Lady Bharani pergunta a Quantum Bird – A presumível sabotagem dos gasodutos Nord Stream 1 e 2

Lady Bhārani – 27 de setembro de 2022

  Três linhas offshore do sistema de gasoduto Nord Stream sofreram danos "sem precedentes" em um dia, disse a Nord Stream AG, operadora da rede, na terça-feira, 27/09/22, no que um funcionário alemão sugeriu ser um "ataque direcionado". 
  
  A empresa disse ainda que é impossível estimar quando a capacidade de funcionamento do sistema de rede de gás será restabelecida.


Pergunta 1: A Europa, que já enfrenta uma crise energética de larga escala, recebeu um golpe adicional mutilador com a possível sabotagem dos gasodutos da rede Nord Stream. Se antes ainda existia, mesmo que ínfima, a possibilidade de um acordo da UE com a Rússia a respeito do envio de gás russo, essa alternativa agora não existe mais. E as repercussões desse fato são demasiadamente preocupantes.

Quem e Cui bonoquais são os principais atores envolvidos e quem mais se beneficiaria geopoliticamente mediante esse novo cenário?

Resposta: Indo diretamente ao ponto, o principal beneficiário da incapacitação física do NS1 / NS2 são os EUA, que sempre se opuseram ferozmente à construção desses gasodutos. E isso em diversos níveis. No plano econômico, os EUA esperam vender seu gás de xisto à Europa. Mas isso não seria possível sem eliminar a concorrência do gás russo, que é bem mais barato e confiável, além de ser de qualidade superior ao produto ianque.

No plano geopolítico, desde sua reunificação – que eu chamo de anexação da Alemanha Oriental, mas isso é para outra conversa – a Alemanha vem buscando retomar sua soberania. A colaboração na área de energia com Moscou ocorria desde os tempos da antiga União Soviética. Boa parte dos gasodutos que atravessam o território dos países do leste europeu, mais notoriamente a antiga Ucrânia, foram construídos ainda durante a era da URSS. Essa cooperação continuou e se intensificou depois da dissolução da União Soviética, e, de certo modo, culminou com a construção, na primeira década de 2000 (entrou em operação em 2011) do NS1, e, posteriormente, com a construção do NS2.

Localização da rede Nord Stream: NS1 e NS2.

Devemos entender que um dos pilares do renascimento e florescimento econômico alemão era a energia barata vinda da Rússia, além, é claro, da absorção de mão de obra barata e super qualificada dos países do Pacto de Varsóvia, depois da derrocada da URSS. Esse arranjo permitiu à Alemanha tornar-se, em relativamente pouco tempo, a economia dominante na Europa e uma potência rival emergente dos EUA.

Ao fomentar o litígio geopolítico entre a Rússia e Alemanha – nazificando e destruindo a Ucrânia –, sancionar e finalmente destruir os gasodutos NS1 e NS2, os EUA reafirmam o status da Alemanha como sua colônia e abortam, talvez permanentemente, qualquer perspectiva de uma economia soberana naquele país. Sem energia e as matérias-primas subprodutos do processamento de gás, sem a possibilidade de recorrer à Rússia e Bielorrússia para consegui-las, a Alemanha de fato se torna, para todos os efeitos práticos, uma sub colônia de 5ª categoria dos EUA. Os efeitos a curto prazo dessas maquinações são estagnação econômica, inflação e recessão, com empobrecimento rápido e acentuado da população, que deve gerar um bom nível de instabilidade política na Alemanha.

Pergunta 2: Sabemos que os EUA enfrentam uma complexa crise econômica, ostentando uma profunda inflação estrutural, emissão desenfreada de dinheiro e desvalorização do dólar, para mencionar apenas alguns dos pontos. Além disso, o dólar recentemente deixou de ser a única moeda de troca internacional e abriu-se caminho para o fortalecido rublo, yuan e outras moedas. Dentro desse cenário doméstico e internacional, os EUA vêm impondo sanções à Rússia e a outras nações na esperança de se protegerem financeiramente e assegurarem mercados.

Tendo isso em mente, retornemos à Europa, voltada de costas para a Rússia, seu principal provedor de energia barata, e cegamente manipulada pelos interesses norte-americanos. Muitos analistas, como o Andrei Martyanov, por exemplo, já foram sagazes o suficiente para constatar que os EUA estão empurrando a Europa para o abatedouro na tentativa de estenderem sua própria caótica sobrevida.

