Pepe Escobar – 26 de dezembro de 2023 – [Traduzido e publicado aqui com a permissão do autor]
Enquanto os cães de guerra ladram, mentem e roubam, a caravana Rússia-China passeia.
2023 pode ser definido para a posteridade como o Ano da Parceria Estratégica Rússia-China. Essa maravilha das maravilhas poderia facilmente balançar sob um ritmo de – quem mais – Stevie Wonder: “Here I am baby/ signed, sealed, delivered, I’m yours.”[Aqui estou bebê/ assinado, selado e entregue. Eu sou seu – nota do tradutor]
Nos primeiros 11 meses de 2023, o comércio entre a Rússia e a China ultrapassou US$ 200 bilhões; eles não esperavam atingir esse valor até 2024.
Sem dúvida, essa é uma parceria em um ritmo acelerado. Mais uma vez assinada, selada e entregue durante a visita de uma grande delegação a Pequim na semana passada, liderada pelo primeiro-ministro Mikhail Mishustin, que se reuniu com o presidente chinês Xi Jinping, que revisitou e atualizou todo o espectro da parceria abrangente/cooperação estratégica, com uma série de novos e importantes projetos conjuntos.
Simultaneamente, na frente do Great Game 2.0, tudo o que precisa ser reafirmado foi tocado pela entrevista detalhada do Ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, a Dimitri Simes em seu programa Great Game.
Acrescente a isso o detalhamento cuidadosamente estruturado escrito pelo chefe do SVR, Sergey Naryshkin, definindo 2024 como “o ano do despertar geopolítico” e apresentando, sem dúvida, a formulação principal após a próxima humilhação cósmica da OTAN nas estepes de Donbass:
“Em 2024, o mundo árabe continuará sendo o principal espaço na luta pelo estabelecimento de uma nova ordem”.
Diante de um ajuste geopolítico tão detalhado, não é de se admirar que a reação imperial tenha sido a apoplexia – revelada epidermicamente em longas e tortuosas “análises” que tentam explicar por que o Presidente Putin acabou sendo o “vencedor geopolítico” de 2023, seduzindo vastas faixas do mundo árabe e do Sul Global, solidificando o BRICS lado a lado com a China e empurrando a UE ainda mais para um vazio negro criado por ela mesma – e pelo Hegemon.
Putin até se permitiu, meio em tom de brincadeira, oferecer apoio russo para a possível “reanexação” das regiões fronteiriças do país 404, outrora anexadas por Stalin, que eventualmente seriam devolvidas aos antigos proprietários: Polônia, Hungria e Romênia. Ele acrescentou que tem 100% de certeza de que é isso que os residentes dessas fronteiras ainda ucranianas desejam.
Se isso acontecesse, teríamos a Transcarpácia de volta à Hungria, a Galícia e Volyn de volta à Polônia e a Bucovina de volta à Romênia. Você consegue sentir a casa já balançando ao amanhecer em Budapeste, Varsóvia e Bucareste?
Além disso, existe a possibilidade de o Hegemon ordenar que os punks juniores da OTAN assediem os navios petroleiros russos no Mar Báltico e “isolem” São Petersburgo. Nem é preciso dizer que a resposta russa seria simplesmente destruir os centros de comando e controle (hackear pode ser suficiente); queimar eletrônicos em todo o espectro; e bloquear o Báltico na entrada, realizando um exercício de “liberdade de navegação” para que todos se familiarizem com o novo esquema.
Essa simbiose entre a China e o Extremo Oriente russo
Uma das características mais impressionantes da parceria ampliada entre a Rússia e a China é o que está sendo planejado para a província chinesa de Heilongjiang, no nordeste do país.
A ideia é transformá-la em um megacentro econômico, de desenvolvimento científico e de defesa nacional, centrado na capital da província, Harbin, com uma nova Zona Econômica Especial (SEZ) em expansão.
O principal vetor é que esse mega-hub também coordenaria o desenvolvimento do imenso Extremo Oriente russo. Isso foi discutido em detalhes no Fórum Econômico Oriental em Vladivostok, em setembro passado.
Em um acordo único e surpreendente, os chineses podem ter permissão para administrar latitudes selecionadas do Extremo Oriente russo pelos próximos 100 anos.
