Por que o cosmo africano não apoia o ocidente na sua guerra de sanções contra Rússia?

José Francisco Lumango[1], para o Saker Latinomérica e Blog do Saker – 06 de julho de 2022

A resposta pode não ser simples. Mas a memória da colonização europeia em África, e os seus nocivos efeitos ainda visíveis, apesar das independências dos seus Estados[2], podem ser um caminho razoável para a sua compreensão. Um adágio africano ensina que, “Nunca se deve esquecer as lições aprendidas nos momentos de dores”, o que parece ser a fonte de inspiração do cosmo africano _ o conjunto de entidades que detêm formal e materialmente as relações de poder em África _ a não esquecer as sequelas trágicas da colonização europeia, para proteger suas independências e não repetirem os erros do passado. Sem ser simplista, nem muito complexo, a resposta para a pergunta em questão pode ter várias razões:

1. Memória histórica da colonização e a luta pela libertação nacional: A Rússia, herdeira da Ex-URSS, apoiou ideológica, política, económica e militarmente as lutas de libertação nacional de vários países africanos, que após a concretização das independências, seguiram o modelo comunista como base da sua construção política, social e económica. Ainda que depois tenham adotado o capitalismo ocidental, a mentalidade do cosmo africano, é ainda de influência soviética, por ter sido lá onde a maioria fez as suas formações militares e políticas e recebidos apoio económico para financiar as guerras de libertação para pôr fim a colonização ocidental, com ajuda direta e indireta de Cuba como intermediária em alguns casos. A guerra fria entre EUA e OTAN contra a URSS levou a guerras civis nos países africanos para conquista dos espaços de influências. Após a queda do muro de Berlim e o ressurgimento da Rússia, os ocidentais olharam a situação como uma vitória absoluta. Apesar disso, o cosmo africano não esqueceu a colonização, as interferências dos países ocidentais nos seus assuntos internos e os processos armadilhados dos endividamentos massivos das suas economias, como forma de controlar os seus estratégicos recursos naturais.

2. Memória recente das guerras no início do século XXI.º: Para além das questões coloniais, o cosmo africano tem acompanhado desde 2001 o comportamento do ocidente (EUA, OTAN e UE) nas guerras do Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, adoçadas pelas primaveras Árabes, tentativa de golpe de Estado na Turquia, Cazaquistão, Paquistão, Tunísia, Egipto, etc., sem esquecer o massacre no Ruanda e a guerra da Somália e do Iêmen. Essas guerras e golpes de Estados destruíram milhares de vidas humanas, infraestruturas sociais, empregos etc. Foi uma catástrofe para todo continente e territórios próximos como o sudoeste asiático. As guerras existentes como na Somália, Iêmen, Nigéria, Mali, Moçambique, RDC, na Etiópia etc, permite que o cosmo africano, mesmo aqueles que têm laços fortes com o Ocidente como Marrocos, por exemplo, não ajam frontalmente contra Rússia, fato verificado nas recentes votações da Assembleia geral da ONU e no Conselho de Direitos Humanos que a suspendeu. A expulsão das forças francesas pela junta militar do Mali e substituído pelos russos através do grupo Wagner, tal como a construção de um porto para armada naval russa no litoral sudanês do mar vermelho, pode ser um sintoma revelador.

3. Memória nociva da unipolaridade ocidental e a chance de uma alternativa multipolar global de poder: Para Alfredo Jalife-Rahme, a guerra da Ucrânia é uma guerra civil dentro da civilização eslava, através de várias guerras no seu interior: guerra económico-financeira, propaganda-midiática, cultural, biológica, radiológica e militar. Trata-se de uma guerra híbrida que acabou com a globalização, como confirma Larry Fink, CEO da BlackRock. Para Alfredo Jalife-Rahme, não se trata de uma desglobalização total, mas a desglobalização económico-financeira, cibernética-digitálica, energética e comercial.

Já não interessava para o Ocidente a globalização econômico-financeira por perderem a batalha frente a China, e a globalização cibernética-digitálica (softwares etc.,) ganha pelos Indianos. Esta bipolaridade passa também pela divisão no Conselho de Segurança da ONU em dois blocos: o primeiro composto pelos EUA, Reino Unido, França (G7/OTAN), e o segundo pela Rússia e China (Grupo de Shanghai e BRICS). Essa situação levou a uma disfunção operacional da OMC e levou à demissão do seu anterior Diretor geral, Roberto Azevedo. Neste sentido, Jalife-Rahme cita o artigo de Philipe Stephens “The world is marching back from globalisation”, onde afirma que “Os EUA não vêem um interesse nacional vital em manter uma ordem que transfere o poder para os rivais”[3]. Deste modo, segundo Alfredo Jalife-Rahme, “Tudo que não se globaliza se balcaniza[4]. Assim, o fim da globalização, sobretudo a económico-financeira, dita pelo Larry Fink, implicará inevitavelmente a sua balcanização, através de dois blocos regionais, ou seja, uma desglobalização e trans-meta-regionalização bipolar, de um lado o G7/OTAN e UE, e do outro lado, os BRICS/Grupo de Shanghai e União Euroasiática.[5]

