Texto de Pepe Escobar em 07 de agosto de 2020 – tradução por btpsilveira
Foto: Uma vista aérea mostra na quarta-feira o dano imenso causado aos silos de grãos de Beirute e a área em volta, um dia depois da grande explosão que atingiu o local no coração da capital libanesa. Foto: AFP
Publicado originalmente em: https://asiatimes.com/2020/08/who-profits-from-the-beirut-blast/
Já está gravada em pedra, pelo menos na esfera atlanticista, a narrativa de que a explosão em Beirute foi consequência exclusiva da corrupção e negligência do governo libanês atual.
Mesmo assim, se cavarmos mais fundo, poderemos eventualmente descobrir que essa negligência e corrupção podem ter sido bem exploradas, usando de sabotagem, para engendrar o que aconteceu.
O Líbano é como o território dos sonhos de John Le Carré. Um amontoado multinacional de espiões de todos os matizes – agentes da Casa de Saud, operadores israelenses, “rebeldes moderados” armados, intelectuais do Hezbollah, “realeza” árabe pervertida, contrabandistas auto glorificados – tudo dentro do contexto de um desastre econômico total.
Como se o ambiente não fosse vulcânico o suficiente, o presidente Trump meteu a colher suja para manchar ainda mais as águas – já contaminadas – do Mediterrâneo oriental.” Informado pelos “nossos grandes generais” Trump disse na terça-feira: “pelo que me disseram – eles devem saber mais que eu – eles parecem pensar que foi um ataque”. E acrescentou: “foi algum tipo de bomba”.
Será que o presidente está lançando mais um non sequitur, ou essa fala candente pretende revelar informação privilegiada ao deixar o rabo do gato fora da bolsa?
Eventualmente, Trump voltou atrás de seus comentários após o Pentágono se recusar a corroborar a fala sobre o que os “generais” tinham dito ao Secretário da Defesa Mark Esper, apoiando a explicação de que a causa da explosão fora um acidente.
Trata-se de mais uma ilustração da guerra que grassa na Beltway. Trump diz: ataque. O Pentágono: acidente. “acho que neste momento ninguém pode afirmar nada” disse o presidente na quarta-feira. “Ouvi as duas explicações”.
Então vale a pena prestar atenção numa reportagem da agência iraniana Mehr, informando que quatro aviões de reconhecimento da marinha dos EUA foram vistos perto de Beirute no momento das explosões. Dentro da gama das possibilidades, estaria a inteligência dos EUA sabendo do que realmente aconteceu?
O nitrato de amônia
A segurança do porto de Beirute – principal centro econômico do país – deveria ser considerada de alta prioridade. Mas, parodiando a fala do filme Chinatown de Roman Polanki: “Jack, esqueça. É Beirute”.
Aquelas 2.750 toneladas de nitrato de amônia, agora icônicas, chegaram a Beirute em setembro de 2013, a bordo do Rhosus, navio de bandeira Moldava, mas de propriedade de um russo que reside em Chipre, navegando de Batumi, na Georgia, para Moçambique. O Rhosus acabou apreendido pelo Controle Estatal do Porto de Beirute.
Ocorre que o navio na realidade foi abandonado pelo proprietário, um obscuro homem de negócios chamado Igor Grechushkin, russo domiciliado em Chipre, o qual suspeitosamente “perdeu o interesse” na carga relativamente preciosa, sequer tentando vendê-la ou se livrar dela, para pagar seus débitos.
Grechushkin jamais pagou sua tripulação, que mal conseguiu sobreviver por vários meses até ser deportada por motivos humanitários. O governo cipriota afirmou que nunca houve pedido do governo do Líbano para que a Interpol o detivesse. A coisa toda parece ser um disfarce – sendo os reais proprietários do nitrato de amônia os “rebeldes moderados” na Síria, que o usam para fazer IEDs (Artefato Explosivo Improvisado – NT) com que equipam veículos suicidas, como aquele que demoliu o hospital Al Kindi em Alepo.
As 2.750 toneladas – embaladas em bags de 1 tonelada com a marca “Nitroprill HD” – foram transferidas para o armazém 12, no cais. A seguir, aconteceu uma série estupefaciente de negligência em série.
