Rússia e China traçam uma nova ordem econômica em Pequim

Pepe Escobar – 19 de outubro de 2023

A história – completa com conotações poéticas de justiça – apresentou-nos esta semana o contraste definitivo e gritante entre a geopolítica do passado, promulgada num canto incendiário do sudoeste da Ásia, e a geopolítica do futuro, promulgada em Pequim, no Leste Asiático, uma das capitais da multipolaridade emergente.

Vamos começar com o futuro. O 3º Fórum do Cinturão e Rota em Pequim funcionou como uma espécie de roteiro para a integração econômica/infraestrutural da Eurásia. Foi precedido pela divulgação pelo Conselho de Estado da República Popular da China, em 10 de outubro, de um livro branco bastante detalhado sobre as Novas Rotas da Seda – ou Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), o atual conceito abrangente de política externa da China para o futuro previsível.

A BRI, inicialmente definida como OBOR (One Belt, One Road) [Um cinturão, uma estrada – nota do tradutor], foi lançada há 10 anos pelo presidente Xi Jinping, primeiro em Astana, no Cazaquistão (parte do “cinturão”, como numa série de cinturões econômicos) e depois em Jacarta, na Indonésia ( parte da “estrada”, como na Rota Marítima da Seda).

Dez anos depois, quase 150 nações participantes e mais de 1 bilião de dólares em investimentos chineses, o livro branco resumiu tudo: a BRI está avançando continuamente como uma plataforma multifacetada de comércio internacional e conectividade; como um mecanismo para desenvolver vastas áreas do Sul Global/Maioria Global; e como uma contrapartida prática da hegemonia ocidental.

A maior parte dos projetos da BRI dizem respeito às indústrias extrativas e aos corredores de transporte. Não é por acaso que as principais indústrias extrativas estão concentradas na Rússia e no Golfo Pérsico – e isso está intimamente ligado ao complexo esforço estratégico de Pequim para contornar a contenção hegemônica e os casos de guerra híbrida.

Assim, não é de admirar que o convidado de honra do Fórum de 2023 tenha sido o Presidente Putin; e todas as discussões deixaram bem claro que a Rússia será, a partir de agora, um parceiro-chave da BRI – em linha com o aprofundamento da parceria estratégica Rússia-China, a liderança inteira está totalmente sincronizada.

Com o protocolo chinês fiel ao meticuloso e carregado de simbologia, foi também inevitável que, à entrada do jantar de gala do Fórum, o primeiro fosse o convidado de honra Putin. Logo atrás dele estavam líderes da Ásia Central (Tokayev e Mirziyoyev, do Cazaquistão e do Uzbequistão) e do Sudeste Asiático (Joko Widodo, da Indonésia).

A seguir: A Rota da Seda do Norte

O Presidente Xi anunciou que os participantes da cúpula empresarial no Fórum fecharam novos acordos de infraestrutura no valor de 97,2 mil milhões de dólares.

Esse é o novo paradigma. Compare-o com o velho paradigma das Guerras Eternas: a Casa Branca trabalhando num pacote de 100 mil milhões de dólares para financiar as guerras Ucrânia-Israel.

O encontro presencial de 3 horas entre Putin e Xi foi crucial em mais de um aspecto. Foi uma ilustração gráfica da Rússia e da China como coanfitriões do movimento em direção a um mundo multipolar. E da BRI trabalhando lado a lado com o próximo BRICS 11 (em vigor em 1 de Janeiro, quando a Rússia inicia a sua presidência do BRICS).

Putin, astuto como uma raposa, comentou que não poderia nos contar “tudo” que discutiu com Xi. O que ele poderia dizer é que eles passaram por “toda a agenda bilateral, muitos assuntos: são a economia, as finanças, a interação política e o trabalho conjunto em plataformas internacionais”.

Além disso, “discutimos detalhadamente a situação no Médio Oriente também. Também informei detalhadamente o presidente sobre a situação na via ucraniana. Todos estes fatores externos são ameaças comuns (itálico meu). Eles fortalecem a interação russo-chinesa. ”

A China e a Rússia assinaram o maior acordo da sua história comum para o fornecimento de cereais; 2,5 trilhões de rublos por 70 milhões de toneladas de carga de grãos, leguminosas e oleaginosas entregues em 12 anos.

Isso destrói completamente os cenários de sonho molhado do Think Tankland dos EUA que defendem um bloqueio naval como a estratégia chave para a contenção da China, para privá-la de alimentos e matérias-primas. Na frente energética, Xi espera que o gasoduto Power of Siberia II extendido, ou gasoduto Rússia-Mongólia-China, faça “progressos substanciais” o mais rapidamente possível.

Por mais que Putin tenha enfatizado tanto a Rússia e a China [demonstam] “respeito à diversidade civilizacional” bem como o direito de cada estado-civilização ao seu próprio modelo de desenvolvimento, o que realmente se destacou foi sua explicação detalhada sobre os corredores de conectividade.

Putin sublinhou como “está sendo formado um corredor Norte-Sul na parte europeia da Rússia – do Báltico ao Irã. A comunicação ferroviária contínua será organizada lá.”

Esta foi uma referência direta ao Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (INSTC), cujos principais centros são a Rússia, o Irã e a Índia. Isso se interligará, a médio e longo prazo, com os corredores centrais da Eurásia da BRI.

