Rússia e os referendos separatistas na Espanha e no Iraque

5/10/2017, The Saker, Unz Review e The Vineyard of the Saker
Os recentes referenda na Catalunha e no Curdistão, embora de modo algum sejam desenvolvimentos cruciais para a Rússia, resultaram num vivo debate na mídia russa e entre o público russo. O Kremlin optou por não fazer pronunciamentos bombásticos, indicando provavelmente que os ministérios chaves abrigam várias linhas de pensamento sobre essas questões. Consideremos nós, então, essas duas situações, do ponto de vista dos russos.

Curdistão:

Comparativamente, é o caso mais simples, desses dois: em nenhum caso a Rússia correrá o risco de se afastar de Irã, Iraque, Síria e Turquia. Além do mais, um “Curdistão independente” é tão visivelmente projeto dos EUA e de Israel, que não há eleitorado, na Rússia, que apoie o conceito. Ou há?
Não esqueçamos que, inobstante os muitos sorrisos oficiais e declarações de mútua amizada, Erdogan não é nem jamais será confiável, aos olhos do Kremlin. Não esqueçamos tampouco que Rússia e Turquia combateram até hoje 12 (doze!) guerras(1568-1570, 1672-1681, 1686-1700, 1710-1713, 1735-1739, 1768-1774, 1787-1791, 1806-1812, 1828-1829, 1853-1856, 1877-1878, 1914-1918). Nem se pode esquecer o papel da Turquia quando apoiou o terrorismo Takfiri na Chechênia. Ou o fato de que Erdogan, pessoalmente, carrega enorme responsabilidade pelo banho de sangue na Síria. Ah, e também há a questão do bombardeiro russo derrubado (com ajuda dos EUA) no espaço aéreo sírio. Tudo isso considerado, há muita coisa passada, e os russos não ignorarão nada daquilo. Por mais que quase definitivamente não seja do interesse nacional russo apoiar integralmente algum Curdistão em lugar algum (nem na Turquia, nem no Iraque, nem no Irã e tampouco na Síria), uma abordagem de Realpolitik sugeriria fortemente que os russos têm um interesse objetivo em manter a questão curda, só para manter uma potencial alavanca contra a Turquia. Parece cinismo? Sem dúvida, sim. E é. Não estou dizendo que seja moralmente/eticamente correto, apenas que muitos russos argumentarão exatamente assim.
Entendo que a verdadeira questão para a Rússia é a seguinte: é possível a paz, seja como for, entre Rússia e Turquia? Pessoalmente entendo que sim, e não só acho que seja possível, como também me parece que a paz entre Rússia e Turquia seja absolutamente necessária. E assim sendo, é possível que seja inevitável. Explico.
Primeiro, as dinâmicas dos séculos 20, 19, 18, 17 e 16 não são simplesmente transplantáveis para o século 21. Se is fatores geográficos não mudaram ao longo dos séculos, as realidades militares, sim, mudaram. Sim, Rússia e Turquia ainda competem por influência ou pelo controle do Mar Negro, mas pela primeira vez na história o resultado de guerra russo-turca tornou-se absolutamente previsível: a Rússia vence, a Turquia perde ou, mesmo, desaparece completamente. Os russos sabem disso, e também os turcos. E é superlativamente improvável que essa situação mude em futuro previsível.
Segundo, eu diria que Rússia e Turquia têm problemas comuns e inimigos comuns. Sim, a Turquia ainda é membro da OTAN, não acho que isso mude tão cedo, mas o fato de ser membro da OTAN estão em franco processo de perder muito da própria substância. A tentativa de golpe contra Erdogan, integralmente apoiada e sustentada pelos EUA é claríssima ilustração de que, com amigos como os EUA, nenhuma Turquia precisa de inimigos. Assim sendo, examinem as coisas do ponto de vista turco: o que Rússia e EUA querem para a Turquia? EUA querem que a Turquia seja sua colônia, para usá-la contra Rússia, Irã e os estados árabes na região, e como apoio a Israel. O que a Rússia quer da Turquia? Para que seja parceiro previsível, confiável e realmente independente com o qual a Rússia possa trabalhar. Ora, se você fosse turco, que opção lhe pareceria mais sedutora?
Terceiroex-inimigos podem tornar-se parceiros – basta pensar em França e Alemanha por exemplo. Pode acontecer quando os fatores objetivos combinam-se com vontade política e ‘pegada’ conjunta rumo a uma transição fundamental, da situação de inimigos, para a situação de parceiros. Estou cada vez mais inclinado a pensar que pode estar acontecendo precisamente isso entre Rússia e Turquia.
