Porque os EUA buscaram negociações secretas com o Irã

Batoul Suleiman (The Cradle) – 20 de junho de 2023

 Embora os detalhes específicos das negociações indiretas iniciadas pelos EUA com o Irã sejam desconhecidos, Teerã já está colhendo bilhões de dólares descongelados em recompensas. Em troca, o Irã pode ter prometido interromper temporariamente o enriquecimento em 60%, um número que já não tinha planos de ultrapassar.

Em um desenvolvimento inesperado, os EUA iniciaram negociações indiretas com o Irã em maio, sinalizando o desejo de Washington de diminuir as tensões entre os dois Estados adversários – mesmo enquanto agia publicamente de outra forma.

Sediadas pelo Sultanato de Omã, as conversas indiretas contaram com a presença de delegações de diplomatas americanos e iranianos, mas não está claro se algum acordo final foi alcançado ou, aliás, qual o tema que ocupou as negociações.

Apesar de incontáveis rumores de que negociações nucleares estão na agenda em Muscat, Teerã negou isso categoricamente. Os iranianos mantiveram-se firmes de que não aceitarão nenhuma solução temporária para o acordo nuclear de 2015, que foi unilateralmente abandonado pelos EUA em 2018.

Embora as negociações secretas possam não estar diretamente relacionadas ao programa nuclear do Irã, uma possível fórmula para um acordo surgiu, envolvendo a libertação mútua de prisioneiros e o descongelamento de até US$ 10 bilhões mantidos em bancos sul-coreanos e no Iraque, atualmente bloqueados por sanções dos EUA.

Mas por que Washington ofereceria uma série de “recompensas” ao Irã sem um preço óbvio? Especialmente considerando que os EUA têm sido o principal spoiler nos acordos de troca de prisioneiros e na liberação de fundos iranianos há anos?

As duas faces de Washington sobre o Irã

Na superfície, os EUA estão ajudando na liberação de fundos iranianos ao mesmo tempo em que o Pentágono aumenta suas ameaças contra a República Islâmica e aumenta as tensões marítimas entre suas respectivas marinhas.

Isso começou em fevereiro, quando a Bloomberg publicou uma reportagem não verificada citando dois “diplomatas seniores” não identificados dizendo que Teerã havia enriquecido urânio a 84% – “o nível mais alto encontrado pelos inspetores no país até o momento e uma concentração de apenas 6% abaixo do que é necessário para uma arma”. Uma bomba nuclear requer uma pureza de enriquecimento de 90-95 por cento de 25 quilos.

O Irã imediatamente rejeitou esses relatórios, confirmando por meio de um alto funcionário que Teerã não havia realizado nenhum procedimento de enriquecimento de urânio em mais de 60%.

Em uma demonstração incomum de apoio à posição de Teerã, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) no final de maio encerrou os rumores de “84 por cento” declarando que sua investigação dessas alegações estava encerrada.

No entanto, como foi pretendido, a fonte da Bloomberg de origem anônima gerou meses de narrativas de “o Irã está perto de uma bomba nuclear”, o que convenientemente forneceu uma desculpa para o aumento das ameaças dos EUA e de Israel contra a República Islâmica para ganhar influência na mesa de negociações.

‘Duas semanas de distância’

Em março, o chefe do Estado-Maior do Exército dos EUA, Mark Milley, testemunhou perante um comitê do Congresso que o Irã poderia produzir material suficiente para uma bomba nuclear em um período de duas semanas, exigindo apenas alguns meses adicionais para concluir a construção da arma.

A declaração de Milley, ao que parece, foi o início de uma campanha de construção de alavancagem contra o Irã no terreno.

Primeiro, a Marinha dos EUA no Mar Arábico apreendeu petróleo iraniano a bordo de um navio-tanque a caminho da China. Em resposta ao movimento, o Irã deteve no Golfo de Omã um navio-tanque que transportava petróleo americano em rota do Kuwait para os Estados Unidos. Menos de uma semana depois, o Irã também deteve um petroleiro que transitava pelo Estreito de Ormuz em direção ao porto de Fujairah, nos Emirados Árabes Unidos.

