Vendo a Ucrânia pelas lentes de Davos

Conor Gallagher – 22 de janeiro de 2023

Tenho certeza de que todos estão um pouco de saco cheio de Davos, mas ao ler as notícias do FEM [Fórum Econômico Mundial – nota do tradutor] e da Ucrânia esta semana, não pude deixar de conectar a ideologia do FEM à autoimolação da Europa. Também é interessante contrastar as ideias do FEM para organização social com aquelas expostas nos dias de hoje na peça de Linda M. Nicholas e Gary M. Feinman que argumentam que o que tornou a antiga cidade de Monte Albán tão duradoura e amplamente bem-sucedida foi sua relativa igualdade de estilo de vida, sua ação coletiva e produção econômica localizada.

Uma pergunta comum desde que a guerra da OTAN contra a Rússia na Ucrânia realmente começou em fevereiro passado é por que diabos a Europa iria concordar com os neoconservadores americanos em suas políticas que estão levando a Europa à desindustrialização e a uma crise energética duradoura, enquanto os EUA colhem a recompensas nas exportações de GNL? Afinal, esses são alguns dos mesmos países que disseram não à Guerra do Iraque e assistiram Washington estragar essa tarefa, assim como no Afeganistão e em seus esforços de mudança de regime na Síria. Do Wolfgang Street:

Isso torna ainda mais surpreendente que os países europeus, aparentemente sem qualquer debate, tenham deixado completamente a administração da Ucrânia para os Estados Unidos. Com efeito, isso representa um principal entregando a gestão de seus interesses vitais para um agente com um registro público recente de incompetência e irresponsabilidade.

Os líderes europeus não poderiam ver que o plano de guerra por procuração ucraniano era míope e iria dizimar suas economias? Político relatou na semana passada:

Em sua cúpula final de 2022 em dezembro, os líderes da UE insistiram que ouviram o chamado. A reunião produziu uma instrução à Comissão Europeia para elaborar rapidamente propostas “com vista a mobilizar todas as ferramentas nacionais e da UE relevantes” para enfrentar a dupla crise energética e de competitividade que atinge a indústria europeia. A questão deve dominar uma cúpula de líderes da UE marcada para 9 e 10 de fevereiro.

Os líderes europeus realmente levaram 10 meses para aceitar esse fato? Ou é possível que eles simplesmente não se importem? Davos é um lembrete da visão de mundo desses líderes, que é encapsulada pelo FEM e sua ideia de uma elite capitalista transnacional. A indústria nacional é um conceito ultrapassado para eles, e a Rússia representa uma ameaça existencial à sua ideologia de governo oligárquico. O FEM atua essencialmente como uma empresa de consultoria capitalista e de guerra, além de um gigantesco lobby. Diana Johnstone, ex-secretária de imprensa do Grupo Verde no Parlamento Europeu, escreve:

[O FEM] é poderoso hoje porque está operando em um ambiente de Capitalismo de Estado, onde o papel do Estado foi amplamente reduzido a responder positivamente às demandas de tais lobbies, especialmente do setor financeiro. Imunizados por doações de campanha contra os desejos obscuros das pessoas comuns, a maioria dos políticos de hoje praticamente precisa da orientação de lobbies como o FEM para lhes dizer o que fazer.

Além dessa orientação, o programa Young Global Leaders [Jovens Líderes Globais – nota do tradutor] do FEM ajuda a espalhar esse lodo pelos corredores do poder europeu. Aqui está uma lista daqueles [egressos do programa – nota do tradutor] que pude encontrar que estão atualmente no governo europeu ou em outras posições notáveis, e sem dúvida há muitos mais:

  • Alexander De Croo, primeiro-ministro da Bélgica
  • Emmanuel Macron, presidente da França
  • Sanna Marin, primeira-ministra finlandesa
  • Annika Saarikko, Ministra das Finanças da Finlândia
  • Annalena Baerbock, ministra das Relações Exteriores da Alemanha
  • Amélie de Montchalin, ministra francesa da transição ambiental e coesão territorial
  • Tomas Pojar, ministro das Relações Exteriores tcheco
  • Virginijus Sinkevičius, Comissário Europeu para o Ambiente
  • Eva Maydell, membro do Parlamento Europeu da Bélgica; sua grande prioridade é promover um mercado único digital
  • Leo Varadkar, o irlandês Taoiseach
  • Lea Wermelin, Ministra Dinamarquesa do Meio Ambiente
  • O primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis, foi indicado apenas para um lugar como Líder Global para o Futuro do FEM, mas tem sido tentando provar seu valor desde então.
  • Chrystia Freeland, ela é vice-primeira ministra do Canadá, mas incluída aqui por causa de sua sinergia com Victoria Nuland e suas metas fascistas no exterior, especialmente na Ucrânia
  • Kalin Anev Janse é o Diretor Financeiro e Membro do Conselho de Administração do Mecanismo Europeu de Estabilidade, que trabalha para forçar a austeridade e a privatização nos países da zona do euro.
  • Klaus Regling, que foi chefe do Mecanismo Europeu de Estabilidade desde a sua criação em 2012 até o ano passado.
  • Dra. Katarzyna Pisarska, Fundadora e Diretora da Visegrad School of Political Studies, que reúne jovens políticos, ativistas da sociedade civil, jornalistas e funcionários públicos dos países do Grupo Visegrád. Você pode conhecer o Visegrad Group por sua conta no Twitter Visegrad24, que celebra certos elementos das forças armadas da Ucrânia:

Todos os anos, os soldados do Regimento Azov se reúnem na noite mais curta do ano para homenagear seus irmãos de armas caídos.

Este ano, especialmente depois de Azovstal, eles tiveram mais homens para homenagear do que nunca.

Através de novos recrutas, o grupo cresceu significativamente em tamanho desde Azovstalpic.twitter.com/STQDWfSkM2

— Visegrád 24 (@visegrad24)24 de dezembro de 2022

E há mais centenas de jovens líderes globais em finanças, ONGs, mídia, academia e níveis mais baixos de governo, quase todos trabalhando lado a lado para realizar suas crenças comuns que geralmente são neoliberais, corporativistas, antidemocráticas e exibem um desdém enorme pela classe trabalhadora. Esses “líderes globais” realmente se importam se o que resta da indústria de seus países precisa ser realocado para os EUA ou outro lugar? Afinal, para eles a soberania nacional está ultrapassada. Como Thomas Fazi escreve em Unherd:

Samuel Huntington, a quem se atribui a invenção do termo “homem de Davos”, argumentou que os membros dessa elite global “têm pouca necessidade de lealdade nacional, veem as fronteiras nacionais como obstáculos que felizmente estão desaparecendo e veem os governos nacionais como resíduos do passado cujas única função útil é facilitar as operações globais da elite”.

O “homem de Davos” também acredita que a classe trabalhadora logo será substituída por Inteligência Artificial. Ele terceiriza empregos há anos e acredita que uma maior desindustrialização ajudará na transição ecológica. Johnstone descreve como os Verdes influenciados pelo FEM na Alemanha querem refazer a indústria do país:

Os Verdes não esqueceram o meio ambiente e veem a “neutralidade climática” como a “grande oportunidade para a Alemanha como um local industrial”. O desenvolvimento de “tecnologias de proteção do clima” deve “fornecer impulso para novos investimentos”. Seu programa exige a criação de um “euro digital”, “identidades digitais” móveis seguras e “serviços administrativos digitais”.

De fato, o programa econômico verde se parece muito com o Great Reset defendido pelo Fórum Econômico Mundial de Davos, com uma nova economia centrada nas mudanças climáticas, inteligência artificial e digitalização de tudo.

