Pepe Escobar -9 de junho de 2022 – publicado originalmente no The Craddle e amplamente compartilhado – [Traduzido por Vila Mandinga]
Com The Destiny of Civilization: Finance Capitalism, Industrial Capitalism or Socialism [O Destino da Civilização: Capitalismo Financeiro, Capitalismo Industrial ou Socialismo], Michael Hudson, um dos principais economistas independentes do mundo, deu-nos sem dúvida o manual definitivo sobre onde estamos, quem está no comando e se podemos ignorá-los.
Melhor saltar direto no olho do furacão. Hudson começa com uma análise do ethos “pegue o dinheiro e corra”, completado com a desindustrialização, já que 90% da receita corporativa dos EUA é “usada para recompra de ações e pagamento de dividendos, para segurar os preços das ações da empresa”.
É o ápice da estratégia política do “capitalismo financeiro”: “capturar o setor público e transferir o poder monetário e bancário” para Wall Street, City de Londres e outros centros financeiros ocidentais.
Todo o Sul Global reconhecerá facilmente o modus operandi imperial: “A estratégia do imperialismo militar e financeiro dos EUA é instalar oligarquias e ditaduras clientes, e torcer o braço de aliados até que entrem em luta contra adversários designados e subsidiem, não apenas os custos imperiais de fazer a guerra (“defesa”), mas até os programas de gastos domésticos do próprio império”. É a antítese do mundo multipolar defendido por Rússia e China.
Em suma, nossa atual Guerra Fria 2.0 “está sendo travada basicamente entre (i) o capitalismo financeiro centrado nos EUA, que apoia oligarquias rentistas e (ii) nações que buscam construir autoconfiança e prosperidade doméstica mais bem disseminadas”.
Hudson nos lembra de Aristóteles, presciente, que já dizia que é do interesse dos financistas jogar o próprio poder contra a sociedade em geral: “A classe financeira tem sido ao longo da história a principal beneficiária dos impérios, atuando como agentes de cobrança”.
Então, inevitavelmente, a principal alavancagem imperial sobre o mundo, verdadeira “estratégia pró-subdesenvolvimento”, seria financeira: instrumentalizar a pressão do FMI para “transformar a infraestrutura pública em monopólios privatizados e reverter as reformas pró-trabalhistas do século XX” mediante as tais notórias “condicionalidades” para empréstimos.
Não é à toa que o Movimento dos Não-Alinhados, MNA, estabelecido em Belgrado em 1961 com 120 nações e 27 observadores, tornou-se ameaça tão grave para a estratégia global dos EUA. Os norte-americanos, como seria de prever, reagiram com uma série de guerras étnicas e as primeiras encarnações da revolução colorida – fabricando ditaduras em escala industrial, de Suharto a Pinochet.
O ponto culminante foi um encontro cataclísmico em Houston dia 19/12/1990, que “celebrou” a dissolução da URSS. Hudson nos lembra de como o FMI e o Banco Mundial “estabeleceram um plano para os líderes da Rússia imporem austeridade e doarem seus ativos – não importava a quem – numa onda de ‘terapia de choque’, para deixar que a suposta magia da livre iniciativa criasse um vale-tudo neoliberal”.
Perdido num deserto romano* de dívidas
Em grande medida, a nostalgia pelo estupro e pilhagem da Rússia da década de 1990 alimenta o que Hudson define como a Nova Guerra Fria, quando a Diplomacia do Dólar tem de afirmar seu controle sobre todas as economias estrangeiras. A Nova Guerra Fria não é travada apenas contra Rússia e China, “mas contra quaisquer países que resistam à privatização e à financeirização sob patrocínio dos EUA”.
Hudson nos lembra como a política da China “seguiu quase o mesmo caminho que o protecionismo americano de 1865 a 1914 – subsídio estatal para a indústria, pesado investimento de capital do setor público… e gastos sociais em educação e saúde para melhorar a qualidade e a produtividade do trabalho. A ninguém nos EUA ocorreu chamar isso de marxismo; foi simplesmente o modo lógico de olhar para a industrialização, como parte de um amplo sistema econômico e social”.
Mas então, o capitalismo financeiro – ou de cassino – ganhou força e inflou a economia dos EUA com “excedentes agrícolas do agronegócio e monopólios em Tecnologia da Informação (em grande parte desenvolvidos como subproduto da pesquisa militar), hardware militar e patentes farmacêuticas (baseadas em dinheiro público para financiar pesquisas), capaz de extrair renda de monopólio, ao mesmo tempo em que tantos se tornam amplamente isentos de impostos, servindo-se de centros bancários instalados fora do país (ing. offshore)”.
