Rússia, Irã e China pretendem restaurar a segurança do Golfo Pérsico

Hussei Askary – 01 de maio de 2023

Pequim, Moscou e Teerã buscam estabelecer a segurança coletiva no Golfo Pérsico, comandada por Estados litorâneos e não militares ocidentais. Isso vai tirar fundamentalmente a região do paradigma atlantista. 

A recente normalização das relações entre o Irã e a Arábia Saudita, intermediada pela China, é apenas a ponta do iceberg em termos de uma mudança de paradigma maior na Ásia Ocidental. Rússia, Irã e China (RIC) estão desempenhando papéis importantes na formação dessa mudança, o que pode tornar obsoletas as intervenções anglo americanas na região.

Embora a Rússia, o Irã e a China fossem frequentemente vistos como inimigos, rivais ou concorrentes pelo Ocidente, eles emergiram como os principais corretores de poder que projetam estratégias de saída de muitas das crises patrocinadas pelo Ocidente na Ásia Ocidental.

Enquanto a Rússia e o Irã desempenharam papéis militares e de segurança mais decisivos nesse desenvolvimento, a China pesou com seu peso econômico para trazer à tona essa mudança de paradigma regional.

Grande parte dessa mudança será direcionada aos Estados litorâneos do Golfo Pérsico, que o Ocidente considera sua zona de influência exclusiva desde o início do século passado – tanto por suas rotas marítimas estratégicas quanto por sua riqueza em petróleo e gás. Mas apenas nos últimos anos, essa dinâmica mudou drasticamente.

‘Dividir e conquistar’

Hoje, Rússia, Irã e China compartilham preocupações de segurança semelhantes sobre conflitos e divisões manipulados pelo Ocidente em suas regiões. A geografia do RIC consiste em territórios relativamente grandes com composições étnicas muito diversas. Essa diversidade tem sido frequentemente armada pelo Ocidente – na forma de grupos separatistas – para desestabilizar os governos centrais.

Os exemplos são abundantes: a Rússia enfrentou uma insurreição chechena que terminou com uma vitória decisiva sobre os elementos separatistas, mas a um preço alto. Na China, uma cartada muçulmana foi usada para desestabilizar as regiões ocidentais por meio do apoio a grupos separatistas uigures que lançaram numerosos ataques terroristas na China continental [operação de desestabilização interna da região articulada pelos norte-americanos – nota da tradutora].

Da mesma forma, o mosaico iraniano de grupos étnicos persa, azeri, curdo, lur, árabe e baloche tem sido um alvo claro para o uso do separatismo como uma ferramenta para desestabilizar o governo central.

Na década de 1980, o ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA, Zbigniew Brzezinski, defendeu que “O Arco da Crise” fraturasse a maioria dos países na fronteira com a China e a União Soviética, apoiando grupos separatistas religiosos e étnicos.

Além das preocupações de segurança relacionadas a grupos separatistas, há também preocupações de segurança econômica, como o controle de pontos de estrangulamento de rotas marítimas sensíveis, incluindo os estreitos de Malaca, Hormuz e Bab al-Mandab. Essas hidrovias críticas podem ser usadas para cortar o fornecimento de energia e o comércio entre a China e a região do Golfo Pérsico. Para lidar com essas ameaças, a Rússia, o Irã e a China têm realizado exercícios regulares navais.

O controle dos EUA sobre o Golfo Pérsico

Atualmente, existem mais de 60 bases ou instalações militares ocidentais – e cerca de 50.000 soldados dos EUA – estacionados na Ásia Ocidental. Washington afirma que essa presença militar exagerada é necessária para fornecer “segurança e prosperidade” para a região, mas a história recente sugere que eles estão lá principalmente para manter a hegemonia ocidental.

Os EUA também fornecem ‘segurança marítima’ no Golfo Pérsico há décadas, e suas Forças Marítimas Combinadas (CMF) lideradas pela OTAN estão presentes nas águas da Ásia Ocidental desde 1983, policiando unilateralmente remessas e até mesmo lançando ações hostis contra Estados-alvo, como Iraque e Somália.

A aliança CMF, deve-se notar, reivindica a responsabilidade pela segurança de quatro corpos de água na Ásia Ocidental: o Mar Vermelho, o Golfo Pérsico, o Mar Arábico e o Golfo de Aden.

China entra na briga como um ‘intermediador honesto’

A política chinesa na Ásia Ocidental – enraizada na Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI) – começou a tomar forma diplomática em janeiro de 2016, quando o presidente Xi Jinping visitou o Egito, a Arábia Saudita e o Irã, três países em lados diferentes do conflito sectário desencadeado pela invasão ilegal do Iraque pelos EUA em 2003.

