raivosos que liberaram. Bolsonaro tornou-se o seu catalisador e representante.

Enquanto escrevo este artigo, caminhoneiros estão bloqueando estradas – com o apoio de policiais rodoviários federais e estaduais – protestando contra o resultado das eleições. Atos de vandalismo e boicote econômico estão se intensificando nos estados onde Bolsonaro venceu. A continuação dessa situação fatalmente exigirá o emprego das forças armadas para restabelecer a lei e a ordem. Mas isso é problemático, pois as forças armadas são majoritariamente ocupadas por comandantes rebeldes e bolsonaristas, e tal ação seria amplamente interpretada pela metade da população que elegeu Lula como um golpe de Estado, o que fatalmente aprofundaria o caos institucional.

O grande jogo geopolítico

O cenário doméstico de convulsão institucional operante desde 2008, aliado à política externa inepta e caótica de Dilma Rousseff, bem como o alinhamento desastrado do Brasil aos EUA de Trump, promovido por Bolsonaro, reduziram o país a um membro irrelevante das instituições que o próprio Brasil protagonizou e ajudou a criar, como o G20 e os BRICS. A ausência de uma política externa coerente e nacionalista, converteu o Brasil em um play-ground das potências econômicas ocidentais e da China, que têm adquirido a valores irrisórios o patrimônio estratégico nacional. A economia nacional foi adicionalmente financeirizada, levando a uma desindustrialização profunda. Tudo isto ocorrendo concomitantemente com uma precarização histórica do trabalho assalariado, que tem convertido as cidades brasileiras em verdadeiras zonas de guerra do tráfico de drogas, e reativado redes de prostituição e tráfico internacional de seres humanos.

Just another talking head ? (apenas uma cabeça falante?)

Em seu discurso, realizado logo após a divulgação dos resultados da eleição, Lula fez, como de costume, excelente uso da retórica. Principalmente se comparado às (não) intervenções de seu bizarro oponente. Se deixarmos de lado a euforia que contagiou a militância woke de “esquerda”, que vivenciou tudo como um carnaval fora de época, e analisarmos o que foi efetivamente sinalizado, somos forçados a admitir que os prospectos são sombrios. Lula citou a necessidade de restaurar urgentemente o contatos comerciais com a UE e os EUA, falou superficialmente sobre a restauração da economia, citou an passant os BRICS e nada mencionou sobre a recuperação das empresas estatais estratégicas que foram liquidadas pela dupla Jair Bolsonaro e Paulo Guedes. Temas irrelevantes, integrantes do receituário woke, como “energia verde” e aquecimento global mereceram espaço amplo no discurso, enquanto nenhum aceno foi de fato feito ao Sul Global.

Por quanto tenha sido importante afastar Bolsonaro da presidência do país, a verdade é que a vitória de Lula não foi, e nem pode ser lida, em nenhuma medida como uma vitória da esquerda, tão pouco dos setores progressistas e soberanistas do país.

É tudo sobre a consolidação de uma coalizão de centro-direita para recolocar nos trilhos uma economia fortemente desregulamentada e reestabelecer uma certa normalidade institucional no país, sem entretanto mudar as regras do jogo. O papel de Lula nessa coalizão pode muito bem se limitar a trazer os votos e fazer a interlocução com o povo. Uma espécie de neoliberalismo com uma face humana.

Algumas evidências desse arranjo já estão disponíveis. Geraldo Alckmin e Aloísio Mercadante – que não goza da confiança de Lula – estão liderando a equipe de transição de governo. Bolsonaro pode ter perdido a eleição, mas obteve mais votos do que nunca, já conta com sua tropa de lunáticos raivosos ocupando as ruas em diversas localidades – pedindo intervenção militar – e sabotando a rede logística de distribuição de alimentos e combustíveis do país. Bolsonaro endossou tais atividades em declaração recente. Ao mesmo tempo, o que transpira dos bastidores sobre a formação do novo governo não inspira nada de positivo. Por exemplo, Simone Tebet – fortemente ligada ao agrobusiness no Mato Grosso do Sul – condicionou seu apoio a Lula no segundo turno a sua indicação para o Ministério da Educação.

Assim, tudo somado, somos forçados a contemplar a possibilidade de que a vitória de Lula nas eleições de 2022 represente um mero avanço tático em uma Guerra Pírrica ou, o que parece ainda mais provável, represente uma derrota estratégica para a esquerda histórica e trabalhista, que foi substituída pelos wokes com sua agenda verde e identitária, e pode muito bem ficar sem qualquer representação no novo governo.


5 Comments

  1. Thereza CB Coelho said:

    Você está mal informado. A militância de “esquerda”, NÃO tolerou o golpe contra Dilma Rousseff. Ela apenas não controlava a mídia pela qual você se informou. A esquerda brasileira é minoria, por isso teve que fazer concessões para atrair o centro e formar maioria. Na guerra de narrativas, decorrente da formação de dois blocos políticos antagônicos, é necessário simplificar discursos. Embora eu não goste do discurso “o amor vai vencer o ódio”, ele representa bem a diferença entre um bloco que cultua a morte e outro que defende a vida. É um argumento que usa simbologia moral fácil de ser assimilada pelo povo comum. As pautas identitárias são necessárias porque refletem a realidade do machismo (presente também na esquerda, veja a Rússia), da homofobia, do racismo. Nem toda a esquerda considera que a luta de classes é a única que interessa. A opressão e a injustiça têm muitos modos de se manifestar. E quem não vive o cotidiano de uma mulher, um negro ou um gay não tem autoridade para negar a importância de nossas pautas. Por fim, desqualificar (e não fazer uma crítica fundamentada) uma parte da esquerda ao invés de debater as diferenças só nos enfraquece.

    4 November, 2022
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  2. Maria Elisa said:

    Lula, aos 77 anos, será um mero fantoche nas mãos da esquerda globalista. Ele vai passar a presidência viajando e trocando afagos com os dirigentes das Instituições globalistas e vai deixar a política econômica nas mãos dos financistas, com Henrique Meirelles na liderança.

    4 November, 2022
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  3. JF said:

    Parabéns, grande artigo.
    Põe os pingos (que foram omitidos) nos “i”s.
    Mostra os descaminhos da “esquerda” liberal (o que é uma contradição em termos).
    Estranha “esquerda” que é apoiada por Biden/embaixada dos EUA, pelo Financial Times e por The Economist.
    Podia acrescentar que um dos primeiros gestos de Lula é ir ao Fórum de Davos — para tranquilizar o capital.
    Pobre Brasil.

    3 November, 2022
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    • Salvador said:

      A doutrina de mudança é essencialmente uma aceitação dos fatos atuais e um planejamento de correção futura.

      A ruptura radical com conceitos de revolução não cabe mais num mundo interrelacional, e então é necessário dizer o que o professor Jabbour sempre comenta: saímos de ponto de desequilíbrio para outro ponto de desequilíbrio.

      Ao final estaremos num caminho de melhoria social.

      6 November, 2022
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  4. nofffuture said:

    Não é verdade que a esquerda brasileira apoiou US e Ucrânia. Na verdade, foi o contrário. A grande maioria adotou a mesma visão que Lula: ambos os lados estavam errados em não negociar, mas Zelensky e Biden estavam ainda mais errados por terem praticamente forçado a ocorrência da guerra em função da ideologia neonazista e da expansão da OTAN. Quem aderiu mesmo ao discurso da OTAN foi a grande mídia.

    3 November, 2022
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