Como podemos entender a sabotagem da rede Nord Stream dentro de toda essa arquitetura geopolítica?

Como disse anteriormente. A sabotagem dos gasodutos interessa aos EUA mais do que a qualquer um, e, seguramente, não interessa à Rússia, que fazia um bom dinheiro com ele.

Localização dos vazamentos em amarelo, ocorridos próximo à ilha de Bornholm, na Dinamarca.

A incapacitação dos gasodutos por prazo indeterminado, somada às sanções econômicas contra a Rússia, em vigor e recrudescendo, tornam a Europa virtualmente uma zona de comércio exclusiva dos EUA, um arranjo parecido com a relação do defunto Império britânico com suas colônias. Os custos de energia e o acesso limitado a matérias-primas, tornará a manufatura europeia anti-econômica e não competitiva, o que já está levando a uma desindustrialização acelerada. Existem muitas notícias sobre indústrias pesadas, e até mesmo pequenos negócios, falindo ou simplesmente migrando para os EUA.

O quadro geral é basicamente o seguinte: os EUA perderam hegemonia no resto do mundo, mas não vão ceder as colônias europeias à multipolaridade (o que você citou sobre os arranjos ganha-ganha que estão ganhando impulso em todo Sul Global). Todo o arranjo anterior da globalização via uma “ordem internacional baseada em regras” formuladas pelos EUA está sendo desfeito ou rejeitado, com consequências geopolíticas dramáticas e o lugar da Europa – você citou Martyanov – é ser o almoço dos EUA. Simples assim.

Pergunta 3: Cada vez fica mais claro que conflitos mundiais já foram desencadeados por razões menores do que as que temos vivenciado recentemente. A iminência de uma Terceira Guerra Mundial é algo que se torna mais palpável e preocupante com o transcorrer dos meses e o agravamento das tensões. Na sua opinião, quais podem ser as consequências principais dessa sabotagem da rede dos gasodutos?

Em outras palavras, o que houve, na realidade, como vários analistas já estão apontando, foi uma declaração de guerra dos EUA em direção à Europa e à Rússia. Você concorda com essa afirmação?


Eu acho que a afirmação está em parte correta. Pessoalmente, acredito que a sabotagem dos gasodutos seja uma declaração de guerra dos EUA contra a Alemanha. Em outras palavras, o casus belli é claríssimo e a reação lógica alemã deveria ser responder proporcionalmente aos EUA. Isso não vai acontecer, porque o governo em Berlim carece de qualquer nível de autonomia. E não estou falando desse governo especificamente, qualquer um que ocupe o gabinete. A Alemanha saiu da segunda guerra como um país de soberania fortemente limitada, com um regime pseudo-democrático estritamente controlado pelos EUA. Esse regime foi posteriormente estendido à Alemanha Oriental, após a derrubada do Muro de Berlim. Então, não devemos esperar qualquer reação da Alemanha.

Por outro lado, a mensagem dos EUA para o resto do mundo foi clara: a Alemanha é exclusivamente para eles usarem. Lateralmente, devemos esperar o aumento da pressão sobre a Turquia, onde opera o Turk-stream. É possível que um cenário de sabotagem também se desenvolva por lá. Vamos ver.

Sobre as tensões internacionais, bem estou convencido de que estes são os atos iniciais de um conflito generalizado internacional. Alguns chamam de Terceira Guerra Mundial, eu não usaria essa terminologia, mas seguramente envolveria todos os maiores atores do Sul Global contra os EUA e a Grã-Bretanha, com a Europa, e principalmente a Alemanha sendo usada como bucha de canhão contra os russos, por exemplo. Se quisermos uma imagem do que aconteceu hoje, podemos imaginar a Alemanha como aquele pobre coitado, forçado a caminhar na prancha pelos piratas armados com espadas, para suicidar-se atirando-se aos tubarões. Espero que a população alemã compreenda isso e reaja, mas sou muito cético sobre isso.

É importante observar também os desenvolvimentos dentro da Europa. No momento temos a desintegração do bloco ganhando impulso, com a UE sancionando e ameaçando países dependendo de como a população nativa vota, caso da Hungria e mais recentemente da Itália, disputas de outros tipos, como na Sérvia vs Kosovo, tensões entre Polônia e Alemanha, e instabilidade política interna como na Espanha. Tudo isso amplificado por um diagnóstico de crise econômica, erosão institucional e agitação social crescente.


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