A desglobalização dita por Larry Fink é a “desglobalização neoliberal”, que ocorre através da paralisação gradual das cadeias globais de suprimentos, que se fundamentam na redução dos custos operacionais através do outsourcing (deslocalização das empresas) e downsizing (diminuição do custo laboral para aumentar os lucros dos acionistas e valorizar as empresas nos mercados de capitais), conforme Alfredo Jalife-Rahme. O cosmo africano julga que, se a Rússia, mesmo com armas nucleares, um país continental, de tradição euroasiática, que fornece quase 40% dos recursos energéticos e outras matérias-primas estratégicas ao Ocidente, é tratado desta forma, o que será dos países africanos, que são visivelmente mais fracos em termos militares? A destruição da Líbia por ter tentado vender petróleo em Euro e rejeitar o USD pode ser uma prova indiscutível.

A intromissão do Ocidente em África, para além da colonização, dispensa apresentações. As guerras e golpes de Estados na Guiné-Conacri, Mali, Burkina Fasso, Sudão, República Centro Africana, guerra civil em Angola e outros conflitos são factos que permanecem na memória coletiva do cosmo africano. Se a memória colonial foi trágica, a interferência expressiva e agressiva do Ocidente no cosmo africano está a quebrar toda a confiança que ainda restava, por razões históricas (mais de 400 anos de colonização), pela concorrência desleal na exploração dos recursos naturais, a interferência massiva nos assuntos internos pelo FMI quanto aos financiamentos de infraestruturas rodoviárias, habitacionais etc, e a tentativa de incorporação de valores ocidentais de forma agressiva, através de sanções e chantagens, ainda que estes valores não correspondam a cosmogonia histórico-epistêmica e gnosiológica africana.

4. A China e Rússia como alternativa financeira e militar para a sobrevivência existencial dos países africanos num mundo multipolar a médio e longo prazo: O cosmo africano observa com preocupação e cautela a tudo que os líderes ocidentais fazem contra a Rússia como resultado da operação técnica-militar na Ucrânia, independente das causas, que pelo senso-comum percebe-se desde 2014. O motivo da preocupação consiste no fato de que, sempre que o Ocidente se encontra em crise ou encurralado política, geoestratégica e economicamente, usa como saída guerras internas ou externas, como se pode constatar nas guerras romanas, colonização na áfrica, ásia e américa latina, guerras napoleónicas, primeira e segunda guerra mundial. Diante das circunstâncias, o cosmo africano demonstra resistência em relação às sanções contra a Rússia, abstendo-se das votações na ONU, nos pronunciamentos oficiais, isto é, mantendo uma certa neutralidade estratégica, apesar da pressão gigantesca ocidental, obrigando-os a escolherem um lado como se ainda fossem vassalos ou colonizados. Não é que o cosmo africano concorde na sua plenitude com a operação técnico-militar da Rússia na Ucrânia, na medida em que, existe uma história de invasões em África realizadas pelos ocidentais, árabes, persas e otomanos. A principal preocupação é a necessidade de uma alternativa económico-financeira e militar em relação ao Ocidente para a sua própria sobrevivência existencial, e para se proteger de uma possível interferência agressiva a longo prazo, quando as reservas estratégicas de matérias-primas ocidentais chegarem ao limite. A forma como o Ocidente se portou durante a Pandemia da Covid19 no âmbito das políticas da distribuição de vacinas, ao comprarem antecipadamente quase 80% de toda vacina em produção no mundo, deixando os países pobres sem vacinas nem se quer para comprar durante um certo período, e mudando de posição, apenas quando se aperceberam que, a não distribuição global das vacinas prolongaram a pandemia, levou a criação do sistema COVAX pela OMS, após críticas duras de Tedros Adhanom Ghebreyesus, Diretor geral da OMS, afirmando que, “A diferença crescente entre o número de vacinas oferecidas nos países ricos e as administradas por meio da COVAX está se tornando “mais grotesca a cada dia”.[6] E como não podia ser de outro modo, o gesto da Rússia e China na célere distribuição de vacinas e material médico de proteção foi levado em conta pelo cosmo africano na hora de tomada de decisão. Como é sabido, a presença económica da China e militar da Rússia em África é visto como uma garantia alternativa às ofertas do Ocidente. Isso, desde 2002, enquanto Ocidente ficou distraído com as suas guerras eternas no Iraque, Afeganistão, primavera árabes, Síria, Líbia, etc., a China entrou em África em silêncio, financiando massivamente os projetos de infraestruturas rodoviários etc., sem interferência nos assuntos internos, através da adoção da estratégia “Win-Win”. Já a Rússia tornou-se a principal alternativa militar,

