PT/BR — Mike Whitney — Putin promete pôr cabresto nos capitais e preservar a soberania nacional

Sobre o “Discurso à Assembleia Nacional, 2020”  
Putin promete pôr cabresto nos capitais e preservar a soberania nacional 
24/1/2020, Mike Whitney, Unz ReviewTradução: AMIGOS DO BRASIL
Ver também
15/1/2020, Vladimir Putin, Discurso à Assembleia Nacional “O Estado da Nação”
Moscou, no Centro Manezh de Exposições
(vídeo e transcrição do Kremlin, traduzido ao ing., versão ali retraduzida,
excerto da parte final: As propostas), em Blog Bacurau Homenagem ao Filme

Vídeo do discurso, 1h12min., íntegra, ru. c/legendas em ing., aqui
Elites ocidentais e respectivos lacaios na ‘mídia’ [nome genérico para esconder todas as Empresas de Comunicação Comercial de Massas [ECoCô (NTs)] desprezam o presidente Vladimir Putin da Rússia, e escrevem precisamente isso, todos os dias. Os motivos para tanto são muito claros. Putin conteve e forçou a retroceder todas as ambições dos EUA na Síria e na Ucrânia; alinhou-se com o maior rival estratégico de Washington na Ásia – a China – e atualmente reforça seus laços econômicos com a Europa, o que gera ameaça de longo prazo contra a dominação, pelos EUA, na Ásia Central.

Putin também modernizou o arsenal nuclear da Rússia, o que torna impossível, para Washington, empregar as mesmas táticas de bullying ginasiano que usou contra outros países, mais vulneráveis que a Rússia.

Assim sendo, é compreensível que as empresas ECoCô de ‘mídia’ tanto façam   para demonizar Putin e pintá-lo “bandido sanguinário da KGB, matador a sangue frio”. Bobagem, claro, mas encaixa perfeitamente na narrativa forjada segundo a qual Putin estaria conduzindo, como maníaco, uma guerra clandestina contra os EUA, movido exclusivamente por seus instintos vis. Em qualquer tipo de evento, a russofobia construída e implantada pela ‘mídia’ já é tão extrema, que jornalista algum consegue cobrir mesmo os eventos mais corriqueiros, sem contribuir para a narrativa fantasiosa.

Considerem, por exemplo, a cobertura que o New York Times divulgou, do recente “Discurso à Assembleia Nacional, 2020”, de Putin, do dia 15 de janeiro. O ‘noticiário’ do Times, mais sinuoso, impossível, mostra que os jornalistas, ali, não têm sequer vestígio de interesse em informar sobre o que Putin realmente disse; que seu único interesse é ‘noticiar’, servindo-se de todas as sinuosidades ao seu alcance, que Putin não passaria de tirano calculista movido por insaciável volúpia de poder. Por exemplo, esse excerto da matéria do Times:
“Ninguém sabe o que se passa nesse momento dentro do Kremlin. E aí está, talvez, o mais grave. O presidente Vladimir V. Putin anunciou mudanças constitucionais semana passada, que podem abrir novas avenidas para que ele próprio continue a governar a Rússia pelo resto de sua vida (…) [ERRADO]

Análise das letras miúdas dos textos de lei mostraram que os poderes do primeiro-ministro não serão expandidos tanto quanto anunciado anteriormente; e que membros do Conselho de Estado continuarão a atuar para servir aos desejos do presidente. Assim sendo, será q o plano do Sr.Putin é permanecer presidente para sempre? [ERRADO também]

Um jornalista, Yury Saprykin, manifestou sentimento semelhante por Facebook, mas em verso:
We’ll be debating over how he [Putin] won’t leave,
We’ll be guessing, will he leave or won’t he.
And then — lo! — he won’t be leaving.
Quer dizer, não sairá antes das eleições,
E depois delas… aí é que não sairá mesmo!”
 [ERRADO, pela terceira vez]