Putin acrescentou que “outras seções passarão pela Sibéria, pelos Urais e por Yamal. A Passagem do Mar do Norte será construída – para o Oceano Ártico. As rotas ferroviárias Irã do centro da Sibéria ao sul – até aos oceanos Índico e Pacífico (…) Um corredor também passará do Ártico ao sul – será construída uma linha ferroviária de BAM na Yakutia, pontes sobre o Lena e o Amur , as rodovias serão modernizadas e serão criados terminais de alto mar.”

A caracterização da Rota do Mar do Norte feita por Putin é particularmente crucial:

“Todos estes corredores de transporte de norte a sul na parte europeia da Rússia, na Sibéria e no Extremo Oriente abrem a possibilidade de ligar e integrar diretamente a Rota do Mar do Norte com grandes centros logísticos no sul do nosso continente, na costa dos oceanos Índico e Pacífico. No que diz respeito à Rota Marítima do Norte, a Rússia não está apenas convidando os seus parceiros a utilizarem ativamente o seu potencial de trânsito. Deixe-me dizer mais: convidamos os estados interessados ​​a participar diretamente no seu desenvolvimento e estamos prontos para fornecer navegação, comunicação e abastecimento confiáveis ​​no gelo. Já no próximo ano, a navegação de navios de carga da classe gelo ao longo de toda a extensão da Rota do Mar do Norte passará a ser realizada durante todo o ano. A criação das rotas logísticas e comerciais internacionais e regionais acima mencionadas reflete objetivamente as profundas mudanças que estão ocorrerendo na economia global.”

Portanto, aqui temos Putin convidando pessoalmente empresas e negócios de todo o Sul Global a investirem diretamente na integração de toda a Eurásia. E para aqueles que não entenderam a mensagem, o canal de Suez, para muitos em todo o Sul Global, tornar-se-á em breve uma relíquia do passado – geoeconômico.

Citas a cavalo adotam alta tecnologia

O Fórum foi uma ilustração gráfica de que a BRI, uma plataforma aberta – um conceito ininteligível no Ocidente – vai muito além do comércio, do desenvolvimento de infraestrutura e dos corredores de conectividade. Trata-se também de interação intercultural e daqueles notórios “intercâmbios interpessoais” definidos por Xi, dando um exemplo quando se trata de coexistência civilizacional.

Os asiáticos centrais e do sudeste asiático confraternizavam por todo o lado. O húngaro Viktor Orban ficou encantado por poder falar com todos sem ser considerado um “autoritário” contrário aos “valores” da UE. A delegação Talebã* melhorou a sua rede, quando não estava a discutir o investimento chinês no cobre e a construção de uma nova estrada através do corredor Wakhan, que liga diretamente o norte do Afeganistão a Xinjiang.

É como se isto fosse uma remixagem de alta tecnologia do espírito das Antigas Rotas da Seda, quando cavaleiros citas nômades, apaixonados por joias de ouro e seda chinesa, abriram uma nova frente comercial, agindo como intermediários, facilitando o comércio através da Eurásia entre a Ásia e a Europa.

A propósito, a Europa e todo o Ocidente coletivo ficaram quase invisíveis no Fórum do Cinturão e Rota. O que nos leva ao mito de um Ocidente universalista agora em frangalhos.

Os principais pontos de inflexão, ultimamente, têm sido a humilhação do Hegemon no Afeganistão; o colapso do Projeto Ucrânia – com a humilhação cósmica da OTAN; e o colapso da inteligencia supostamente incomparável ​​de Israel na Palestina, cegamente vingada através de punição colectiva.

Compare tudo isso com Putin-Xi em Pequim. Os desastres acumulados apontam para a dissolução inexorável do projeto ocidental do “fim da História”. E fica pior: o novo paradigma geoeconômico discutido em Pequim continuará a acelerar a impiedosa e implacável sobrecarga econômica e geopolítica da “nação mais poderosa da história do mundo” (copyright The White House).

Os Americanos estão absolutamente aterrorizados, entre outros casos, pelo facto de agora o Irã e a Arábia Saudita estarem traçando estratégias em conjunto para o Grande Quadro: a consequência inevitável de uma détente primeiro arquitetada pelos Russos e depois conquistada pelos Chineses.

Os Americanos estão absolutamente paralisados ​​pelo facto de a BRI e o BRICS 11 já estarem empenhados no processo de virar de cabeça para baixo o modelo de negócios ocidental imperial e neocolonial.

Putin, Xi e os convidados do Fórum Cinturão e Rota deixaram bem claro que se trata essencialmente de novas cadeias de abastecimento de mercadorias; novas e melhoradas Rotas Marítimas da Seda; e contorno dos pontos de estrangulamento controlados pelo Ocidente – como mostra o mapa. Tudo isso leva a um labirinto interconectado com a BRI, BRICS, EAEU e SCO.

Os BRICS 11 liderados pela Rússia e pela China – e além (Putin deu uma dica de que a Indonésia se tornará um dos novos membros em 2024) já está virando de cabeça para baixo todas as fantasias encharcadas de Mackinder, no caminho para unir a Eurásia e configurar a Afro-Eurásia como um Heartland extenso, pacífico e predominante.


*O Taleban está sob sanções da ONU por atividades terroristas.

Fonte: https://sputnikglobe.com/20231019/russia-china-map-out-new-economic-order-in-beijing-1114324537.html

One Comment

  1. Douglas Marcel Nardelli said:

    Bom dia Pepe! Sendo assim só resta ao Brasil não só ter relações com a Ásia, mais investir especificamente na África. Posicionalmente essa seria a melhor maneira do Brasil ser realmente uma potência regional… Seria como fazer um um L invertido para esquerda, o q teria um significado monstro… Partir da África para Ásia meu Deus isso me enche de esperança…

    23 October, 2023
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