A visita de Xi ocorreu quando as relações saudita-iranianas atingiram o fundo do poço, com a execução provocativa de Riad do clérigo xiita saudita Nimr Baqir al-Nimr poucos dias antes de o presidente chinês chegar à região. O assassinato gerou protestos no Irã, levando ao saque da embaixada da Arábia Saudita em Teerã e ao rompimento final das relações diplomáticas entre os dois principais Estados do Golfo Pérsico.

No entanto, o relacionamento econômico amistoso e cada vez mais próximo da China com as três nações permitiu que ela se tornasse uma intermediadora confiável, coordenando-se separadamente com cada uma para fechar gradualmente acordos estratégicos abrangentes.

Em abril de 2022, Xi lançou a Iniciativa de Segurança Global (GSI – Global Security Intiative) com base nos princípios da Carta da ONU, a própria base do Direito Internacional, que há muito é ignorada pelas potências ocidentais. Embora Pequim tenha sido conciliadora com o Ocidente nesta e em outras iniciativas, um tom mais agudo surgiu com a percepção de que o envolvimento com o Ocidente para resolver as crises da Ásia Ocidental – que são, na realidade, uma criação de políticas atlantacistas – era um esforço inútil.

A nova posição chinesa de que “as pessoas no Oriente Médio [Ásia Ocidental] são donas de seu próprio destino” e que “são elas que devem assumir a liderança nos assuntos de segurança da região” foi pronunciada pela primeira vez pelo Conselheiro de Estado e Relações Exteriores da China Ministro Wang Yi no segundo Fórum de Segurança do Oriente Médio realizado pelo Instituto de Estudos Internacionais da China em Pequim em setembro de 2022.

Essa posição foi reiterada naquele dezembro pelo presidente Xi em seu discurso na Cúpula China-Árabe em Riad, onde o chefe de Estado chinês foi recebido com grande alarde. Ao contrário dos EUA e da UE, a China emprega políticas diplomáticas e econômicas imparciais em relação a todos os Estados da Ásia Ocidental e está excepcionalmente bem posicionada para atuar como um intermediário regional honesto.

Para a China, que importa mais de dois terços de suas necessidades de petróleo bruto do exterior, o acesso irrestrito ao Golfo Pérsico, rico em energia, representa um grande interesse de segurança, e a viagem de Xi deixou isso bem claro.

A mediação de Moscou

Apesar de sua firme defesa da Síria durante o conflito militar de uma década, Moscou conseguiu se estabelecer como um mediador confiável de conflitos na região do Golfo Pérsico e, como Pequim, reconhece a futilidade de confiar no Ocidente para a paz e a estabilidade regionais.

Em julho de 2019, os russos apresentaram o “Conceito de Segurança Coletiva para a Região do Golfo Pérsico” aos membros do Conselho de Segurança da ONU (CSNU), seguido de uma proposta mais detalhada aos representantes dos Estados árabes, Irã, Turquia, cinco membros permanentes do CSNU, a UE, a Liga Árabe e os BRICS.

Previsivelmente, a proposta não recebeu apoio total nem das potências ocidentais nem de seus aliados regionais, que viram a inclusão do Irã na iniciativa como um desvio de seu objetivo de isolar e enfraquecer Teerã.

Apesar desse revés, Moscou continuou a buscar ativamente a diplomacia na região, inclusive por meio de sua participação no processo de Astana, destinado a resolver o conflito sírio.

As iniciativas iranianas

Durante a administração do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, os Estados Unidos buscaram criar uma “OTAN árabe” anti-iraniana que incluísse Israel e os Estados árabes sunitas, enquanto, paralelamente, a Rússia pressionava por uma nova arquitetura de segurança no Golfo Pérsico.

O Irã trabalhou por muitos anos para criar uma arquitetura de segurança conjunta com seus vizinhos do Golfo Pérsico, particularmente a Arábia Saudita. O ex-presidente iraniano Akbar Hashemi Rafsanjani conseguiu um acordo de segurança e cooperação em 1997 com o então príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Abdullah bin Abdulaziz, que permaneceu em vigor até 2005.

No entanto, as políticas dos EUA na região desde a invasão do Iraque em 2003 criaram um abismo sectário intransponível na região, colocando a Arábia Saudita e o Irã em lados diferentes de um precipício que foi descrito como a ‘Shia Crescente’ versus o ‘Triângulo Sunita’. Apesar do rompimento das relações diplomáticas em 2016, o Irã continuou a buscar e promover a normalização e iniciativas de segurança conjuntas.

Em setembro de 2019, o presidente iraniano Hassan Rouhani propôs o Hormuz Peace Endeavor (HOPE) na Assembleia Geral da ONU, que visava reunir os Estados litorais do Golfo Pérsico – o Conselho de Cooperação do Golfo (GCC), mais o Irã e o Iraque – em torno de um quadro comum de segurança, liberdade de navegação e cooperação econômica. No entanto, com o persistente ataque dos EUA ao Irã, essa iniciativa não se tornou viável.