(“Big Changes? Or Maybe Not. Putin’s Plans Keep Russia Guessing”New York Times)
Em termos de análise, difícil encontrar pior que isso. Sim, “Putin anunciou mudanças constitucionais semana passada”, mas o projeto nada tem a ver com algum plano sinistro para permanecer no poder, e quem leia o discurso logo verá. Infelizmente, a maioria dos mais de 100 artigos não passam de corta-e-cola dessas absurdas conclusões do Times, isso é, que as mudanças que Putin anunciou no discurso apenas esconderiam uma única intenção: ampliar o mais possível o tempo legalmente permitido para sua permanência na presidência. Mais uma vez, nada há no discurso real que confirme essa ‘conclusão’. O jornalismo, aí, visa exclusivamente a comprometer a imagem pública de Putin.

Vejamos então o que Putin realmente disse no discurso de 2020 à Assembleia Federal da Rússia?

Ora… É precisamente aí que a coisa fica interessante.

Putin anunciou mudanças na rede de seguridade social, maior assistência financeira a famílias jovens, melhorias no sistema público de assistência à saúde, aumentos nos salários de professores, mais verbas para educação, hospitais, escolas, bibliotecas.

Putin prometeu criar um sistema de “contratos sociais” pelos quais o Estado compromete-se a reduzir a pobreza e a elevar o padrão de vida das populações.

Putin prometeu garantir alimentação suficiente e saudável a alunos, juros reduzidos para a compra do primeiro imóvel, maior apoio econômico às famílias trabalhadoras, aumentos nas aposentadorias e pensões, aumentos no salário-mínimo, financiamento adicional para uma “rede de centros extracurriculares para formação em engenharia e tecnologia”. E Putin ainda acrescentou essa bela, solene passagem:
“É muito importante que as crianças pequenas, da pré-escola e da escola primária adotem os verdadeiros valores de uma grande família – que família é amor, felicidade, a alegria da maternidade e da paternidade, que família é laço forte que mantém unidas várias gerações, unidas pelo respeito aos mais velhos e pelo cuidado com as crianças, dando a cada um sentimento de confiança, segurança e capacidade para confiar no próximo. Se as jovens gerações são educadas para aceitar essa situação como natural para a vida adulta, como parte moral de um contexto confiável onde o ser humano pode viver, então nossos jovens e adultos conseguirão responder ao desafio histórico de manter o desenvolvimento da Rússia como país grande e bem-sucedido.”
Claro que esse tipo de declaração política que traz à tona sentimentos pessoais e nacionais profundos jamais aparecem nas páginas do Times nem de outros veículos da ‘mídia’ ECoCô, vale anotar, em todo o ocidente. E os norte-americanos são afogados num dilúvio de sempre a mesma, incansável, demonização de Putin, apresentado como psicopata obcecado, em imagem que a ‘mídia ECoCô, veículos e agências de ‘notícias’, existe para reproduzir ao infinito. A torrente de mentiras, calúnias, maquinações contra Putin são tão constantes, que só resta concluir, isso, sim, com perfeita certeza, que nada do que se publique nos veículos das empresas da ‘mídia’ ECoCô sobre o presidente Putin é verdade. Que absolutamente não se pode confiar nesse ‘jornalismo’. Quanto a isso, aí, sim, não pode haver dúvidas.