Esse é o atual Estado do Império: dependente e confiado “em sua própria classe rentista e na Diplomacia do Dólar”, com a prosperidade concentrada no 1% superior das elites do establishment. Corolário inevitável é a diplomacia dos EUA a impor sanções ilegais e unilaterais a Rússia, China e a qualquer pessoa ou empresa que desafie seus ditames.
A economia dos EUA é de fato remake pós-moderno manco do final do Império Romano: “dependente de tributos estrangeiros para conseguir sobreviver na economia rentista global de hoje”. E entra a correlação entre almoço grátis minguante e medo absoluto: “Por isso os EUA cercaram a Eurásia com 750 bases militares”.
Hudson volta deliciado a Lactâncio, no final do século III, que descreve o império romano em Instituições Divinas,** para enfatizar os paralelos com a versão americana:
“Para escravizar muitos, os gananciosos começaram por se apropriar e entesourar os itens necessários à vida e mantê-los bem fechados, para que pudessem reservar essas recompensas para si. Fizeram isso não por cuidado com a humanidade (que não havia neles), mas para recolher tudo para si, como produtos de sua ganância e avareza. Em nome da justiça, fizeram leis sem justiça nem legalidade, para legalizar os próprios roubos e a própria avareza, contra o poder da multidão. Dessa forma autoafirmaram-se, tanto pela autoridade quanto pela força das armas ou do mal manifesto”.
Socialismo ou barbárie
Hudson enquadra sucintamente o dilema central que o mundo enfrenta: “dinheiro e crédito, terra, recursos naturais e monopólios serão privatizados e concentrados nas mãos de uma oligarquia rentista? Ou serão usados para promover prosperidade e crescimento gerais? Basicamente, esse conflito trava-se entre o capitalismo financeiro e o socialismo como sistemas econômicos”.
Para avançar na luta, Hudson propõe um programa contrarrentismo, como plano definitivo do Sul Global para o desenvolvimento responsável: propriedade pública de monopólios naturais; infraestrutura básica chave, em mãos públicas; autossuficiência nacional, crucialmente, em dinheiro e criação de crédito; proteção ao consumidor e ao trabalho; controles de capitais, para evitar empréstimos ou a denominação de dívidas em moeda estrangeira; impostos sobre renda, seja ‘renda não trabalhada’ (aproximadamente, ganhos que não correspondem a esforço do beneficiário da renda. Ing. income unearned), como renda econômica (ing, economic rent); tributação progressiva; imposto sobre a terra (“impedirá que o valor crescente da renda da terra seja penhorado aos bancos como garantia de empréstimos, para inflar os preços dos imóveis”); uso do excedente econômico para investimento em capital tangível; e autossuficiência alimentar nacional.
Como Hudson parece ter coberto todas as bases, no final do livro restava-me só uma pergunta abrangente. Perguntei a ele como analisava as atuais discussões entre a União Econômica Eurasiana e os chineses – e entre Rússia e China, mais adiante; se as considerava capazes de planejar e pôr em operação um sistema financeiro/monetário alternativo. Conseguirão vender o sistema alternativo para a maior parte do planeta, ao mesmo tempo em que se esquivam do assédio financeiro imperial?
Extremamente gentil, Hudson respondeu com o que bem poderia ser o resumo de um capítulo de livro:
“Para ser bem-sucedida, qualquer reforma tem de abranger todo o sistema, não apenas uma parte dele. As economias ocidentais financeirizaram-se, deixando a criação de crédito em mãos privadas – para gerar ganhos financeiros à custa da economia industrial… Esse objetivo espalhou-se como lepra, contaminando economias inteiras –padrões comerciais (dependência das exportações agrícolas e de petróleo, e de Tecnologia da Informação, TI), relações trabalhistas (antissindicalismo e austeridade), posse da terra (agricultura de propriedade estrangeira, em vez de autossuficiência doméstica e autossuficiência em grãos alimentares); até a própria teoria econômica (tratando finanças como parte do PIB, não como sobrecarga que desencaminha tudo, seja a renda do trabalho seja a renda da indústria).”
Hudson adverte que “para se libertar da dinâmica do capitalismo financeiro predatório patrocinado pelos EUA e seus satélites, os países precisam ser autossuficientes na produção de alimentos, de energia, de tecnologia e de outros itens que correspondem a necessidades básicas.
Para tanto, é necessário que haja uma alternativa ao ‘livre comércio’ dos EUA e ao seu ‘comércio justo’ ainda mais nacionalista (considera ‘injusta’ a concorrência de qualquer agente estrangeiro que dispute espaços contra a indústria de propriedade dos EUA). Para que haja essa alternativa, é preciso criar alternativa ao FMI, ao Banco Mundial e à Organização Internacional do Comércio, OIT (dos quais a Rússia acabou de se retirar). E, infelizmente, para que haja via alternativa, que permita escapar às imposições dos EUA, também tem de haver coordenação militar, como na Organização de Cooperação de Xangai, OCX, para defender os membros contra a militarização do capitalismo financeiro centrado nos EUA”.