Conforme detalhou o analista Thomas Polin, de Hong Kong, Pequim está orçando nada menos que 10 trilhões de yuans (US$ 1,4 trilhão) para o projeto todo. Metade desse valor seria absorvido por Harbin. O projeto chegará ao Congresso Nacional do Povo em março próximo e espera-se que seja aprovado. Ele já foi aprovado pela câmara baixa da Duma em Moscou.
As ramificações são surpreendentes. Harbin seria elevada ao status de cidade administrada diretamente, assim como Pequim, Xangai, Tianjin e Chongqing. E, acima de tudo, um Comitê de Gestão Sino-Russo será estabelecido em Harbin para supervisionar todo o projeto.
As melhores universidades chinesas, incluindo a Universidade de Pequim, transfeririam seus principais campi para Harbin. As universidades de Defesa Nacional e Tecnologia de Defesa Nacional se uniriam à Universidade de Engenharia de Harbin para formar uma nova entidade voltada para os setores de defesa. Institutos e empresas de pesquisa de alta tecnologia em Pequim, Xangai e Shenzhen também se mudariam para Harbin.
O People’s Bank of China estabeleceria sua sede para o norte da China em Harbin, com mercados de negociação de ações e futuros de commodities.
Os residentes de Heilongjiang teriam permissão para viajar para regiões designadas do Extremo Oriente russo sem visto. A nova SEZ de Heilongjiang teria sua própria área alfandegária e não teria impostos de importação.
Esse é o mesmo espírito que impulsiona os corredores de conectividade BRI e o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (INSTC). A lógica subjacente é uma integração mais ampla da Eurásia.
Na recente reunião do Astana Club no Cazaquistão, o pesquisador Damjan Krnjevic-Miskovic, Diretor de Pesquisa de Políticas da Universidade ADA em Baku, fez uma excelente apresentação sobre corredores de conectividade.
Ele se referiu, por exemplo, à reunião C5+1 (cinco “stans” da Ásia Central mais a China) realizada há três meses em Dushanbe, com a presença do presidente do Azerbaijão, Aliyev: isso significa integração entre a Ásia Central e o Cáucaso.
Miskovic está prestando a devida atenção a tudo o que está evoluindo no que ele define, corretamente, como “a região da Rota da Seda” – interligando o Euro-Atlântico com a Ásia-Pacífico e interconectando a Ásia Ocidental, o Sul da Ásia e a Eurásia em geral.
Estrategicamente, é claro, essa é a “dobradiça geopolítica onde a OTAN encontra a Organização de Cooperação de Xangai (SCO) e onde a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) se conecta com a Turquia e o território da UE”. Em termos práticos, a Rússia e a China sabem exatamente o que precisa ser feito para impulsionar a conectividade econômica e os “relacionamentos sinérgicos” em todo esse vasto espectro.
A guerra dos corredores econômicos esquenta
A fragmentação da economia global já está polarizando o BRICS 10, que está em expansão (a partir de 1º de janeiro, sob a presidência russa, e sem o flerte com a dolarização da Argentina), e o G7, que está encolhendo.
O vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Andrey Rudenko – uma mão importante para a Ásia – em conversa com a TASS, reafirmou mais uma vez que o principal impulso para a Parceria da Grande Eurásia (política oficial russa) é conectar a União Econômica da Eurásia (EAEU) com a BRI.
À medida que a Rússia desenvolve um equilíbrio cuidadosamente calibrado entre a China e a Índia, o mesmo impulso se aplica ao desenvolvimento da INSTC, em que Rússia, Irã e Índia são os principais parceiros, e o Azerbaijão também deve se tornar um participante crucial.
Acrescente a isso os laços russos amplamente aprimorados com a Coreia do Norte, a Mongólia, o Paquistão (membro da BRI e da SCO) e a ASEAN (exceto a ocidentalizada Cingapura).
A BRI, no que se refere aos detalhes, está em pleno andamento. Acabei de passar três semanas em Moscou, Astana e Almaty, e foi possível confirmar com várias fontes que os trens em todos os corredores de conectividade estão lotados; via Transiberiana; via Astana até Minsk; e via Almaty até o Uzbequistão.
A gerente de programas do Conselho de Assuntos Internacionais da Rússia, Yulia Melnikova, acrescenta que “Moscou pode e deve se integrar mais ativamente às operações de trânsito ao longo da rota China-Mongólia-Rússia” e acelerar a harmonização dos padrões entre a EAEU e a China. Sem mencionar o investimento adicional na cooperação Rússia-China no Ártico.