Isso posto, Putin é um ser político, o que implica que talvez não entregue tudo que prometa. Claro que essa possibilidade é real. Mas nesse caso, por que seu ex-primeiro-ministro Dmitry Medvedev, renunciou imediatamente depois do discurso?* Medvedev e todo seu gabinete renunciaram porque se deram conta de que Putin abandonou o modelo ocidental de capitalismo e dirige-se agora para outro objetivo completamente diferente. Putin está focado em reforçar os programas do estado de bem-estar que tiram o povo da miséria e reduzem o fosso da desigualdade. E quer equipe nova para ajudá-lo a implementar o novo projeto. Por isso Medvedev e sua equipe receberam bilhete azul. Aqui, o modo como The Saker resumiu o processo em recente artigo para Unz Review:
“O novo governo claramente indica que, especialmente com a nomeação do primeiro-ministro Mishustin e seu primeiro vice-primeiro-ministro Andrey Belousov: ambos são conhecidos defensores do que se conhece como “capitalismo de Estado” na Rússia: refere-se a uma filosofia econômica segundo a qual o Estado não promove o empreendedorismo privado, mas o empreendedorismo no qual o Estado está direta e fortemente envolvido, para criar condições econômicas para o crescimento do setor privado e também para o crescimento econômico do Estado. O mais importante é que o “capitalismo de Estado” também subordina o único objetivo de todo o mundo empresarial (gerar lucro) aos interesses do Estado e, portanto, aos interesses do povo. Em outras palavras, adeus turbo-capitalismo à moda dos Integracionistas Atlanticistas!”** (“The New Russian Government”, The Saker)
Isso, precisamente, é o que se passa agora na Rússia. Putin está rompendo com o modelo parasitário de capitalismo à moda Washington, substituindo por uma versão menos maligna e que menos dano causa à sobrevivência dos mais pobres. Essa nova versão de ‘capitalismo gerenciado’ põe funcionários eleitos à frente do sistema, para proteger o interesse público contra as forças do mercado e contra qualquer ‘austeridade’ perene e mortal. É sistema que visa a ajudar o povo comum, não Wall Street nem a Máfia global dos bancos.

Mas, por mais importantes que sejam as mudanças que Putin está introduzindo no modelo econômico russo, o que mais chama a atenção são as mudanças políticas. Eis o que Putin disse:“Exigências do Direito Internacional e de tratados internacionais, assim como decisões dos organismos internacionais, só podem ser válidos no território russo na medida em que não restrinjam direitos e liberdades do nosso povo e cidadãos e não contradigam a nossa Constituição.”
O que significa isso? Significaria que Putin não respeitará a Lei Internacional ou tratados internacionais assinados com países vizinhos? Não, nada disso. Putin, de fato tem sido propositor e defensor entusiasta da Lei Internacional e do Conselho de Segurança da ONU. Crê firmemente que essas instituições desempenham papel crucial na preservação da segurança global, questão muito relevante, para Putin. O que o presidente russo parece estar dizendo é que os direitos do povo russo e do governo soberano da Rússia precedem e predominam acima de empresas estrangeiras, tratados ou acordos de livre comércio. A Rússia não permitirá que poderosas e traiçoeiras empresas multinacionais globalistas assumam o controle das alavancas políticas e econômicas que comandam o poder do Estado – como aquelas empresas fizeram e fazem em muitos países pelo mundo. Adiante, Putin esclarece ainda mais esse ponto, ao dizer:
“(…) a Rússia só pode ser e continuar a ser a Rússia, mantendo-se Estado soberano. A soberania de nossa nação deve ser incondicional. Fizemos muito para alcançar a soberania que temos. Restabelecemos a unidade do nosso Estado. Superamos a situação, até quando certos poderes de governo foram essencialmente usurpados por clãs oligarcas. A Rússia voltou à política internacional como país cuja opinião não pode ser ignorada.

Criamos reservas poderosas, que multiplicam a estabilidade e a capacidade do nosso país para proteger os direitos sociais dos seus cidadãos e a economia nacional, contra de quaisquer tentativas de pressão estrangeira”.

Para Putin, a soberania, que é o supremo poder de um Estado para se governar ele mesmo, é o princípio basilar que legitima o Estado, desde que o Estado represente fielmente o desejo do povo. Adiante, no mesmo discurso, Putin elabora sobre esse ponto:
“A opinião do povo, nossos cidadãos, como portadores da soberania nacional e principal fonte do poder, tem de ser decisiva. Em última análise, tudo é decidido pelo povo, hoje e no futuro.”
Assim, por mais que haja diferenças significativas entre a democracia russa e a democracia norte-americana, o princípio básico é sempre o mesmo, a responsabilidade primeira e essencial do governo é fazer cumprir a “vontade do povo”. Quanto a isso, a filosofia política de Putin não é muito diferente da que inspirou os primeiros autores da Constituição dos EUA.

