Por Georg Auernheimer em 30 de dezembro de 2022
A “des-russificação” de Kiev continua florescendo. Monumento após monumento, estátua após estátua caem na busca de criar uma “identidade cultural” para os ucranianos. Seu defeito: mostram os russos. Que eles criaram um patrimônio humano… mas seja lá como for, azar!
Eu quero cantar a liberdade para o mundo, / Em tronos para atacar o vício[…] Infelizmente! onde quer que eu olhe / Por toda parte flagelos, glândulas por toda parte,/ Leis vergonha desastrosa, / Bondage lágrimas fracas; / Poder injusto em todos os lugares/ Na névoa condensada do preconceito Alexander Pushkin (1799 – 1837) em “Ode à Liberdade” (Russ. Volnost, 1818).1
[NT: poema em português acessado em https://ik-ptz.ru/pt/istoriya/oda-volnost-analiz-proizvedeniya-stihotvorenie-pushkina-a-s.html]
Não há mais uma placa de rua em Kiev (ou Kyjiv em ucraniano) para homenagear este poeta.
Porque o governo da cidade de Kyiv sob o prefeito Vitali Klitschko teve quase cem ruas renomeadas em 2022, que comemoravam a afiliação da Ucrânia ao Império Czarista e à União Soviética. Neste caso, não formam nada melindrosos e cortaram impiedosamente as tradições culturais. Tais ações de renomeação, entretanto ocorridas em todo o país, fazem parte de uma política histórica de fúria cega que se tornou doutrina de Estado com um pacote legislativo em 2015 após o golpe de Estado. Monumentos também são derrubados ou desmantelados. Nem se pensou que as obras de um Pushkin ou de um Tolstói fossem de valor universal, uma herança da humanidade. Não é sem razão que eles foram traduzidos para vários idiomas.
O último ato de barbárie é a remoção da estátua de Maxim Gorky em Dnipro. Na segunda-feira, 26 de dezembro de 2022, ela foi desmontada e depositada nas dependências de uma empresa municipal.2 Razão suficiente para derrubarem o monumento foi para os nacionalistas de Dnipro, que Gorki já havia sido reconhecido pela Academia Comunista como um “escritor proletário”. Deve ser mencionado apenas de passagem que a Academia teve dificuldades com esse reconhecimento em 1927.3 Com sua obra narrativa, Gorki denunciou a miséria dos marginalizados da sociedade e a exploração dos trabalhadores, apoiando assim a luta da classe trabalhadora. Mas ele era alguém que principalmente fazia campanha pelos direitos humanos por indignação moral.
Em 16 de dezembro, o monumento a Alexander Pushkin em Dnipro já tinha sido desmontado. O fato de o czar não ter ficado nada satisfeito com suas criações literárias não impediu que os políticos locais ucranianos russofóbicos o jogassem de seu pedestal. O poeta Mikhail J. Lermontov (1814 – 1841) foi punido ainda mais severamente do que Pushkin com o exílio pelo czar. Ele amava a Rússia, mas o nacionalismo era duvidoso para ele.
Amo a pátria, mas com um amor estranho / Minha lógica não a conquistará. / Nem a glória comprada pelo sangue / nem a paz da confiança orgulhosa / nem as histórias tão familiares dos velhos tempos sombrios / despertarão em mim um alegre entusiasmo. Mas eu amo… seu silêncio frio de estepes, / suas florestas sem limites movimento suave, / as águas altas de seus rios que lembram mares […] e na colina em meio aos campos amarelos / o par de bétulas brancas cintilantes… .4
Em Kyiv não há mais uma placa de rua que lembre este poeta.
Nem mesmo o grande poeta e humanista Leo N. Tolstói foi poupado no expurgo. No início de seu conto “A Invasão”, no qual processa memórias de seu tempo como voluntário nas Guerras do Cáucaso (1851 – 1854), ele escreve: Eu estava apenas preocupado com a pergunta: que sentimento leva as pessoas a se exporem ao perigo e, o que é ainda mais surpreendente, a matarem sua própria espécie sem nenhum benefício visível para si mesmas? 5 Também não há placas de rua em Kyiv que nos lembrem dele. E as crianças em idade escolar na Ucrânia não vão saber nada sobre ele, nem mesmo que ele se importava com crianças em idade escolar que não tiveram oportunidades por falta de educação.