Aqui está a “jovem líder global” [egressa do programa do FEM – nota do tradutor] e atual ministra das Relações Exteriores alemã do Partido Verde, Annalena Baebock, explicando por que ela não ouve as preocupações dos alemães sobre perdas de empregos ou congelamento até a morte:

FM alemão: Colocarei a Ucrânia em primeiro lugar “não importa o que meus eleitores alemães pensem” ou o quão difícil sua vida se torne.pic.twitter.com/GwAqIZ2jL7

— Ignorância, a raiz e o caule de todo mal (@ivan_8848)31 de agosto de 2022

Vladimir Putin também foi um jovem líder global do FEM. Aqui está Klaus Schwab, o fundador e presidente executivo do WEF e homem com o plano de descartar o governo do povo em favor do governo de interesses corporativos, gabando-se de que Putin era membro de seu programa Young Global Leaders:

Eles não anunciam mais tanto, já que Putin se tornou um traidor da causa do FEM. A Rússia foi um dos principais tópicos de discussão na reunião de Davos deste ano, cujo tema foi “cooperação em um mundo fragmentado”, com o que eles querem dizer que o mundo agora está fragmentado devido à recusa da Rússia e da China em se ajoelhar. Tanto Moscou quanto Pequim representam uma ameaça existencial à ideologia do FEM porque, como Michael Hudson explicou repetidamente, a verdadeira batalha travada é entre a oligarquia financeira em nome da multidão de Davos e uma economia mista público-privada em lugares como Rússia, China e outros lugares no sul global.

A fragmentação das sociedades ocidentais não estava em pauta, mas as pesquisas europeias mostram claramente uma ruptura.

Na Pesquisa de outono sobre os principais desafios dos nossos tempos na UE, 70% dos entrevistados da classe trabalhadora acreditam que a guerra na Ucrânia teve sérias consequências financeiras para eles pessoalmente; apenas 49% dos entrevistados da classe alta acreditam no mesmo. Apenas quarenta e cinco por cento dos inquiridos da classe trabalhadora estão satisfeitos com o envolvimento da UE na Ucrânia; contra 71% por cento da classe alta que está.

Esses números são notáveis ​​quando se considera a campanha de propaganda sem precedentes na Europa. Como Wolfgang Streeck coloca em New Left Review, na Alemanha qualquer questionamento sobre a guerra é silenciado mesmo quando a ameaça de aniquilação nuclear cresce:

Aqueles dispostos a fazer uma leitura atenta dos pronunciamentos públicos da coalizão governista podem reconhecer vestígios de debates acontecendo nos bastidores, sobre a melhor forma de evitar que o Grande Sujo fique no caminho do que pode estar vindo para eles. Em 21 de setembro, um dos editores-chefes da FAZ, Berthold Kohler, um linha-dura como nunca houve, observou que mesmo entre os governos ocidentais “o impensável não é mais considerado impossível”. Em vez de se deixarem chantagear, no entanto, os ‘estadistas’ ocidentais precisam reunir ‘mais coragem… se os ucranianos insistirem em libertar todo o seu país’, uma insistência contra a qual não temos o direito de discutir. Qualquer “acordo com a Rússia às custas dos ucranianos” equivaleria a “apaziguamento” e “traição aos valores e interesses do Ocidente”, os dois felizmente convergindo.

A falta de apoio das pessoas para “morrer por Sebastopol” é semelhante à sua falta de vontade de seguir planos para destruir suas vidas e escravizá-las a um sistema tecnocapitalista de exploração, e talvez seja por isso que planos como este estão sendo lançados:

O último relatório Konzept do Deutsche Bank intitula-se “O que devemos fazer para reconstruir” e observa que “Será necessário um certo grau de eco-ditadura”.https://t.co/UsJRGfa0Bo pic.twitter.com/OIzpkin9V5

— Izabella Kaminska (@izakaminska)19 de dezembro de 2022

Enquetes europeias mostram grande divergência em questões trabalhistas, como 52% da classe trabalhadora classificando as condições justas de trabalho como as mais importantes para o desenvolvimento social e econômico da UE. Apenas 30 por cento da classe alta se sente da mesma maneira. E 66% da classe trabalhadora da UE sentem que sua qualidade de vida está piorando; apenas 38 por cento da classe alta se sente da mesma maneira.