De diferente, contudo, é o modo como Putin aborda o livre comércio. Diferente dos EUA, Putin não crê que o livre comércio reduziria a autoridade do Estado. A maioria dos norte-americanos sequer percebe que acordos comerciais como o Acordo de Livre Comércio do Atlântico Norte (ing. NAFTA) frequentemente incluem dispositivos que impedem um ou outro governo de agir de modo a defender com máxima eficácia os interesses do próprio povo. Leis que favorecem o comércio globalista impedem que governos garantam incentivos a empresas, de modo a conter a deslocalização e a ‘exportação’ dos postos de trabalho, além de atropelar regulações ambientais e leis de segurança alimentar. Alguns desses acordos até protegem proprietários de oficinas clandestinas e praticantes de outros tipos de abusos contra direitos humanos, tornando-os imunes a qualquer processo ou penalidade.

Por que alguém se surpreenderia por Putin não querer participar desse tipo de crime? Todos devem saber por que Putin sente-se impelido a afirmar com plena clareza, que a Rússia só se sente obrigada a apoiar leis e tratados que “não agridam nem restrinjam os direitos e liberdades de nosso povo e de nossos cidadãos e não contradigam nossa Constituição”? Mas Putin volta ao assunto:
“Por favor, não esqueçam o que aconteceu ao nosso país depois de 1991. Depois do colapso da União Soviética (…), havia também tratados, riscos e perigos de tal magnitude que, antes, ninguém jamais sequer imaginara. (…) Por tudo isso (…) temos de criar um sistema sólido, confiável e invulnerável que será absolutamente estável em termos do contorno exterior e garantirá com plena segurança a independência e a soberania da Rússia.”
E o que aconteceu depois da dissolução da União Soviética?

Os EUA despacharam para Moscou uma milícia de economistas degoladores para ajudar na campanha da “terapia de choque” que fez colapsar a rede de seguridade social, saqueou pensões e aposentadorias, aprofundou o desemprego, aumentou muito o número de famílias sem-teto, a miséria e o alcoolismo, acelerou o deslizamento rumo a privatizações que alimentaram uma geração de oligarcas vorazes, e lançou a economia real rumo ao poço fundo de terrível depressão de longo prazo.

O economista Joseph Stiglitz acompanhou de perto eventos na Rússia ao tempo, e assim resumiu o que viu:
“Na Rússia, o povo foi ‘informado’ de que o capitalismo traria nova prosperidade, como jamais antes. Na verdade, trouxe miséria sem precedentes, só levou a forte queda nos padrões de vida, que se constatou não só na queda vertiginosa no PIB, mas também na expectativa de vida e incontáveis outros indicadores sociais que mostraram grave deterioração na qualidade de vida (…).