Hudson vê alguma luz à frente: “Quanto à sua pergunta, sobre se Rússia e China podem ‘vender’ essa visão do futuro aos países do Sul Global e da Eurásia, essa tarefa estará muito facilitada já no final desse verão. Um importante subproduto (não por acaso) da guerra da OTAN na Ucrânia é o aumento drástico dos preços da energia e dos alimentos (e dos fretes). Isso porá em acentuado déficit a balança de pagamentos de muitos países do Sul Global e de outros países, o que levará a uma crise à medida que comece a vencer a dívida denominada em dólares, contraída com detentores de títulos e bancos”.
O principal desafio para a maior parte do Sul Global é evitar o calote:
“O aumento das taxas de juros nos EUA aumentou a taxa de câmbio do dólar não apenas em relação ao euro e ao iene japonês, mas também em relação ao Sul Global e outros países. Significa que parcela muito maior da renda e receita de exportação dos países é consumida para pagar a respectiva dívida externa. – E os países só conseguem evitar o calote, ficando sem alimentos e petróleo. O que escolherão?
O FMI pode oferecer-se para criar Direitos Especiais de Saque, DES (ing. Special Drawing Rights, SDR), para possibilitar que os países paguem o que já devem – mas acumulando ainda mais dívidas dolarizadas, sujeitas aos planos de austeridade do FMI e às exigências de que vendam ainda mais de seus recursos naturais, florestas e água.”
Então, como se libertar da dívida dolarizada?
“Eles precisam de massa crítica. Não havia disponível na década de 1970, quando uma Nova Ordem Econômica Internacional foi discutida pela primeira vez. Mas hoje vai-se tornando alternativa viável, graças ao poder da China, aos recursos da Rússia e de países aliados, como Irã, Índia e outros países do Leste Asiático e da Ásia Central.
Assim sendo, suspeito que um novo sistema econômico mundial já está surgindo. Se for bem-sucedido, o século passado – desde o fim da 1ª Guerra Mundial e a confusão que deixou – parecerá uma longa trilha de passos perdidos na história, que então estará voltando ao que pareciam ser os ideais sociais básicos da economia clássica – um mercado no qual não haja senhores de terra à caça de rendas, de monopólios e de finanças predatórias.”
Hudson conclui reiterando do que trata, realmente, a Nova Guerra Fria:
“Em suma, trata-se do conflito entre dois sistemas sociais, cada um com sua própria filosofia de como as sociedades funcionam. Serão planejadas por centros financeiros neoliberais fincados em Nova York, apoiados pelos neoconservadores de Washington? Ou serão o tipo de socialismo que o final do século 19 e início do século 20 vislumbraram – um ‘mercado’ e, de fato, uma sociedade, em que não haja rentistas?
Os monopólios naturais, como a terra e os recursos naturais, serão socializados e usados para financiar o crescimento doméstico e a moradia?
Ou serão entregues aos interesses financeiros, convertendo a renda nacional em moeda de pagar juros que devoram os ganhos dos consumidores e os ganhos das empresas?
E acima de tudo: os governos criarão o próprio dinheiro e direcionarão os bancos para que promovam a prosperidade doméstica? Ou permitirão que bancos privados (cujos interesses financeiros são representados pelos bancos centrais) roubem o controle da mão dos Tesouros nacionais?”
* “Lost in a Roman wilderness [of pain]” é verso de Jim Morrison em The End, The Doors, 1967 [NTs].
** Para quem não saiba do que se trata, há boa informação aqui, em português [NTs].
O conhecido “imperialismo, fase superior do capitalismo” continua a ter desdobramentos na vertente apodrecimento: “financeirismo, fase última do imperialismo” e “natonazismo, fase última do financeirismo”. Nessa corrida esquizofrénica para o caos, a barbárie e a autodestruição, a humanidade foi colocada à beira do abismo. A direção do próximo passo decidirá de tudo.
… mais uma (excelente) tradução da Vila Mandiga…
… ( como é bom sentir que existe pessoas contribuindo para a conscientização de todos nós… (admiradores desse super-incrível ser… chamado… Pepe Escobar…
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Wonderful explanation!
Com a “doação” da Eletrobrás para os vampiros do sistema financeiro fica claro o caminho escolhido por Bolsonaro e seus generais e economistas. Não investirão um centavo na ampliação da infraestrutura elétrica nacional sem polpudos recursos do tesouro para alavancar a pirataria do capital financeiro predador a que Hoje dsonbse refere.
A venda da Eletrobras é mais um capítulo neste monento perdido da guerra contra o império. Esperemos que contra-ataquemos em 2023 com Luka ba presidência