27/11/2018, E.J.Magnier Blog
Quem ajudou o general iraniano, comandante da Brigada al-Quds, general Qassem Soleimani, a expandir a própria influência e seu círculo de aliados no Oriente Médio? Como esse nome tornou-se tão conhecido e a reputação do general cresceu tanto?
Por trás do sucesso de Soleimani encontra-se, em primeiro lugar, o establishment dos EUA e, em segundo, a Europa e a Arábia Saudita. A invasão do Iraque, pelos EUA, em 2003, deu ao Irã, numa bandeja de prata, a cabeça do mais feroz inimigo dos iranianos, Saddam Hussein. E criou o espaço para que o Irã restabelecesse seus laços com a Mesopotâmia. Mais que isso, a guerra na Síria levou as relações entre Teerã e Damasco a altura jamais alcançada antes, quando o presidente Assad pediu o apoio da República Islâmica para impedir o avanço do golpe para mudança de regime promovido, financiado e estimulado por EUA e Europa (com pleno apoio de Arábia Saudita, Qatar e Turquia).
Depois, foi o confronto em Gaza, que varreu para longe todas as diferenças que ainda houvesse entre o Eixo da Resistência e o Hamas – o que mais uma vez reforçou a posição do general Soleimani. E por último, mas não menos importante, a guerra dos sauditas contra o Iêmen jogou os Houthis nos braços do único país que os apoiou e que lhes garantiu os meios necessários para sobreviver a mais quatro anos de ataque genocida: o Irã. O que mais o general Soleimani poderia desejar? E será Soleimani o homem mais forte do Irã, como o Ocidente crê que seja?
Ao contrário do que alguns especialistas parecem crer, Soleimani não é o mais poderoso general no Irã. O oficial seu superior direto, a quem Soleimani se reporta, é o general-brigadeiro Mohammad Ali Jafari. Soleimani é parte do Exército de Guardiães da Revolução Islâmica, conhecida popularmente como Guarda Revolucionária Islâmica ou Corpo de Guardas Revolucionários Islâmicos (ing. Islamic Revolutionary Guard Corps, IRGC); e não tem tropa sob seu comando no Irã. Seu serviço é implementar políticas que lhe são ordenadas, e está inscrito como parte do aparelho de segurança do Irã, com um quadro de assistentes que o ajudam a lidar com aliados do Irã, principalmente com atores não estatais.
Há muitas personalidades e muitos corpos de segurança mais importantes que Soleimani na República Islâmica do Irã. Mas, porque é o comandante da Brigada al-Quds, encarregada de financiar, treinar e organizar aliados fora do Irã, Soleimani ganhou fama e renome. Muitos anos depois da invasão do Iraque pelos EUA, bem pouca gente, mesmo entre aliados do Irã, ainda não conheciam Soleimani, sequer, haviam ouvido o nome dele. Mas os iraquianos não conseguiram ser discretos e encarregaram-se de divulgar aos quatro ventos o nome, o movimento e os encontros do general Soleimani. De fato, o amplo relacionamento de Soleimani e vários grupos iraquianos começou depois da batalha de Najaf em 2004.
Só na última década o Irã começou a enviar mensagens abertas ao establishment norte-americano, expondo Soleimani à atenção da mídia. O general aparecia em fotos em todos os locais, sempre para dizer “Irã está aqui”. No Líbano, quando Soleimani visita alguma figura pública, uma equipe de guarda-costas é distribuída pela área e pelos telhados em torno. Não no Iraque ou na Síria, onde o acesso ao general iraniano é menos complicado.
O Ocidente ama ter um nome, uma imagem, uma pessoa determinada à qual atribuir todas as culpas, sempre. É questão de rótulo, não de informação. Foi o que o Ocidente fez com Imad Mughnniyah nos anos 1980s, atribuindo a ele e só a ele, responsabilidade por tantas e tão descomunais tarefas que nem o Super-homem conseguiria executar sozinho. Imad ganhou fama depois de visitar a França, no curso das negociações sobre o destino de alguns franceses mantidos reféns no Líbano.
Em que pontos Soleimani foi bem-sucedido e em que pontos não foi?
O objetivo do general iraniano é zelar pelo estado do “Eixo da Resistência” e fortalecer o eixo (no Líbano, Síria, Iraque, Palestina e Iêmen). Mas Soleimani é parte de uma organização dentro das fileiras do IRGC iraniano, e não tem agenda nem projetos próprios. A fama que tem hoje explica-se por vários fatores, mas, sobretudo, pelo fracasso de todas as políticas dos EUA no Oriente Médio – e a considerável capacidade do Irã para domar o cavalo EUA e beneficiar-se dos erros dos norte-americanos.