O número de pessoas vivendo na pobreza na Rússia, por exemplo, passou de cerca de 2% para algo entre 40 e 50%, com mais de 1 criança, de cada duas, vivendo em famílias abaixo da linha da pobreza. A economia de mercado foi inimigo pior, muito mais cruel contra essas pessoas, do que o pior que os comunistas previram que seria. (…) Em algumas partes da ex-União Soviética, o PIB, a renda nacional caiu mais de 70% (…). E dado que esse bolo muito menor foi cada vez mais desigualmente distribuído, número mínimo de pessoas puseram as mãos em fatias muito, muito gordas, e a maioria da população viu-se com menos, e menos, e menos, a cada dia (…) (PBS entrevista com Joseph Stiglitz, Commanding Heights)
Ao mesmo tempo, enquanto os agentes de Washington trabalhavam com cada vez mais empenho, dia a dia, em Moscou, a OTAN empurrava tropas, divisões de blindados e silos de mísseis para cada vez mais perto da fronteira da Rússia, em clara violação das promessas feitas a Mikhail Gorbachev, de que não moveriam forças militares “nem uma polegada” em direção leste. Atualmente, há mais tropas e armamento de combate sobre o flanco ocidental da Rússia do que jamais antes, desde que os alemães deslocaram-se para a operação Barbarossa, em junho de 1941. Naturalmente, a Rússia sentiu-se ameaçada com força tão flagrantemente hostil ali, nas suas fronteiras. (Por falar nisso, essa semana “Os EUA realizam seu maior deslocamento, mais fortemente provocativo, em direção à Europa, desde a Guerra Fria. Segundo o Website US Military in Europe: “O exercício DEFENDER-Europe 20 consiste no deslocamento de uma força crível de combate, com dimensões de divisão, dos EUA até a Europa (…) O Pentágono e aliados na OTAN não se cansam de simular e treinar movimentos de guerra total contra a Rússia, para impedir que a Rússia reforce seus laços econômicos com a Europa.) Aqui, mais de Putin:
“Estou convencido de que é hora de discutirmos seriamente, diretamente, os princípios básicos de uma ordem mundial estável, e os problemas mais agudos que a humanidade enfrenta hoje. É necessário mostrar vontade, sabedoria e coragem políticas. O tempo exige consciência clara de nossa responsabilidade partilhada e ações reais.”
É tema ao qual Putin tem voltado várias vezes, desde o importantíssimo discurso em Munique, em 2007, onde disse:
“Vemos desdém cada dia maior contra os princípios básicos da lei internacional. E normas legais independentes são cada vez mais próximas do sistema legal de um único Estado. Um Estado e, claro, primeiro e mais que todos os demais, os EUA, já ultrapassaram as próprias fronteiras nacionais em todas as direções. É processo visível nas políticas e procedimentos econômicos, da política, da cultura e educacionais que os EUA impõem a outras nações. Ora… quem gosta disso? Quem vive feliz com isso?” (“Wars not diminishing”: Putin’s iconic 2007 Munich speech, you tube)
A objeção de Putin dirige-se contra os EUA sempre agirem unilateralmente, escolham o que escolherem. Foi o desdém fátuo, vaidoso, de Washington, contra tudo que a lei internacional determina, que desestabilizou todo o Oriente Médio e a Ásia Central e pôs líderes mundiais sob perene ameaça, sem jamais poder prever onde eclodiria nova crise, nem como atingiria muitos milhões de pessoas. Como Putin disse em Munique, “Ninguém se sente seguro”. Ninguém sente que possa apostas na proteção pela lei internacional ou pelo Conselho de Segurança da ONU.

Disse Putin:
“Basta considerar a situação no Oriente Médio e Norte da África (…) Em vez de reformas, a intervenção agressiva destruiu instituições do governo e o modo de vida local. Em vez de democracia e progresso, o que há hoje é violência, pobreza, desastres sociais e total desconsideração dos direitos humanos, incluindo, até, o direito à vida.

O vácuo de poder em alguns países no Oriente Médio e Norte da África resultou obviamente na emergência de áreas de anarquia, que foram rapidamente preenchidas com extremistas e terroristas. O chamado “Estado Islâmico” tem dezenas de milhares de militantes que combatem em nome dele, incluídos aí ex-soldados iraquianos que foram deixados sem qualquer amparo depois da invasão de 2003. Muitos recrutas vêm da Líbia, cujo Estado foi destruído por efeito de grave violação da Resolução n. 1.973, do Conselho de Segurança da ONU (…).”