Esses poetas e outros como Anton Chekhov não são mais lembrados na Ucrânia porque eram russos. Suas obras oficialmente não pertencem mais ao patrimônio cultural. Todos os exemplos dados aqui foram inspirados pelo Iluminismo. Não foi à toa que os czares os mandaram para o exílio como Pushkin e Lermontov ou os colocaram sob vigilância policial como Tolstói. Todos fizeram campanha pelos Direitos Humanos, pelas liberdades políticas e pela justiça social. Nacionalismo não era coisa deles.
Com a política histórica, “a liderança política do país está intensificando o projeto de construção da nação ucraniana”, diz Lina Klymenko com simpatia em uma “análise” publicada pela Agência Federal de Educação Cívica alemã. Em 2019, a Agência Federal deu `a cientista política a oportunidade de justificar as políticas nacionalistas do governo ucraniano com algumas ressalvas.6 A autora admite que algumas medidas, como nomear ruas com nomes de líderes ou associações fascistas, são “questionáveis”, mas mesmo assim despertam a compreensão pela tentativa de fazer as pessoas esquecerem o passado soviético. O historiador sobre o Leste Europeu Kai Struve, da Universidade de Halle-Wittenberg, também explica a renomeação das ruas como uma “reação à guerra russa”, mas diz que “o processo de construção da nação não é mais definido apenas pela língua ou grupos étnicos, mas por valores como a democracia, a liberdade e o estado de direito”.7 Como isso pode ser conciliado com a excomunhão de poetas como Tolstói, permanece em seu segredo.
O público alemão, especialmente a classe média educada, na medida em que tal coisa ainda exista, reage com indiferença à iconoclastia sectária na Ucrânia, se porventura cheguem a observar tal desenvolvimento. Ninguém se pergunta que tipo de sociedade é essa, que pratica ou endossa políticas culturais anti-humanistas desse tipo. A “identidade cultural da sociedade ucraniana” está ameaçada, declarou a Ministra de Estado da Cultura, Claudia Roth, durante uma visita a Odessa. Isso soa como a linguagem política dos nacionalistas ucranianos. Depois que o Ministro da Cultura ucraniano, Oleksandr Tkachenko, disse a ela que as instituições culturais estavam sendo atacadas, ela não viu a “identidade cultural” dos ucranianos como ameaçada pela política cultural e histórica revisionista, mas sim pelo agressor russo.8
Fontes das Notas:
1 https://de.wikipedia.org/wiki/Ode_an_die_Freiheit
2 Kurznachricht in der jungen Welt v. 28.12.22
3 Gourfinkel, Nina: Maxim Gorki in Selbstzeugnissen und Bilddokumenten. Rowohlts Monographien. Hamburg 1958, S.73f,
4Trecho de Die Heimat (russ. Royjina) em: Michail Lermontow: Gedichte. alemão/ russo. Reclams Universalbibliothek. Stuttgart 2020.
5 Die schönsten Erzählungen von Tolstoi. Neue Folge. Nymphenburger Verlagshandlung. München o.J.
6 https://www.bpb.de/themen/europa/ukraine-analysen/287634/analyse-die-politik-der-umbenennung-nationsbildung-und-strassennamen-in-der-ukraine/ acesso em 27.12.22
7 https://www.zdf.de/nachrichten/politik/umbenennung-strassen-kiew-ukraine-krieg-russland-100.html acesso em 28.12.22
8 https://www.deutschlandfunk.de/claudia-roth-odessa-ukraine-kultur-100.html acesso em 28.12.22
Fonte: https://www.hintergrund.de/feuilleton/ueber-sektiererische-bilderstuermerei-und-ihre-begleitung-von-deutscher-seite/
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