Isso ocorre após declarações do porta-voz da Casa Branca, John Kirby, nas quais ele afirmou que seu país detectou repetidas ameaças iranianas à navegação comercial no Golfo e que o Departamento de Defesa dos EUA começará a fortalecer sua posição de defesa na região.

Essa rodada foi como um teste de campo para aumentar a pressão antes de retornar à mesa de negociações, mas a resposta iraniana, segundo fontes políticas em Teerã, frustrou a pressão americana.

Após essa escalada pública, Washington solicitou secretamente – via Omã – abrir comunicações com o Irã. Fontes americanas familiarizadas com as negociações indiretas disseram à Axios que “o objetivo da negociação é chegar a um entendimento sobre as formas de desescalar o programa nuclear do Irã, seu comportamento na região, bem como sua intervenção no conflito na Ucrânia”.

Mas os objetivos reais dos EUA são muito menos ambiciosos do que o declarado para consumo público, disse o analista iraniano Amin Berto ao The Cradle:

“A única coisa que os EUA querem agora é parar o aumento do enriquecimento de urânio no Irã, sem conflito militar, porque os EUA estão envolvidos na crise da Rússia e da Ucrânia e na tensão com a China.”

Os EUA relutam em se envolver em novos conflitos na Ásia Ocidental, pois reconhecem as possíveis consequências de uma agressão israelense contra o Irã, que pode se transformar em uma guerra maior no Golfo Pérsico geoestratégico.

Além disso, os EUA não estão interessados em permitir que o Irã se torne um Estado de “limiar nuclear”, onde possui a capacidade de produzir uma bomba nuclear a qualquer momento sem realmente dar o passo final.

Escalando as coisas

Supondo que Teerã atinja 90% de enriquecimento, tanto Israel quanto os EUA se veriam com opções limitadas.

Eles teriam que recorrer à guerra ou aceitar a nova realidade, na qual poderiam tentar interromper o programa nuclear do Irã, impor sanções mais rígidas ou incitar a agitação interna no Irã. No entanto, é importante notar que todas essas opções foram exploradas anteriormente sem causar uma mudança significativa no “comportamento” de Teerã.

Confrontada com esta realidade, Washington vê-se obrigada a iniciar negociações com o Irã e a esforçar-se por chegar a um acordo que restrinja a taxa de enriquecimento. O objetivo é evitar uma guerra que impactaria negativamente os interesses americanos e israelenses na região.

Além disso, visa impedir o surgimento de um Estado de “limiar nuclear” no Irã, que poderia ter efeitos dissuasores regionais de longo alcance. É importante notar que o endurecimento das sanções poderia levar o Irã a fortalecer suas alianças com os contrapesos Rússia e China.

Fontes familiarizadas com as negociações em andamento em Muscat sugerem que as discussões atuais giram em torno de um novo acordo parcial, em vez de um abrangente semelhante ao acordo de 2015.

O entendimento proposto exige que os EUA tomem a iniciativa inicial de liberar os fundos do Irã mantidos no exterior, supostamente em troca do Irã não enriquecer urânio além de 60% de pureza. O processo de liberação de fundos iranianos já começou, incluindo a transferência de mais de US$ 6 bilhões em Direitos Especiais de Saque (SDRs – Special Drawing Rigths – nota da tradutora) do Fundo Monetário Internacional (FMI) e mais de US$ 3 bilhões em fundos iranianos do Iraque.

Embora nos próximos dias se espere a libertação mútua de prisioneiros, as fontes indicam que o que impede chegar a uma solução final é determinar o nível máximo de enriquecimento ao qual o Irã está disposto a aderir. A negociação gira em torno de se será fixada em 60% ou 20%, em troca do congelamento das sanções impostas ao Irã.