Estaria Putin, talvez, exagerando o papel de Washington na destruição de Iraque, Líbia, Síria e Afeganistão, ou tem-se aí avaliação correta do papel pernicioso, daninho, de desestabilização naquela região? Civilizações inteiras foram dizimadas, milhões foram mortos ou arrancados das próprias casas e tornados errantes na região, para que se alcançasse alguma nebulosa vantagem estratégica ou para ajudar Israel a eliminar seus supostos inimigos.   E todo esse aventureirismo militar começou imediatamente depois da dissolução da União Soviética e da resposta triunfalista dos negociadores norte-americanos, que viram o colapso da Rússia como se fosse luz verde para sua tal “Nova Ordem Mundial”.

Washington festejou a vitória e abraçou sua capacidade para dominar o processo global de tomada de decisões, e para intervir onde bem entendesse. A nação indispensável já nem precisava dar-se o trabalho de considerar formalidades como o Conselho de Segurança da ONU ou a Lei Internacional. Até a ideia de soberania foi descartada como noção antiquada, sem lugar no novo império da empresa comercial sem fronteiras. A única coisa que realmente interessava era disseminar o capitalismo de estilo ocidental para os quatro cantos da Terra, especialmente para aquelas áreas onde havia recursos vitais (Oriente Médio) ou crescimento explosivo potencial (Eurásia). Essas regiões foram o verdadeiro troféu.

Mas então aconteceu algo de inesperado. As repetidas guerras de Washington continuaram ad infinitum ao mesmo tempo em que gradualmente emergiram novos centros de poder. De repente, a utopia globalista já não estava ao alcance da mão, e o Século Norte-americano já acabara, antes mesmo de começar.

Enquanto isso, Rússia e China iam-se tornando cada vez mais poderosas. Exigiram o fim do unilateralismo e uma volta ao Estado legal, sob a lei internacional, mas suas exigências foram completamente descartadas. Guerras e intervenções prosseguiram, mesmo enquanto as possibilidades de vitória iam-se tornando cada dia mais ralas e mais distantes. Outra vez, palavras de Putin:
“Não temos dúvidas de que a soberania é a noção central de todo o sistema de relações internacionais. Respeito à soberania e a sua consolidação ajudará a reforçar a paz e a estabilidade, tanto no nível nacional como no nível internacional (…) Primeiro de tudo, deve haver segurança igual e indivisível para todos os Estados.” (Reunião do Clube de Discussão Valdai Internacional, The Future in Progress: Shaping the World of Tomorrow, do Gabinete da Presidência da Rússia).
De fato, soberania é o princípio fundacional sobre o qual se ergue a segurança global, e, mesmo assim, a soberania é o princípio que mais as elites ocidentais querem ver esvaziado. Poderosas empresas multinacionais querem apagar todas as fronteiras, para facilitar um fluxo desimpedido, sem qualquer tarifa, de bens e pessoas, numa só zona gigante de livre comércio, que cubra todo o planeta. E enquanto esses planos vão sendo desencaminhados por Putin na Síria e na Ucrânia, aquelas empresas arrancam lucros na África, na América do Sul e no Sudeste da Ásia. Esse vírus não pode ser contido: tem de ser erradicado. Outra vez, Putin:
“Essencialmente, todo o projeto da globalização está em crise hoje na Europa, como sabemos muito bem, mas ouvem-se vozes que dizem que o multiculturalismo fracassou. Acho que essa situação é, em muitos sentidos, resultado de escolhas erradas, apressadas, e em alguma medida excessivamente confiantes, feitas por elites de alguns países, há um quarto de século. Naquele momento, no final dos anos 1980s, inícios dos anos 1990s, havia uma chance de não só acelerar o processo de globalização, mas de também dar a ele uma outra qualidade, melhor, torná-lo mais harmonioso e mais sustentável para a natureza.

Mas alguns países, que se viam eles mesmos como vitoriosos na Guerra Fria – e   não só se viam assim, como também o alardeavam abertamente -, adotaram a via de simplesmente reformatar a ordem política e econômica global, para que se adequasse melhor aos seus próprios interesses.