De 2014 a 2017, comunicados de oficiais da alfândega – uma série deles – bem como apresentação de propostas para se livrar da carga perigosa, exportando-a ou vendendo-a foram simplesmente ignoradas. O judiciário libanês quedou-se inerte a cada vez que se tentou provocar uma decisão judicial para se livrar da carga.
O contexto é absolutamente essencial quando o Primeiro Ministro libanês agora afirma que “os responsáveis pagarão o preço”.
Nem o Primeiro Ministro, nem o Presidente ou qualquer de seus ministros sabiam que o nitrato de amônia estava estocado no armazém 12, afirma o antigo diplomata Amir Mousavi, diretor do Centro de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais em Teerã. Estamos falando de um Artefato Explosivo Improvisado de 2.750 toneladas, instalado em pleno centro da cidade.
A burocracia no porto de Beirute e a máfia que o controla efetivamente, são estreitamente ligadas, entre outros à facção de al-Mostaqbal, liderada pelo antigo primeiro ministro Saad al-Hariri, totalmente apoiado pela Casa de Saud.
Hariri, que é imensamente corrupto, foi expulso do poder em outubro de 2019, no meio de grandes protestos. Seus capangas “desapareceram” com pelo menos 20 bilhões de dólares do tesouro do Líbano – o que só veio aprofundar a grave crise monetária enfrentada pelo país.
Assim, não é de se admirar que o governo atual – Primeiro Ministro Diab, apoiado pelo Hezbollah – não tenha sido informado sobre o nitrato de amônia.
Um dos explosivos mais seguros usados na mineração, o nitrato de amônia é muito estável. O fogo normalmente não o faz explodir. Torna-se altamente explosivo apenas se for contaminado – por petróleo, por exemplo – ou quando esquentado até o ponto em que se forma um casulo dentro do qual o oxigênio chega a um nível tal que qualquer ignição pode causar uma explosão.
Por que, depois de jazer no Armazém 12 por sete anos, a pilha de repente, sem mais nem menos, explodiu?
Até agora, a primeira explicação direta, feita pelo especialista em Oriente Médio Elijah Magnier, aponta para uma tragédia “deflagrada” – literalmente – por um serralheiro descuidado manejando um maçarico ao lado do nitrato de amônia inseguro. Diga-se mais uma vez: inseguro devido a negligência e corrupção – ou quem sabe como parte de um “equívoco” intencional antecipando a possibilidade de uma explosão no futuro.
No entanto, este cenário não explica a explosão inicial de fogos de artifício. E com certeza também não explica algo que ninguém – pelo menos no ocidente – está expondo: o incêndio deliberado ateado em um supermercado iraniano em Ajam, nos Emirados Árabes Unidos, assim como uma série de armazéns de comida/produtos agrícolas em Najaf, no Iraque, imediatamente depois da tragédia de Beirute.
Siga o dinheiro
O Líbano, ostentando ativos e valores imobiliários na ordem de trilhões de dólares – é pêssego suculento para os abutres da finança global. Para eles, é simplesmente irresistível tentar açambarcar esses ativos a preço vil no meio de uma Nova Grande Depressão. Ao mesmo tempo o abutre chamado FMI deve embarcar na onda em modo extorsivo turbo, para finalmente “perdoar” alguns débitos de Beirute, desde que uma variação especialmente dura do “ajuste estrutural” seja imposta.
Neste caso, quem lucraria seriam os interesses geopolíticos e geoeconômicos dos Estados Unidos, Arábia Saudita e França. Não é por acidente que o presidente Macron, um servo obediente de Rothschild, desembarcou em Beirute na quinta-feira, prometendo “apoio” neocolonial de Paris. Um diálogo impregnado de Monty Python, com sotaque francês marcado, seria mais ou menos assim: “Queremos comprar seu porto”. “Não está à venda”. “Que pena! Acabou de acontecer um acidente.”
