Putin, à Assembleia da Federação Russa

22/2/2019, Pepe Escobar, Asia Times

O discurso “O Estado da Nação” do Presidente Putin (vídeo e texto em ing., traduzido ao port. no Blog do Alok) à Assembleia da Federação Russa em Moscou essa semana foi evento extraordinário. Embora dedicado a questões do desenvolvimento social e econômico do país, Putin, como era de esperar, registou a decisão dos EUA de se retirarem do Tratado para Forças Nucleares de Alcance Intermédio (ing. INF) e demarcou claramente as linhas vermelhas relacionadas a consequências possíveis do movimento.

Seria ingenuidade crer que pudesse não haver contragolpe sério à possibilidade de os EUA instalarem lançadores de mísseis “que podem disparar mísseis Tomahawk” na Polônia e na Romênia, a apenas 12 minutos de voo de distância do território russo.

Putin foi direto ao ponto: “É gravíssima ameaça contra nós. Se acontecer assim, seremos forçados – repito, para salientar – seremos forçados a responder com ações espelhadas ou assimétricas.”

Mais tarde, muitas horas depois do discurso, Putin detalhou o que os EUA conceberam, apresentendo o movimento mais uma vez como ameaça.

“Há algum confronto ideológico duro, qualquer coisa semelhante ao que havia durante a Guerra Fria? Nada. Claro que há queixas dos dois lados, abordagens não harmônicas em algumas questões, mas nada que justifique escalar a ponto de nos devolver ao nível da crise no Caribe no início dos anos 1960s”.

Foi referência direta à crise dos mísseis em cuba, em 1962, quando o presidente Kennedy confrontou Nikita Khrushchev da URSS, por causa de mísseis instalados fora do território dos EUA.

O ministério da Defesa da Rússia, ao mesmo tempo, informou discretamente que as teleconferências com o Pentágono continuam conforme agendadas, semanalmente, e que esse diálogo bilateral está “funcionando”.

Paralelamente, os testes dos armamentos russos que são o estado-da-arte no setor, como o míssil intercontinental balístico Sarmat e i Khinzal hipersônico prosseguem, bem como a produção em massa do Avangard hipersônico. O primeiro regimento das Forças Russas de Mísseis Estratégicos receberá o Avangard antes do final de 2019.

E agora há também o Tsircon, míssil hipersônico capaz de alcançar centros de decisão dos EUA em meros cinco minutos – o que deixa expostos todos os ativos militares da OTAN.

O que Putin disse no discurso sobre a Rússia poder alcançar “centros de decisão” relaciona-se fundamentalmente à OTAN, não a território dos EUA.

Mais uma vez, é crucial destacar que nenhum desses desenvolvimentos perturbadores significa que a Rússia terá a iniciativa de ataque preventivo contra a instalação de mísseis dos EUA na Europa Oriental. Putin disse claramente que não é necessário. Além disso, a doutrina nuclear russa proíbe qualquer tipo de ataque preventivo, para nem falar de primeiro ataque nuclear.

Casa do Sol (Nuclear) Nascente

Para deixar assentar esse novo paradigma, dei uma longa caminhada pelo [distrito] Zamoskvorechye – “por trás do rio Moskva” – parando no caminho de volta diante da Biblioteka Lenina para prestar minhas homenagens ao Grão-mestre Dostoevsky. Foi quando me dei conta de que tudo se conectava com o que acontecera.

Um dia antes do discurso Estado da Nação de Putin, 2019, fui visitar Alexander Dugin no escritório dele, no prédio, deliciosamente soviético onde funcionou a Central dos Correiros. Dugin, analista e estrategista político, de refinada mente filosófica, é demonizado em Washington como o ideólogo de Putin. Também foi alvo de sanções dos norte-americanos.

Fui recebido no saguão por Daria, filha de Dugin, multitalentosa, ativa em tudo, de filosofia e música a geopolítica. Dugin estava sendo entrevistado pelo correspondente da RAI, Sergio Paini. Depois das saudações iniciais, os três imediatamente enveredamos numa discussão sobre populismo, Salvini, o político italiano, e os Coletes Amarelos na França, em italiano. (Dugin é fluente em várias línguas).

Depois retomamos o que havíamos deixado suspenso de quando estive em Moscou em dezembro passado e conversei longamente com Daria. Dugin estava dando um curso de relações internacionais em Xangai, na Universidade Fudan (ver aqui e aqui), e conferências em Tsinghua e na Universidade de Peking. Voltou impressionado pelo interesse da academia chinesa nas questões do populismo, plus o filósofo alemão Martin Heidegger e os Coletes Amarelos, e pelas trilhas em evolução da parceria estratégica de Rússia e China.

Debate eurasiano

Assim caímos inevitavelmente no eurasianismo – e estratégias para a integração da Eurásia. Dugin vê a China aplicando uma espécie de visão Spykman remixada à parte “Estrada” da Iniciativa Cinturão e Estrada, que é marítima, ao longo da costa continental. Ele privilegia o componente “Cinturão”, que é terrestre, com um dos principais corredores que atravessa a Rússia pela ferrovia Trans-Siberiana atualizada. Eu tendo a ver tudo isso como um mix de Halford Mackinder, o famoso professor inglês, e o influente cientista político norte-americano Nicholas Spykman: a China avançando sobre o Ocidente, simultaneamente pelo continente e pelos litorais.

O escritório de Dugin tem atmosfera de think-tank em movimento. Eu tentava informá-lo de como o Brasil – sob a ‘liderança’ de Steve Bannon, que anda e fala como quem manda no clã presidencial dos Bolsonaros – acabou por se deixar arrastar para a linha de frente nos EUA, em contraste com o tabuleiro de xadrez da integração Eurasiana. De repente, aparece lá ninguém menos que Alastair Crooke. Acaso ou necessidade?

Alastair, com sua irretocável elegância diplomática, é, claro, um dos mais importantes especialistas mundiais em Oriente Médio e Europa – e muito mais. Está em Moscou como convidado às afamadas discussões do Clube Valdai, sobre Oriente Médio, com outras figuras chaves da Síria e Irã.

Logo mergulhamos em conversa absorvente sobre a alma do Islã, a pureza do sufismo, a Fraternidade Muçulmana (aqueles famosíssimos amigos da máquina Clinton), sobre o que realmente deseja o presidente Erdogan e os qataris, e sobre a esterilidade – intelectual e espiritual – da Casa Wahhabista de Saud e Emirados.

Tendemos a concordar em que discussões desse tipo, em andamento em Moscou – e em Teerã, Istanbul, Xangai – muito se beneficiariam da presença de um Steve Bannon progressivo, capaz de organizar e promover debate ativo, não ideológico sobre multipolaridade.

Um dia antes da incisiva fala de Putin, para lembrar o mundo do risco de escorregar para um Armagedon nuclear, também discutimos o mundo pós-tratado INF, mas com ênfase na integração da Eurásia pós-Mackinder (e pós-Brzezinski). E isso inclui elites russas e chinesas agudamente conscientes de que não podem deixar-se isolar pela hiperpotência norte-americana.

Andei com Alastair de volta até o hotel dele, passando por um Bolshoi gloriosamente iluminado. Segui adiante, e quando [a praça] Lubyanka sumiu de vista, um músico de rua cantava “Casa do Sol Nascente”, versão dos Animals. Em russo.

Tomara que não seja um sol nuclear nascente.*******

 

 

 

 

 

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