Não me parece que eu esteja em surto de Pollyana. E, sim, ainda há muitos problemas na Turquia que podem se inflamar repentinamente, inclusive a megalomania de Ergodan, seus delírios neo-otomanos imperiais, um tipo detestável de Islamismo Otomano, as políticas tóxicas da Turquia para Chipre, Grécia e Servia etc. Mas a Rússia não pode reclamar da estupidez cega dos leste-europeus, que não veem as diferenças fundamentais entre a velha URSS e a nova Rússia, ao mesmo em que agem como se a Turquia moderna fosse o velho Império Otomano. Há momentos na história quando o que se exige de líderes sábios e coragem intelectual para compreender que algo de fundamental mudou, e que as velhas dinâmicas simplesmente já não se aplicam. No mínimo, a Rússia teria de fazer tudo que esteja ao seu alcance para encorajar a Turquia a abandonar velhas manias e a acompanhar a Rússia na percepção clara de que o futuro dela não é com o Ocidente, mas com Sul, Leste e Norte.
Quartoa questão curda também apresenta grave risco direto para a Rússia: ainda que Rússia não esteja diretamente envolvida, quaisquer tensões ou – Deus nos livre! – guerra entre qualquer combinação de Turquia, Irã, Síria e Iraque seria um desastre para a Rússia, porque todos esses países são, em graus diferentes, aliados dos russos. Qualquer conflito entre esses países os enfraqueceria e, portanto, enfraqueceria também a Rússia.
Por todas essas razões, estou pessoalmente convencido de que abraçar um putrefato problema curdo absolutamente não contribui para promover o interesse nacional russo. Não serve ao interesse nacional russo tentar envolver-se profundamente. No máximo, os russos podem oferecer-se para atuar como intermediários, para ajudar as partes a descobrir solução negociável, mas é tudo. A Rússia não é nem império nem policial do mundo, e não tem de tentar influenciar nem, e menos ainda, controlar o que venha a resultar dessa questão espinhosa.
Israel e os EUA farão todo o possível para impedir que a Turquia venha a integrar-se em parcerias regionais com Rússia ou Irã, mas isso pode não bastar para impedir que os turcos deem-se conta de que não têm futuro com União Europeia nem OTAN. No Império Anglo-sionista há uns mais iguais que outros, e a Turquia jamais alcançará real parceria confiável nessas organizações. Em resumo: a Rússia tem muito a oferecer à Turquia e acredito que os turcos estão começando a perceber isso. A Rússia pode, assim, fazer muito mais e melhor que meramente apoiar o separatismo curdo como meio para pressionar Ankara. “O inimigo do meu inimigo é meu amigo” The enemy of my enemy is my friend” é ideia primitiva demais para servir como alicerce às políticas da Rússia para a Turquia.
Por todas essas razões, não vejo a Rússia apoiando o separatismo curdo em lugar algum. A Rússia nada tem a ganhar apoiando projeto que é claramente invenção de EUA-Israel para desestabilizar toda a região, sempre mais. Creio que os próprios curdos cometeram terrível erro histórico ao aliar-se aos EUA e Israel e que, por isso, colherão agora os frutos amargos desse erro no cálculo estratégico: ninguém na região apoia alguma “segunda Israel” (exceto Israel, claro), nem a Rússia.
Catalunha
A Catalunha é muito distante da Rússia e os resultados da crise lá não terão impacto real nos interesses nacionais russos. Mas num nível político, a Catalunha é muito relevante para os debates políticos russos. Vejam com os próprios olhos:
O caso da Catalunha pode ser comparado à Crimeia: um referendum local, organizado contra o desejo do governo central. Qaundo o Kosovo foi amputado da Sérvia, em ação de total ilegalidade e sem qualquer tipo de referendum o Ocidente aplaudiu de pé aquela abominação. Os russos imediatamente lançaram incontáveis sinais de alerta contra o precedente que ali se criava. Na sequência, aconteceram Ossetia Sul, Abkhazia e a Crimeia. A secessão da Catalunha pode ser incluída aí como passo lógico seguinte? Não haveria aí algo de grande beleza cármica, quando Espanha e o resto da União Europeia são agredidos pelo mesmo demônio que libertaram no Kosovo? Muitos russos experimentam hoje a humana perversa alegria de ver o inimigo sofrer o mal que lhes desejou, com os pomposos traseiros dos políticos da União Europeia sentados agora no formigueiro ardido do separatismo – Agora vamos ver o quanto vocês são realmente inteligentíssimos e “democráticos”…
Não há dúvidas de que é engraçado, com um toque agridoce, ver aqueles policiais democráticos espancando europeus cujo único crime foi deseja r pôr um voto numa urna. Muitos russos dizem hoje que a Rússia é o único país realmente livre e democrático que restou no planeta. Desnecessário dizer, o modo como o governo de Madrid lidou com a situação causa danos ainda mais profundos na credibilidade do Ocidente, da União Europeia e na própria noção de que a “civilizada Europa” seja realmente “democrática”.