O que o Irã quer?

O Irã mostrou abertura para chegar a um novo entendimento que levaria ao levantamento das sanções, à liberação de fundos apreendidos e ao aumento das oportunidades econômicas. O entendimento serviria como um receptáculo para o extinto acordo nuclear do Plano de Ação Conjunto Abrangente (JCPOA) e não um substituto.

E a disposição do Irã para negociar não implica de forma alguma a aceitação de todas as condições dos EUA. O objetivo final de Teerã exigirá o levantamento completo e verificável das sanções dos EUA em troca do estabelecimento de parâmetros sobre a taxa de enriquecimento e atividades nucleares do país.

Isso foi explicado pelas recentes declarações do líder do Irã, Ali Khamenei, que disse que “não há nada de errado com o acordo (com o Ocidente), mas a infraestrutura de nossa indústria nuclear não deve ser tocada”.

Os comentários foram feitos durante uma reunião com um grupo de especialistas nucleares iranianos em 11 de junho, durante a qual Khamenei também explicou que:

“Recebemos golpes por causa dessas confianças equivocadas. É muito importante que uma nação e os funcionários de um país saibam e entendam onde devem confiar e onde não. Nós entendemos isso nos últimos vinte anos. Nós entendemos quem é confiável e quem não é.”

Notavelmente, as declarações de Khamenei vieram logo após o chefe da Organização de Energia Atômica do Irã, Mohammad Eslami, afirmar que o objetivo do Irã em enriquecer urânio é suspender as sanções dos EUA. Observando o contexto histórico, torna-se evidente que o Irã aumentou seus níveis de enriquecimento em resposta às persistentes hostilidades israelenses, muitas vezes com o apoio dos EUA, visando sua infraestrutura nuclear. Essas escaladas também foram motivadas por incidentes como o assassinato de cientistas nucleares, exemplificado pelo caso de Mohsen Fakhrizadeh em 2020.

Onde isso deixa Israel?

Apenas Israel, que incidentalmente vê um Irã com armas nucleares como uma ameaça existencial, sustenta que um acordo de bastidores EUA-Irã é iminente.

Embora Teerã e Washington tenham negado qualquer progresso significativo na retomada do acordo nuclear, Israel expressa dúvidas sobre essas afirmações. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, afirmou durante um telefonema com o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, após sua visita à Arábia Saudita, que Israel se opõe a qualquer acordo dos EUA com o Irã e que “nenhum acordo com o Irã comprometerá Israel, que fará de tudo para se defender”.

De acordo com um relatório do Centro de Jerusalém para Assuntos Públicos , qualquer novo acordo nuclear entre Washington e Teerã refletirá um perigo para Israel por meio de vários fatores, principalmente porque “o Irã provavelmente continuará a desenvolver tecnologia de armas nucleares e programas de mísseis balísticos”; e que o acordo fornecerá ao Irã dezenas de bilhões de dólares, o que lhe permitirá aumentar suas capacidades militares e as capacidades de seus aliados na Ásia Ocidental.

O think-tank israelense também destacou a grande preocupação dos dirigentes da entidade em relação à sua incapacidade de influenciar o governo Biden e o Congresso:

“No entanto, alguns altos funcionários do estabelecimento de segurança israelense acreditam que um novo acordo nuclear temporário entre o Irã e as grandes potências pode ser o menor de dois males em comparação com a situação atual, onde o Irã continua perseguindo suas ambições nucleares sem controle.”

O último ponto sobre a busca desenfreada do Irã por ambições nucleares é um fator-chave para Washington buscar um entendimento com Teerã – principalmente para que possa aplacar Tel Aviv e voltar suas atenções geopolíticas para questões mais urgentes em outros lugares.

Fonte: https://thecradle.co/article-view/26151/why-the-us-sought-secret-talks-with-iran


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