Naquela euforia, aqueles países essencialmente abandonaram qualquer diálogo substantivo e igual com outros atores na vida internacional; escolheram não melhorar nem criar instituições universais; em vez disso tentaram meter todo o mundo sob o jugo de suas próprias organizações, normas e regras. Escolheram a trilha da globalização e segurança só para eles próprios bem-amados deles mesmos, para os poucos seletos, não para todos.” (Reunião do Clube de Discussão Valdai Internacional)

Como diz Putin, houve momento para “tornar a globalização mais harmoniosa e sustentável” (talvez a Iniciativa Cinturão e Estrada, da China, venha a fazer precisamente isso), mas as elites em Washington rejeitaram essa ideia e escolheram, em vez dela, impor ao mundo a própria autovisão autoexaltada. Resultado disso, manifestações e tumultos repetiram por toda a Europa, partidos populistas de direita estão em ascensão, e a maioria da população já não confia nas instituições democráticas básicas. A versão ocidental da globalização foi completamente rejeitada como peste que faz chover riquezas sobre bilionários gângsteres, ao mesmo tempo em que deixa ao relento o povo trabalhador. Mais Putin:
“Parece que as elites não veem a estratificação que se aprofunda na sociedade e a erosão da classe média (…) [mas a situação] cria um clima de incerteza que tem impacto direto sobre a opinião pública.

Estudos de sociologia, em todo o mundo, mostram que pessoas em diferentes países e diferentes continentes tendem a ver o futuro cada vez mais sombrio e fechado. É triste. O futuro não os estimula, só os assusta. Ao mesmo tempo, as pessoas não veem oportunidades reais ou meios reais para mudar coisa alguma, influenciar os eventos e modelar políticas.” (Reunião do Clube de Discussão Valdai Internacional)

É verdade, a vida é muito mais dura hoje e parece mais dura a cada momento. Mas que remédio Putin recomenda? Será que tem algum remédio? Será que tem meios para conter e reverter os efeitos da globalização? Será que pensa em sabotar o plano de Washington – de controlar recursos vitais no Oriente Médio, de modo a tornar-se o principal player na Ásia Central, firmando ainda mais as garras sobre o poder global?

Não. Putin nem se aproxima de toda essa ambição. O que faz nesse discurso é   indicar que seu objetivo imediato é reformar a economia, de modo a que a pobreza seja eliminada e a riqueza seja distribuída mais igualitariamente. São remédios práticos para ajudar a domar o capitalismo e reduzir a probabilidade de agitação social. Quer também abortar as principais ameaças   potenciais contra o Estado, cuidando, para tanto, de blindar a soberania do Estado russo.

Por isso está propondo emendas à Constituição. Seu objetivo é proteger a Rússia contra agentes estrangeiros perniciosos e os “quinta coluna” que operam dentro do Estado russo. Em resumo: Putin vê o que se passa no mundo e traçou uma rota que atende melhor aos interesses do povo russo.

Seria grande sorte para os norte-americanos ter um presidente que fizesse o mesmo.*******Notas dos tradutores:
*
 Quanto a isso, vale registrar que TOOOOOOOOOOOOODOS os veículos de TODA a ‘mídia’   das ECoCôs no Brasil – como se comprova por qualquer rápida pesquisa em Google, mas não perdemos tempo com isso: quem quiser ‘provas’, que pesquise –, ‘concluiu’ que o primeiro-ministro e todo o gabinete russos renunciaram ‘porque’ Putin, essa espécie de neoStálin sanguinário, está(ria) decidido a “perpetuar-se” no poder. Dá vergonha, até, ter de anotar aqui essa nota [NTs].** Sobre “Integracionistas Atlanticistas”, grupo de Medvedev, que quer integrar a Rússia ao grupo do Atlântico Norte, ver Redecastorphoto, Primeira Parte e Segunda Parte [NTs].

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