Eis que surge o presidente Putin, em uma reunião da Russian Railways, revelando um ambicioso e maciço plano de expansão de infraestrutura de 10 anos que abrange novas ferrovias e melhor conectividade com a Ásia – do Pacífico ao Ártico.
A economia russa definitivamente se voltou para a Ásia, responsável por 70% do volume de negócios em meio à demência das sanções ocidentais.
Portanto, o que está no cardápio à frente é tudo, desde a modernização da Transiberiana e o estabelecimento de um importante centro logístico nos Urais e na Sibéria até a melhoria da infraestrutura portuária nos mares Azov, Negro e Cáspio e o trânsito mais rápido de cargas INSTC entre Murmansk e Mumbai.
Putin, mais uma vez, quase como uma reflexão tardia, comentou recentemente que o comércio pelo Canal de Suez não pode mais ser considerado eficaz, em comparação com a Rota Marítima do Norte da Rússia. Com um único e incisivo movimento geopolítico, o Ansarullah do Iêmen tornou isso evidente – para que todos vejam.
Acontece que o desenvolvimento russo da Rota do Mar do Norte está em total sinergia com a iniciativa chinesa de desenvolver a parte ártica da BRI. No que diz respeito ao petróleo, as remessas russas para a China por meio de sua costa ártica levam apenas 35 dias: 10 dias a menos do que via Suez.
Danila Krylov, pesquisadora do Departamento do Oriente Médio e da Ásia Pós-Soviética do Instituto de Informações Científicas sobre Ciências Sociais da Academia Russa de Ciências, oferece uma visão direta:
“Vejo o fato de que os americanos estão se envolvendo no Iêmen como parte de um grande jogo [cenário]; há mais do que apenas um desejo de punir os Houthis ou o Irã, pois é mais provável que isso seja motivado por um desejo de impedir a monopolização do mercado e dificultar as entregas de exportação chinesas para a Europa. Os americanos precisam de um Canal de Suez operacional e de um corredor entre a Índia e a Europa, enquanto os chineses não querem isso porque esses são dois concorrentes diretos.”
Não é que os chineses não a queiram: com a Rota do Mar do Norte funcionando, eles não precisam dela.
Agora congele!
Resumindo: na Guerra dos Corredores Econômicos, que está em andamento e se torna cada vez mais conflituosa, a iniciativa é da Rússia e da China.
Em desespero, e não mais do que uma vítima sem cabeça e sem opções na Guerra dos Corredores Econômicos, os vassalos da UE do Hegemon estão recorrendo à distorção do manual Follow the Money [siga o dinheiro – nota do tradutor].
O Ministério das Relações Exteriores definiu o congelamento de ativos russos – não apenas privados, mas também estatais – pela UE como puro roubo. Agora, o ministro das Finanças da Rússia, Anton Siluanov, está deixando bem claro que Moscou reagirá de forma simétrica ao possível uso da renda desses ativos russos congelados.
Parafraseando Lavrov: vocês confiscam, nós confiscamos. Todos nós confiscamos.
As repercussões serão cataclísmicas – para o Hegemon. Nenhuma nação do Sul Global, fora do território da OTAN, será “incentivada” a depositar suas moedas/reservas estrangeiras no Ocidente. Isso pode fazer com que, em um piscar de olhos, todo o Sul Global abandone o sistema financeiro internacional liderado pelos EUA e se junte a uma alternativa liderada pela Rússia e pela China.
A parceria estratégica Rússia-China, concorrente de seus pares, já está desafiando diretamente a “ordem internacional baseada em regras” em todas as frentes – melhorando suas esferas históricas de influência e, ao mesmo tempo, desenvolvendo ativamente corredores de conectividade vastos e interconectados que contornam essa “ordem”. Isso exclui, na medida do possível, uma guerra quente direta com o hegemon.
Ou, para colocar em termos da Rota da Seda: enquanto os cães de guerra latem, mentem e roubam, a caravana Rússia-China caminha.
Fontes:
* https://strategic-culture.su/news/2023/12/26/russia-china-are-on-a-roll/
* https://globalsouth.co/2023/12/26/russia-china-are-on-a-roll/
O Irão estará sempre na mira tanto dos EUA como de israhell.