Há quase um mês o FMI está “alertando” que a “implosão” do Líbano estava “acelerando”. Ao Primeiro Ministro Diab foi imposta a proverbial “oferta que você não pode recusar” para “desbloquear bilhões de dólares de donor funds” (donor funds, ou donor advised funds são organizações de coleta de fundos para fins supostamente caritativos, mas acusados de servirem apenas como “depósitos de dinheiro” para pessoas muito ricas que pretendem guardar dinheiro e se esquivar de taxas – NT fonte: Investopedia), senão… A crise monetária da moeda do país, que já dura um ano, é apenas um aviso – relativamente educado.
Tudo acontece entremeado por grande apropriação mundial de ativos, encerrada dentro de um contexto mais amplo da queda de quase 40 por cento do PIB (norte)americano, falências em série, pequeno grupo de bilionários acumulando lucros impensáveis e megabancos “grandes demais para falir” sendo resgatados por uma inundação de dinheiro grátis.
Dag Detter, financista sueco e o antigo ministro e vice presidente do Banco Central do Libano, Nasser Said, sugerem que os ativos nacionais transformem-se em fundos soberanos. Entre os ativos interessantes, estão a Eletricité du Liban (EDL), empresas de abastecimento de água, aeroportos, a linha aérea MEA, a companhia de telecomunicações OGERO e o Cassino do Líbano. Para exemplificar, a EDL é responsável por 30% do débito orçamentário de Beirute.
Isso não chega nem perto do suficiente para os grandes bancos ocidentais. Eles querem tomar tudo, mais um naco dos ativos imobiliários.
“O valor econômico dos ativos imobiliários públicos poder valer pelo menos o mesmo que o PIB e frequentemente várias vezes o valor da parte operacional de qualquer portfólio”, dizem Detter e Saidi.
Alguém sentindo as ondas de choque?
Em uma sala frequentemente chamada pela mídia ocidental de “Chernobyl Libanês”, Israel faz o papel do elefante do provérbio.
O planos de Israel estão ligados a um cenário como o de Beirute desde fevereiro de 2016.
Israel acabou por admitir que o armazém 12 não era um depósito de armas para o Hezbollah. Ainda assim, no mesmo dia do explosão em Beirute e na sequência de uma série de explosões suspeitas no Iran e grande tensão na fronteira entre Síria e Israel, o primeiro ministro Netanyahu tuitou, no presente: “nós atingimos uma de suas células e agora atingimos os operadores. Faremos o que for necessário para nos defender. Sugiro que todos eles, incluindo o Hezbollah, levem isto em consideração.”
Isso combina com a intenção abertamente declarada na última semana, de bombardear a infraestrutura libanesa, se o Hezbollah atingir soldados das Forças de Defesa ou cidadãos de Israel.
Uma manchete – “As ondas de choque da explosão em Beirute serão sentidas pelo Hezbollah por muito tempo” – confirma que a única coisa que importa a Israel é lucrar com a tragédia para demonizar o Hezbollah e por associação, o Irã. A coisa toda está ligada à lei aprovada pelo Congresso dos EUA – “Countering Hezbollah in Lebanon’s Military Act of 2019 {S.1886} (Lei de Combate ao Hezbollah nas Forças Armadas do Líbano – NT), a qual nada mais é que uma ordem para que o Líbano expulse o Hezbollah do país.
Mesmo assim, Israel tem sido estranhamente contido.
Turvando ainda mais as águas, a inteligência saudita – que tem acesso à Mossad e demoniza o Hezbollah ainda mais que Israel, fez sua intervenção. Mas os operadores com quem conversei se recusam a permitir gravações, considerando a extrema sensibilidade do assunto.
Todavia, há que se destacar que a fonte da inteligência saudita cuja especialidade é a frequente troca de informações com a Mossad, afirma que o alvo original eram os mísseis do Hezbollah estocados no porto de Beirute. Sua narrativa é que o Primeiro Ministro Netanyahu deveria levar os louros do sucesso do ataque – por isso o seu tweet na sequência. Acontece que a Mossad entendeu que a operação tomou um rumo terrivelmente errado e se transformou numa catástrofe de grandes proporções.