Não é preciso procurar muito pela fragmentação entre a elite do FEM e os trabalhadores duros, basta observar o Jovem Líder Global e presidente francês Emmanuel Macron, que é tratado como realeza em Davos, enquanto na França ele enfrentou quase quatro anos de protestos dos Coletes Amarelos contra sua austeridade e políticas neoliberais, e alguns franceses não suportam sequer vê-lo:

E outro:

Eles lançaram Henry Kissinger em Davos para que ele pudesse dizer aos 0,001 por cento que eles estiveram certos o tempo todo sobre a Ucrânia, e agora eles devem dobrar a pressão ao apressar o país para a OTAN. O homem de 99 anos aparentemente quer aumentar sua contagem de 3 a 4 milhões de corpos antes de chutar o balde. Como Spencer Ackerman escreve:

A elite do Fórum Econômico Mundial consulta um dos arquitetos do mundo de hoje para guiá-los para fora da policrise que ele desempenhou um papel na criação. E ele inevitavelmente reforça as convicções dessa mesma classe, que mais se beneficia da forma como o mundo é atualmente, de que eles e somente eles possuem as chaves para guiar responsavelmente o mundo para fora da policrise. E se eles extraírem ainda mais riqueza dos destroços de um mundo devastado pela policrise, quem pode dizer que há algo de errado com isso? Certamente ninguém em Davos.

Mesmo que esses líderes com ideias semelhantes destruam a Europa, eles provavelmente pensam que podem seguir o caminho de um dos pioneiros do Young Global Leader do FEM: o ex-primeiro-ministro britânico e criminoso de guerra Tony Blair. Depois que ele deixou o governo, ele começou “operar uma rede vertiginosa e muitas vezes sobreposta de instituições de caridade, empresas e fundações que o catapultaram para o status de uma das pessoas mais ricas da Grã-Bretanha.”

Ele viaja por aí dando entrevistas alertando contra os perigos do populismo e dos serviços públicos gratuitos – tarefa que sem dúvida é mais difícil com o “Lolita Express” de Jeffrey Epstein não mais oferecendo-lhe passeios gratuitos.

O problema é que, antes que essas pessoas possam lucrar à la Blair, elas podem nos matar primeiro. Como Patrick Lawrence escreveu no Consortium News após as revelações de Angela Merkel (outra Líder Global para o Futuro do FEM) de que os Acordos de Minsk eram simplesmente um estratagema destinado a ganhar tempo para a Ucrânia se preparar para a guerra:

Uma medida de confiança era essencial entre Washington e Moscou, mesmo durante as passagens mais perigosas da Guerra Fria. A Crise dos Mísseis de Cuba foi resolvida porque o presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, e o primeiro-ministro soviético, Nikita Khrushchev, foram suficientemente capazes de confiar um no outro. Essa confiança não existe mais, como Putin e outras autoridades russas deixaram claro ao responder à publicação das duas entrevistas alemãs.

Moscou e Pequim disseram repetidamente desde que Joe Biden assumiu o cargo, não exatamente dois anos atrás, que não há como confiar nos americanos. O pensamento subsequente é que não adianta negociar com eles em um contexto diplomático. Para várias autoridades russas, de Putin em diante, as revelações de Merkel parecem ter confirmado essas conclusões.

É uma grande reviravolta que Moscou agora inclua os europeus, e especialmente os alemães, nessa avaliação. A Alemanha agora conta as mentiras que fazem o império americano – uma questão de ansiedade e tristeza ao mesmo tempo. Se diplomacia de terra arrasada é um nome adequado para o que o Ocidente tem feito em suas negociações com a Rússia desde 2014, como eu acho que é, a ponte alemã entre o Ocidente e o Oriente foi queimada.

A gravidade dessas conclusões, as implicações à medida que encaramos o futuro, são imensas tanto para o Ocidente quanto para os não-ocidentais. Um mundo repleto de hostilidades é aquele que todos nós conhecemos. Um mundo desprovido de confiança e conversa provará ser outra questão.


Fonte: https://www.nakedcapitalism.com/2023/01/viewing-ukraine-through-the-davos-lens.html

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