Minha impressão é que o modo como o governo central lidou com esse evento afastou ainda mais russos, a maioria dos quais estão simplesmente perplexos ante a extraordinária estupidez e desnecessária brutalidade do ataque policial contra a população durante a votação: o que, afinal, aqueles policiais queriam conseguir?! Será que algum dia supuseram que conseguiriam impedir que todos votassem? E que sentido haveria em negar que houve o referendum? E quanto aos elogios à polícia e ao modo como agiu? Devo dizer que, apesar de eu tender a concordar com a posição da Espanha, o modo como Madrid lidou com a questão parece-me quase inacreditavelmente estúpido e operou contra a causa.

Historicamente, a URSS esteve ao lado dos Republicanos durante a Guerra Civil Espanhola, e ainda há muitos laços hoje entre Rússia e Catalunha. Mesmo assim, também há simpatia entre Rússia e Espanha, mas os russos compreendem que a Espanha apoia todas e quaisquer políticas dos EUA para a Rússia, porque não passa de colônia sem voz e totalmente subserviente aos EUA. Ainda assim, muitos comentaristas russos falaram do “fascismo” de Madrid, no modo como encaminhou os eventos na Catalunha. E os vídeos que mostravam anti-separatistas berrando slogans franquistas não ajudaram.

Alguns russos, a maioria liberais, são porém cautelosos no que tenha a ver com apoiar movimentos separatistas na Europa, porque a própria Rússia é estado multinacional, e porque há risco de a onda separatista caminhar diretamente para a Rússia. Não me parece que seja risco real. Não, depois da Chechênia. Simplesmente não vejo qualquer região na Rússia que esteja realmente interessada em separar-se da Federação Russa. Muito mais provável, quanto a isso, são várias regiões de fora da Federação se interessarem em unir-se à Rússia (para começar, a Novorussia).

A questão que divide os russos é a seguinte: é melhor para a Rússia que haja uma UE forte, porque UE forte pode ter maior capacidade para resistir contra os EUA? Ou é melhor para a Rússia que haja uma UE fraca, porque UE fraca enfraquece o ‘front’ ocidental contra a Rússia?

Minha opinião pessoal é que a UE está condenada de um jeito ou de outro, e que o colapso da UE será boa coisa para o povo da Europa, porque tornará mais próxima a inevitável descolonização do continhente europeu. Isso me parece sugerir que, por mais que o resultado da atual crise seja provavelmente irrelevante para a Rússia, o fato de haver essa crise implica vantagem a favor da Rússia.

Entendo que muitos russos partilham sentimentos positivos quanto aos dois lados, Espanha e Catalunha. O único sentimento claramente negativo que observei nos últimos dois, três dias, brotou do modo brutal, estúpido, como Madrid enfrentou a crise: há muitos russos sinceramente horrorizados com a violência e a hipocrisia dos políticos da UE. Mas, exceto isso, a posição do Kremlin, de que “é questão interna da Espanha” parece estar recebendo apoio da maioria dos especialistas. A Rússia nada tem a ganhar envolvendo-se nessa crise e, assim sendo, não se envolverá.

Conclusão

Potencialmente, os recentes referenda no Curdistão e na Catalunha podem vir a ser a proverbial faísca que desencadeia explosão monstro. Os riscos estão atentos a esse risco e farão o que for possível para evitar esse resultado.

Diferente do modelo dos EUA, que se alimenta de crises – daí o apoio declarado que dão aos curdos e o apoio clandestino que dão aos catalães – o “modelo político” russo (no sentido em que se fala de “modelo” de negócios) não precisa absolutamente de crises. De fato, os russos detestam intensamente as crises (mais uma razão pela qual a noção de alguma invasão russa a qualquer país, inclusive à UE, é simplesmente noção ignorante e rasamente estúpida).

Há aqui um paradoxo: os EUA, cujos militares não conseguem nenhuma vitória significativa desde a guerra do Pacífico, vivem à caça de conflitos, caos e violência. E a Rússia, que tem provavelmente a mais poderosa força militar do planeta, parece ver os conflitos como pragas a serem evitadas a qualquer custo.

D fato não é paradoxo. São dois modelos dramaticamente civilizacionais, que têm visões fundamentalmente diferentes do tipo de mundo em que cada lado quer viver. Aconteça o que acontecer no futuro, os russos estarão observando com relativa excitação esses dois conflitos de ‘separatismos’, que debaterão como questão candente. Mas não os vejo tentando envolver-se ativamente em algo que, fundamentalmente, não é problema dos russos.*****

The Saker

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