representando 49% do total das exportações de armas para África em 2020, de acordo ao banco de dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI)[7], para evitar conflitos internos e proteger-se das interferências externas. Paul Stronski[8] confirma que, “Os governantes de muitos países africanos olham para Moscovo a partir dos elos da era soviética, e Moscovo aproveita-se do facto, conseguindo manter a sua influência. No caso da Argélia [e de Angola], isso é feito mediante o perdão de dívidas antigas. Por vezes, a Rússia também faz promessas generosas, assegurando que vai construir oficinas ou instalações para fabricação ou manutenção”[9]. O cosmo africano percebe serenamente que, uma derrota da Rússia na Ucrânia levará o mundo a uma unipolarização ocidental mais agressiva, egocêntrica e militarizada e os países mais fracos não terão nenhuma alternativa de sobrevivência e de resistência existencial. O receio de perecer e de voltar a ser um espaço colonial parece ser mais importante para os estrategas do cosmo africano do que os valores ocidentais sobre a democracia, neoliberalismo, capitalismo, etc. Para o cosmo africano, o seu rumo e futuro depende da cobertura económico-financeira da China e militar da Rússia, para que haja certo equilíbrio nas suas relações com o Ocidente. E considera a situação da Rússia e Ucrânia como uma questão interna entre irmãos da mesma pátria ligados histórica, cultural, linguística e religiosamente. Mas não significa que deseja uma mudança radical nas suas relações estratégicas com o Ocidente. Trata-se apenas de uma medida preventiva de sobrevivência existencial. A forma como o Ocidente trata os refugiados ucranianos em comparação ao que tem sido feito com os refugiados africanos que chegam pelo mediterrânio e das ilhas canárias pelo Atlântico não foi esquecida, tal como as guerras púnicas entre Roma e Cartago e a destruição da Líbia. Estes eventos históricos podem justificar o receio do cosmo africano ao resistir diante da pressão ocidental em abdicar das suas relações estratégicas com a Rússia e a China. Esta neutralidade e ambiguidade estratégica serve para prevenir um risco geoestratégico e existencial como países soberanos e independentes a médio e longo prazo. E, segundo um adágio africano “Quando dois elefantes brigam, quem sofre é o capim”. Assim, o cosmo africano percebe que é um capim nesta guerra de titãs, e a Ucrânia apenas como uma singularidade geoestratégica, geopolítica, geoeconómico, geofinanceira da luta de poder hegemónico entre a Eurásia e Ocidente. Por isso, pode ter sido a razão de se absterem da guerra de sanções contra a Rússia, pelas lições aprendidas das experiências trágicas, antigas e recentes, que têm das suas relações com o Ocidente. O cosmo africano tudo faz para não ser o capim do conflito em causa, promovido pelo Ocidente desde 2014, através do golpe de Estado contra Viktor Yanukovich, e pelo fracasso da implementação dos Acordos de Minsk I e II. Logo, parece que o cosmo africano usa a filosofia proverbial dos seus ancestrais para evitar entrar numa guerra alheia, ainda que já esteja a sentir os efeitos colaterais pelo aumento dos preços do trigo, fertilizantes, petróleo, gás, etc., e o risco de prováveis retaliações, por desobediência das orientações políticas, pelo Ocidente. A reclamação de Macky Sall, Presidente do Senegal e Presidente em exercício da União Africana na sua recente visita à Rússia, ao exigir o Ocidente a eliminar as sanções que afetem a segurança alimentar da África é, sem dúvidas, uma demonstração clara e inequívoca deste posicionamento.


  1. Consultor em Direito e Mercados Financeiros e Doutorando em Direito Financeiro e Económico Global Born in Angola.
  2. As opiniões emitidas nesta reflexão são da única responsabilidade do autor e não vincula nenhuma outra pessoa singular e jurídica.
  3. Cfr. Stephens, Philipe. _ The world is marching back from globalisation”. Financial Time, Sept. 04, 2014.
  4. Cfr. Jalife-Rahme, Alfredo. _ “El lado oscuro de la Globalización: Pós-globalización y Balcanización”, 1.º edição, 2006.

  5. Cfr. Jalife-Rahme, Alfredo. _ Black Rock proclama el Fin de la Globalización por el conflicto en Ucrania”. Análise feita no Radar Geopolítico (Canal de Youtube de Geopolítica). Transmitido ao vivo em 29 de março de 2022.

  6. Cfr. Nações Unidas Brasil. 24 mar. 2021. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/123062-desigualda de-das-vacinas-contra-covid-19-se-torna-mais-grotesca-cada-dia-diz-chefe-da-oms. Acessado:18 abril. 2022.

  7. Cfr. Kondratenko, Tatiana. _Exportações de armas para África: Rússia tem estratégia de longo prazo”. DW.02 jun.2020. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/exporta%C3%A7%C3%B5es-de-armas-pa ra-%C3%A1frica-r%C3%BAssia-tem-estrat%C3%A9gia-d e-longo-prazo/a-53659969. Acessado:18 abri. 2022.

  8. Ibidem.

  9. Pesquisador sénior do Programa Rússia e Eurásia do fundo de pesquisa Carnegie.

One Comment

  1. Serge Mankwe said:

    Truly insightful analysis based on facts and inconvenient truths

    7 July, 2022
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