É crucial observar que o assassinato pelos EUA do comandante da Força Quds da Guarda Revolucionária Islâmica Iraniana (IRGC) Qassem Soleimani ocorreu na capital iraquiana de Bagdá em 03 de janeiro de 2020, enquanto ele carregava uma mensagem do líder supremo do Irã, Ali Khamenei, ao Primeiro-ministro iraquiano, incluindo uma resposta às investigações sauditas. Naquela época, o então primeiro-ministro iraquiano Adil Abdul-Mahdi mediava as comunicações entre Teerã e Riad para chegar a entendimentos.

O atual presidente do Irã, Ebrahim Raisi, continuou a apoiar o HOPE, alcançando um avanço importante quando as relações diplomáticas com os Emirados Árabes Unidos no nível de embaixador foram restauradas logo após Raisi assumir seu cargo em agosto de 2021. Sua representação diplomática foi rebaixada após a crise diplomática saudita-iraniana em 2016.

As razões para a mudança saudita

É importante notar que a mudança na política externa dos Emirados Árabes Unidos e sua surpreendente divergência com as políticas de Washington estão fervendo sob a superfície há vários anos, aguardando um catalisador.

Os países do GCC perceberam que a “Primavera Árabe” não fez nada além de criar divisões regionais e esgotar os recursos nacionais vitais. Influenciadores regionais antes dos eventos sísmicos de 2011 – como Catar, Turquia, Irã, Síria, Emirados Árabes Unidos e Egito – foram sugados para posições adversárias perigosas sem vantagens.

Embora os serviços e a riqueza de Riad e Abu Dhabi tenham sido bem-vindos na desestabilização da Síria, Líbia, Iêmen e Irã, seus próprios interesses políticos e econômicos não eram uma preocupação primordial para Washington.

Ainda que a crise síria tenha começado a diminuir, cortesia da intervenção e mediação russas, os sauditas e os emirados ficaram atolados em um pântano caro no Iêmen, agora em seu oitavo ano.

Além disso, os interesses econômicos dos produtores de energia do Golfo Pérsico e de Washington começaram a divergir claramente após o início da guerra na Ucrânia em fevereiro de 2022, quando os países da OPEP + decidiram reduzir a produção para manter os preços altos do petróleo contra a vontade dos EUA e da Europa.

Em suma, os EUA – que há muito buscam reduzir a dependência do petróleo da Ásia Ocidental e passaram décadas construindo sua indústria doméstica de xisto [que claramente já atingiu seu pico – nota da tradutora] – têm pouca sinergia energética com os produtores do Golfo Pérsico, cujos interesses se cruzam cada vez mais com a Rússia e a China nas frentes de petróleo e gás.

“Hoje, os EUA não são mais um parceiro energético da Arábia Saudita, mas sim um concorrente. Em seu lugar, Pequim e Moscou se tornaram parceiros essenciais para Riad”, escreve o analista Mohammad Salami.

A Ásia Ocidental sem o Ocidente

As várias iniciativas diplomáticas e de segurança russas, iranianas e chinesas finalmente amadureceram com a eclosão da guerra na Ucrânia, quando as relações internacionais começaram a mudar fundamentalmente de forma, expondo as vulnerabilidades inatas da constelação de poder unipolar ocidental.

Os EUA perderam a confiança de seus aliados de longa data na região, sua influência está diminuindo rapidamente e o dólar – a moeda de reserva global – agora está sob ataque. Enquanto a Ásia Ocidental e o resto do mundo continuam a enfrentar uma série de desafios complexos, incluindo conflitos contínuos e instabilidade econômica, o surgimento de novos atores e iniciativas de pacificação oferecem um caminho rápido e necessário para a estabilidade regional.

Embora resta saber como as novas potências eurasianas moldarão o futuro da segurança do Golfo Pérsico, várias coisas estão claras: os Estados regionais estão diminuindo seus conflitos com novos intermediários; seu foco coletivo e doméstico é economia e desenvolvimento; a reconciliação tornou-se rigor para todos; e nenhuma dessas prioridades requer gastos militares astronômicos e forças/bases armadas ocidentais que caracterizaram a “segurança” do Golfo Pérsico nos últimos anos.

À medida que os Estados do litoral do Golfo Pérsico começarem a testar suas novas amizades e aumentar a confiança um no outro, caberá a mediadores genuínos e imparciais, como a Rússia e a China, preencher as lacunas de entendimento e solucionar problemas quando surgirem incidentes. Estes acontecerão em uma mesa – não em uma arena militar – e serão acompanhados por acordos comerciais que impulsionem a criação e desenvolvimento de riqueza mútua, tornando os velhos “garantidores” da segurança do Golfo Pérsico totalmente obsoletos.

Fonte: https://new.thecradle.co/articles/russia-iran-china-aim-to-reboot-persian-gulf-security


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