O problema começa com a não existência de um depósito de armas do Hezbollah – como até Israel admitiu. Quando um depósito de armas é atingido, há uma explosão primária seguida por várias explosões menores, coisa que pode durar dias. Não foi o que aconteceu em Beirute. O fogo e a explosão inicial foram seguidos por uma explosão massiva – quase com certeza uma explosão química – e depois o silêncio.
Thierry Meyssan, intimamente ligado à inteligência síria, avança a possibilidade de que o “ataque” foi lançado com uma arma desconhecida, um míssil – e não uma bomba nuclear – que foi testada na Síria em janeiro de 2020. Nunca houve referências a essa arma desconhecida, nem pela Síria nem pelo Irã, e não tenho confirmação de sua existência.
Ao assumir que o porto de Beirute foi atingido por uma “arma desconhecida”, o presidente Trump pode ter dito a verdade: foi um “ataque”. Isso explicaria porque Netanyahu, ao ver a devastação causada em Beirute, decidiu que o Estado de Israel desta vez deveria ser mais discreto.
Observe a movimentação do camelo
A explosão em Beirute pode ser vista como um golpe duro contra a Iniciativa Cinturão e Estrada, considerando-se que a China vê a conectividade entre Irã, Síria, Iraque e Líbano com a pedra angular do corredor do sudoeste asiático no Cinturão e Estrada.
Ainda assim, o acontecimento pode ser um tiro pela culatra – severo. A China e o Irã já se posicionam como investidores decididos depois da explosão, em grande contraste com o FMI.
O Irã e a Síria estão na linha de frente do fornecimento de ajuda ao Líbano. Teerã está enviando um hospital de emergência, comida, remédios e equipamento médico. A Síria abriu suas fronteiras com o Líbano, enviou equipes médicas e está recebendo pacientes dos Hospitais de Beirute.
Não se deve deixar de lembrar que o “ataque” (segundo Trump) contra o porto de Beirute destruiu o principal silo de grãos, bem como causou a total destruição do porto – centro comercial essencial do país.
Pode se tratar de uma estratégia para levar a fome ao Líbano. No mesmo dia em que o Líbano passou a ser extremamente dependente da Síria por comida – o país só tem trigo suficiente para um mês – os Estados Unidos atacaram os silos na Síria.
A Síria é uma grande exportadora de trigo orgânico. É por isso que os Estados Unidos alvejam rotineiramente os silos da Síria e queimam seus grãos – tentativa de levar a fome ao país e forçar Damasco, já sob sanções extremas, a gastar os fundos de que tanto necessita com compras de comida.
O plano A do Líbano deveria ser o progressivo abandono das relações sufocantes com Estados Unidos e França e ir direto para a Iniciativa Cinturão e Estrada e para a Organização de Cooperação de Xangai. Vá para o leste, siga o caminho da Eurásia. O porto e mesmo grande parte da cidade que foi destruída pode, no médio prazo, ser rapidamente reconstruída com profissionais e investimento chineses. Os chineses são especialistas em construção e operação de portos.
Este cenário, reconhecidamente otimista, implicaria o expurgo dos canalhas da plutocracia super rica e corrupta dos comerciantes de armas/drogas/setor imobiliário do Líbano – que, de qualquer forma, ao menor sinal de perigo, fogem para seus apartamentos em Paris.
Some tudo ao verdadeiramente bem sucedido sistema de bem estar social do Hezbollah – que eu mesmo vi em funcionamento ano passado – podendo aproveitar a possibilidade de ganhar a confiança da classe média empobrecida, tornando-se dessa forma o centro da reconstrução.
Compare agora esta situação com o Império do Caos – que necessita do caos eterno em todos os lugares, especialmente através da Eurásia, para encobrir o caos tipo Mad Max que se aproxima rapidamente dos Estados Unidos.
O notório general Wesley Clark, aquele dos 7 países em cinco anos mais uma vez vem à mente – e o Líbano permanece como um desses sete países. A lira libanesa pode ter desabado; a maioria dos libaneses podem estar completamente falidos e agora Beirute está devastada. Pode ser a palha que quebra as costas do camelo – deixando-o finalmente livre para refazer seus passos de volta à Ásia através da Nova Rota da Seda.
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