No Líbano, os xiitas abraçaram a causa palestina nos anos 1970s e combateram contra a invasão israelense em 1982, antes de Soleimani subir ao poder. Havia muitos grupos operando no Líbano, liderando diferentes facções. Foi só em 1992, quando Sayyed Hassan Nasrallah assumiu a liderança, que o Hezbollah uniu-se. O Ministério de Relações Exteriores do Irã, o MinistérioIttilaat (?) do Irã, o IRGC e a organização de Segurança Nacional do Irã todos se envolveram no apoio aos aliados do Irã (todos os oprimidos anseiam por avançar com a “Revolução Islâmica”!). O projeto Hezbollah foi sucesso total, aos olhos do Irã. Os xiitas do Líbano tornaram-se o melhor corpo de combatentes em todo o Oriente Médio e foram treinados pelo Irã. Mas também acumularam impressionante experiência nos incontáveis confrontos com corpos israelenses (Shayetet 13, OZ brigade, SayeretvMatikal 269, Mossad…) que sempre operaram no Líbano – e também de seus sete anos de Síria, mais uns poucos de Iraque. O Hezbollah libanês é em geral considerado a obra-prima do Irã.
Na Mesopotâmia, Soleimani acreditou que poderia criar algo semelhante ao Hezbollah libanês, quando Moqtada al-Sadr levantou-se contra a ocupação de seu país pelos EUA. Enganou-se, porque não avaliou corretamente a vaidade pessoal. Moqtada aceitou a ideia de formar Asaeb Ahl al-Haq e mandou seus oficiais para serem treinados no Irã e no Líbano; mas o próprio Moqtada recusou-se a seguir instruções de Soleimani.
Só havia uma possibilidade para o general iraniano: constituir vários grupos dispostos a separar-se de Moqtada e seguir na trilha da resistência contra as forças norte-americanas de ocupação. Moqtada estava cada vez mais lento, sobretudo depois da prisão de seu braço direito, Kais al-khaz’ali, desinteressado de manter a luta armada contra os norte-americanos. Soleimani recebeu de braços abertos Sheikh Akram al-Ka’bi, assistente de Khaz’ali, para prosseguir nos ataques contra forças dos EUA, e adiante formar um grupo independente chamado Harakat al-Nujaba’.
Em 2011, o poder do Irã empalidecia no Iraque. Os políticos iraquianos estavam ocupados na luta pelo poder em Bagdá e a população estava em rebelião, sem assistência básica e sem qualquer infraestrutura. Os iraquianos mantiveram o cordão umbilical que os conectava com Teerã, para formar o governo seguinte, uma vez que os iraquianos não conseguiam construir acordo algum, sem mediação externa. Teerã queria uma fronteira aberta com o Iraque durante a vigência das sanções norte-americanas e a Mesopotâmia ofereceu essa fronteira à Pérsia… até o dia em que o ISIS (grupo chamado “Estado Islâmico”) ocupou Mosul.
Os EUA viram crescer o ISIS e assumiram o grupo com “ativo estratégico dos EUA”, fazendo-o prosperar no Iraque e crescer na direção da Síria. Durante os primeiros meses, apenas observaram. O Exército Iraquiano estava com medo e em fuga: cenário ideal para que os EUA tentassem dividir o Iraque (Curdistão no norte, Sunistão no centro e Xiitistão no sul).
O Irã moveu-se rapidamente e enviou seus instrutores, armas e munição para o governo central em Bagdá e para Erbil (Curdistão). O primeiro-ministro do Iraque Nuri al-Maliki fez contato com o secretário-geral do Hezbollah Sayyed Hassan Nasrallah e pediu-lhe que mandasse seus instrutores mais experientes. Nasrallah, que não apenas segue a doutrina do Welayat al-Fakih(Governo ou Tutela de um Jurisconsulto), mas que, além disso, segue Sayyed Ali Khamenei como seu Marja’ al-Taqleed (mais alto guia espiritual dos xiitas), buscou bênçãos de autoridade religiosa para sua decisão de enviar combatentes para o Iraque (e a Síria), não as bênçãos de Soleimani. Fato é que, segundo ensina o Islã, a responsabilidade pela morte ou por ferimentos infligidos a um membro do Hezbollah muçulmano pesa sobre uma alta autoridade religiosa (independente da nacionalidade), nunca sobre algum comandante militar iraniano.
O Grande Aiatolá Sistani declarou a Jihad (Jihad Kifa’ei) e fez nascer a Hashd al-Shaabi, a força popular de mobilização. Foi movimento autônomo do Grande Aiatolá, sem qualquer conexão com o Irã, porque lhe cabe o poder, por direito religioso, de declarar esse tipo de movimento; e a população – ou os seguidores do Grande Aiatolá – podem acompanhar a declaração, ou não. Essa força Hashd foi constituída principalmente de voluntários e membros de grupo com alguma experiência de combate. O Irã apresentou-se para equipá-los e treiná-los, ao lado do Hezbollah. Essa foi decisão do Aiatolá Sayyed Ali Khamenei, não de Soleimani.
ISIS foi detido às portas de Bagdá e Karbala (ligada à província Anbar, uma das fortalezas do ISIS). Só aí o establishment norte-americano decide intervir. O objetivo dos EUA de dividir a Mesopotâmia serviu aos interesses do Irã, porque a ascensão do ISIS deu oportunidade ao Irã para finalmente treinar muitos grupo iraquianos semelhantes ao Hezbollah e envolver-se mais pesadamente no Iraque.
