Sobre o uso de armas nucleares pela Rússia

Quantum Bird – 18 de junho 2023

A discussão sobre o uso de armas nucleares em ataques “preventivos” pela Federação Russa é antiga e se revigora, com intensidade crescente, sempre que a Rússia protagoniza os fatos da arena geopolítica global, em sua luta existencial por soberania.

Por outro lado, o artigo recente do Prof. Serguei A. Karaganov, Uma decisão difícil, mas necessária, parece ter tocado muitas sensibilidades, e tem motivado respostas e comentários por todos os lados. O Prof. Karaganov é um quadro de alto nível da HSE [High School of Economics, Escola Superior de Economia, instituição notória na Rússia por sua postura economica liberal – nota do tradutor], um historiador e intelectual renomado, que sempre “militou” nas fileiras pró-liberalismo da Rússia.

Nas linhas seguintes, usando o estilo usual de pontos, pretendo expor a impertinência completa dessa discussão.

  • A doutrina militar russa é bastante clara sobre o uso de armas nucleares:
    “A Rússia reserva-se o direito de usar armas nucleares em resposta ao uso de armas nucleares e outros tipos de armas de destruição em massa contra ela ou seus aliados, e também em caso de agressão contra a Rússia com o uso de armas convencionais quando a própria existência do Estado está ameaçada”
  • A Rússia possui ampla, e aumentando, capacidade de dissuasão usando armas convencionais, ou seja, não nucleares.
  • Os meios técnicos e militares à disposição da Rússia permitem controle de escalada completo. Estamos vendo isso na Ucrânia, cuja contraofensiva apoiada por todo ocidente coletivo sequer foi capaz de alcançar a primeira linha de defesa das forças russas. Esse resultado foi obtido sem precisar recorrer ao uso de qualquer arma estratégica.
  • O Prof. Karaganov parece ignorar ou não entender realmente a estatura militar russa contemporânea e raciocinar em termos da Rússia dos anos 90, que, como diria Andrei Martyanov, estava pregada no muro da dissuasão nuclear. Ou seja, não dispunha de muitas, se alguma, opções de dissuasão convencional e estava privada do exercício de ambiguidade estratégica.
  • Em 2023, é o Ocidente Coletivo que está pregado no muro da dissuasão nuclear, sendo incapaz de travar e vencer qualquer conflito convencional contra um oponente muito inferior (vide Iraque, Afeganistão, Yêmen), para não falar em um oponente paritário e próximo da paridade.
  • O abismo tecnológico-militar entre a Rússia e o Ocidente Coletivo está se alargando e se aprofundando ao mesmo tempo. E bem rápido. Simplesmente, não existe prospecto de desenvolvimento econômico, tecnológico e cultural para restauração da capacidade dissuasiva convencional ocidental. Portanto…
  • Os chamados para, e todo o frenesi sobre, o uso de armas nucleares pela Rússia, são pura reflexão do desespero das elites ocidentais, e seus vassalos, devido ao diagnóstico expresso nos pontos anteriores.

Finalmente, mas não menos importante, existe ainda um aspecto sistêmico que nos permite entender as posições do Prof. Karaganov. Obviamente, seu diagnóstico sobre o estado societário deplorável do Ocidente Coletivo está correto. E também é verdade que as elites ocidentais perderam a lucidez. Entretanto, que sua lucidez possa ser restaurada detonando artefatos nucleares na Europa ou Oceania, é debatível. E aqui chegamos ao ponto sobre a falha sistêmica do “raciocínio estratégico” ocidental, que se revela claramente também no artigo do Prof. Karaganov.

“Cientistas sociais” não possuem o treinamento em física e matemática requeridos para articular os conceitos-chave que definem o cálculo tático e estratégico militar moderno. Por exemplo: por que o Prof. Karaganov não concluiu o seu artigo propondo a retomada de testes nucleares pela Federação Russa? Ou mesmo a opção mais radical – também contemplada pela doutrina militar russa – de um ataque convencional preciso aos centros de decisão ocidentais abertamente envolvidos nas hostilidades contra a Federação Russa?

Meu entendimento pessoal é que a discussão sobre o uso de armas nucleares pela Rússia é contraproducente, e serve apenas para distrair o público das pautas que realmente importam: desdolarização, descolonização e construção de soberania e multipolaridade.

One Comment

  1. Caribe said:

    Concordo com sua avaliação – aliás, profunda – sobre o tema. Entretanto, gostaria que abordasse também outro aspecto levantado pelo prof. Karaganov resumido no parágrafo abaixo [transcrição da Sputnik Br]
    O confronto com o Ocidente na Ucrânia, seja como for, não deve nos distrair do movimento estratégico interno – espiritual, cultural, econômico, político, militar e político – em direção aos Urais, à Sibéria e ao Oceano Pacífico. É necessária uma nova estratégia ural-siberiana, que inclua vários projetos poderosos de elevação espiritual, incluindo, é claro, a criação de uma terceira capital na Sibéria. Este movimento deve se tornar parte da tão necessária formulação do “Sonho Russo” – a imagem da Rússia e do mundo ao qual se aspira.

    18 June, 2023
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