Teerã acumula seus sucessos sob a casaca da política fracassada dos EUA no Oriente Médio, uma vitória depois de outra. Enquanto isso, os EUA reclamam da interferência no Irã no Levante e na Mesopotâmia e querem que os iranianos retirem-se. Os sucessos do Irã são sucessos de um país, de um sistema e de uma política, não são sucesso de um só homem.
No Iraque, Soleimani foi destratado, teve sua influência minada e chegou a ser, pode-se dizer, humilhado, durante o mandato do primeiro-ministro Haidar Abadi. O premiê não hesitou em criticar Soleimani abertamente, pela imprensa, acusando-o de reclamar para si vitórias contra o ISIS que não seriam suas. Abadi também rejeitou a versão de que o general iraniano teria orquestrado a bem-sucedida volta de Kirkuk ao controle pelo governo central em Bagdá.
A rixa entre os dois homens começou em 2014, quando Soleimani trabalhou muito – mas não conseguiu – emplacar outro candidato no posto de primeiro-ministro. Quem fez desandar os planos de Soleimani foi o Grande Aiatolá Sistani, que insistiu em pôr no cargo seus dois candidatos favoritos, Nuri al-Maliki e Ibrahim al-Jaafari. Sayyed Sistani sempre foi contra a interferência do Irã (e do Hezbollah) no Iraque: embora tenha-se reunido com Soleimani e com o representante do Hezbollah, jamais somou sua autoridade pessoal à autoridade do Estado iraniano, no Iraque.
Outro evento (dentre vários), do qual fui observador participante foi quando Soleimani convocou seu principal aliado no Iraque, Hadi al-Ameri (líder do grupo BADR, que combateu nas fileiras do IRGC, falante de farsi, respeitado por toda a liderança política e militar do Irã), para que se unisse ao primeiro-ministro Haidar Abadi numa coalizão para a eleição de um novo parlamento (presidente e primeiro-ministro). Al-Ameri e toda a coalizão al-Fateh (na qual se reúnem só aliados muito próximos do Irã), rejeitaram a convocação de Soleimani e, isso, apesar de Soleimani estar furioso e ter ameaçado muito.
Só quando o então primeiro-ministro Abadi tolamente se curvou às sanções unilaterais dos EUA contra o Irã, Teerã novamente cresceu em prestígio no país e conseguiu o apoio de muitos grupos, xiitas e não xiitas. Foi o fim da carreira de Abadi e fez Soleimani renascer como fênix, beneficiado pela posição firme do Iraque. De fato, o povo e os políticos iraquianos mantiveram-se com o Irã e contra as sanções dos EUA, não com Soleimani. Os iraquianos sofreram sanções cruéis impostas pelos EUA (comida em troca de petróleo), período em que morreram centenas de milhares de iraquianos. Por isso se recusaram a aceitar que o Irã, país vizinho, passasse pelos mesmos padecimentos, num momento em que a Mesopotâmia já não está sob a ditadura Saddam Hussein nem sob hegemonia dos EUA.
Na Síria, o Irã correu para barrar a mudança de regime. Sayyed Nasrallah, mais uma vez, visitou o Irã, para saber se tinha o consentimento religioso de Khamenei. Hezbollah e Irã combateram ombro a ombro. O Irã alocou um enorme orçamento para que o Hezbollah pudesse operar na Síria. E o Irã também investiu bilhões na Síria para pagar salários do Exército e de várias outras instituições e para fornecer petróleo ao governo sírio, fornecendo homens e armas. Nada disso foi decisão de um só homem, mas foi a própria República Islâmica de pé, ao lado de seu aliado sírio. O Irã com seus aliados triunfaram, e fracassaram os conspiradores das mudanças de regime. Agora, EUA e Israel pedem a imediata retirada de forças iranianas da Síria, ainda tentando ditar condições, como se EUA e Israel já não tivessem fracassado, fracasso o qual abriu a oportunidade para o Irã entrar no Levante, como entrou e lá está.
Seria erro, portanto, crer que um só homem, o general Soleimani, estaria por trás do sucesso do “Eixo da Resistência” no Líbano, no Iraque, na Síria, no Iêmen e na Palestina. O Ocidente inventou toda a fama de Soleimani, e a liderança iraniana aceitou jogar o jogo, e pôs Soleimani como figura de proa diante do secretário de Estado Pompeo e, até, do presidente Donald Trump.
É mensagem astuta e sutil que os persas enviam, um modo de dizer ao presidente mais poderoso do mundo e ao seu secretário de Estado que “aí está autoridade do nível de vocês, um comandante militar dentro do IRGC! Vocês não têm credenciais para falar diretamente aos nossos líderes políticos.”
Fato é que quando Trump rescindiu o acordo nuclear dos EUA com o Irã e outros países, o comando do IRGC, no mesmo momento, aconselhou o presidente Hassan Rohini: “Não responda. Esse sujeito (Donald Trump) não é decente, não passa de dono de boates. Não tem nível para discutir com o governo do Irã. Deixe, que nós aqui lidamos com ele.”*******
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