Pepe Escobar – 15 de dezembro 2023
O Astana Club está agora firmemente estabelecido como um encontro anual indispensável entre o Oriente e o Ocidente no Heartland. O fórum deste ano, realizado a 32 graus Celsius negativos na capital do Cazaquistão, não poderia ter sido programado em um ponto de inflexão geopolítico mais incandescente.
Várias mesas-redondas foram preparadas para examinar todo o espectro do “megaciclo de turbulência” em que estamos imersos, gerando enormes desafios para uma Eurásia em constante integração, que abriga ¾ da população mundial e mais de 60% do PIB global.
A mesa redonda no estilo Guerra nas Estrelas reuniu uma mistura de atlanticistas variados, principalmente americanos e britânicos, e especialistas em toda a Eurásia da China, Rússia, Índia, Turquia e Azerbaijão. Agora vamos direto à ação.
Quando se trata de “onde estamos agora e para onde estamos indo”, foi difícil contornar as bobagens ocidentais, como a Rússia adquirindo lebensraum [espaço vital, jargão dos nazistas alemães para os territórios ocupados – nota do tradutor] e a armadilha de Tucídides. Além disso, a mesa não estava exatamente conciliando o fato de que, em meio a todo o hype da “desglobalização”, Cingapura continua tão atraente para as elites ocidentais, embora continue sendo uma autocracia de fato.
O sempre divertido Edward Luttwak, que aconselhou e continua a aconselhar todo mundo e seus vizinhos no Estado Profundo dos EUA, e cunhou marcos como “turbo-capitalismo”, imprimiu a noção de geoeconomia e cria vacas na selva boliviana, mais uma vez desenvolveu sua obsessão chinesa. Ele foi inflexível: o Conselho de Segurança da ONU é uma perda de tempo; “todos os países próximos à China são anti-China” – o que é comprovadamente falso; e “não há simetria entre os EUA e a China”.
Ao falar sobre “o mundo à beira do abismo”, Charles Kupchan, do Council on Foreign Relations, por videoconferência, refletiu sobre a “derrota estratégica” da Rússia antes de pedir um “fim do derramamento de sangue” – quando nunca houve esse tipo de apelo antes da tão elogiada e fracassada contraofensiva ucraniana.
Zhao Long, do Instituto de Estudos Internacionais de Xangai, preferiu enfocar a “paciência estratégica” da China, uma abordagem holística, bem como o fato de a China ser uma das principais vítimas da guerra por procuração na Ucrânia. Zhao Huasheng, da Universidade de Fudan, acrescentou que uma “guerra de porta em porta” só contribui para a “insegurança de porta em porta”.
Sobre a ameaça de fragmentação da economia mundial, Sergey Afontsev, da Academia Russa de Ciências, destacou como Moscou reestruturou o comércio exterior em menos de seis meses e como todo o mecanismo de exportação de petróleo para a Índia foi implementado em apenas alguns meses.
Um dos principais tópicos em todas as discussões foi a “securitização de tudo” e como essa perigosa interdependência apenas exacerba os riscos à segurança. Evan Feigenbaum, do Carnegie Endowment for International Peace, propõe que estamos mergulhados em um conflito entre a integração econômica e a fragmentação da segurança.
Uma aferição da realidade sobre as sanções
Damjan Krnjevic-Miskovic, da Universidade ADA, em Baku, fez uma excelente apresentação sobre a interconexão lenta, mas segura, da Grande Ásia Central e do Afeganistão, concentrando-se na conectividade no que é, de fato, o espaço da Rota da Seda.
Uma ponte continental está em vigor, com a China construindo ferrovias para o Cazaquistão, Quirguistão e Uzbequistão.
As vantagens do Corredor Médio multimodal – ou Trans-Cáspio, que liga a China à Europa via Ásia Central, Cáspio e Sul do Cáucaso – devem se sobrepor ao Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (INSTC), cujos principais participantes são a Rússia, o Irã e a Índia.
O ideal é que isso permita a integração sinérgica do Sul do Cáucaso, da Ásia Ocidental, da Ásia Central e do Sul da Ásia, reunindo os principais atores da SCO ao BRI, e com o Afeganistão como pivô: todo o espaço, ressaltou Krnjevic-Miskovic, está “prestes a se tornar um ator autônomo na ordem internacional”.
Uma “aferição da realidade” sobre as sanções provocou um debate sobre a instrumentação do dólar americano como arma, com Afontsev reexaminando a reestruturação do comércio exterior da Rússia e seu sucesso em termos de estabilidade macroeconômica e “não permitindo o aumento das pressões internas”. Consequências: Moscou conseguiu “reunir os cidadãos russos contra o Ocidente”, e houve “maior oferta de mão de obra para a Federação Russa”.
Zhou Bo, com quem tive um intercâmbio fascinante nos bastidores do fórum, enfatizou novamente que, para os americanos, a amizade entre os vizinhos China e Rússia “precisa ser limitada”.
Em meio a todo esse esquema de desacoplamento e redução de riscos, observou Bo, os americanos ainda se apegam à ficção de persuadir a China a não trabalhar contra o Ocidente – quando Pequim nunca teve essa intenção. A China, acima de tudo, orgulha-se de ser membro do Sul Global, com foco na expansão do BRICS: uma organização não ocidental comprometida com o comércio em moedas nacionais.
No final das contas, disse Bo, o que temos, por exemplo, no Mar do Sul da China, são as contínuas provocações dos EUA que tornam o PLA cada vez mais forte.
Em um debate bastante animado sobre IA, Thomas Cellucci, um dos principais consultores de comercialização de ciência e tecnologia dos governos Bush II e Obama, enfatizou a “IA ética”, a transparência nos algoritmos de IA e, acima de tudo, que a ciência e a tecnologia não devem se envolver em política.
Zhou Bo, por sua vez, enfatizou as restrições americanas à IA chinesa, mesmo quando a Universidade de Tsinghua está trabalhando em conjunto com a Brookings em pesquisas sobre IA militar e aspectos cruciais do comando e controle nuclear. Quanto à UE, Bo enfatizou corretamente que ela está mais interessada em “regulamentar a IA” do que em “criar IA”.
Moderei um debate sobre a “era da bloqueialização”, que no final foi bastante produtivo, pois houve apenas duas apresentações de especialistas: James Lindsay, do Council on Foreign Relations, e mais uma vez Zhou Bo. Isso deixou bastante tempo para o uso da palavra. Essencialmente, houve um certo consenso de que a Terceira Guerra Mundial não está próxima – ainda; um G-2 bipolar entre os EUA e a China será combatido por todos os meios por Washington; e o caminho será longo para que o yuan desaloje o dólar americano em toda a Eurásia.
É possível que tenha havido duas questões problemáticas no Astana Club deste ano: não houve discussão suficiente focada especificamente no Heartland e nos “stans” da Ásia Central; e não houve discussão suficiente sobre as consequências do fato de a EAEU/BRICS apresentar em breve um roteiro viável para a desdolarização do comércio em toda a Eurásia.
As tensões finalmente vêm à tona
A sessão plenária final se concentrou em “uma nova fórmula para a paz” e foi aberta pelo primeiro presidente do Cazaquistão, Nursultan Nazarbayev, cujas memórias acabaram de ser publicadas em russo (e em breve em inglês).
Nazarbayev teve o cuidado de lembrar a todos de um ponto crucial: ele foi responsável pela desnuclearização do Cazaquistão, desmantelando o que era, na época, o quarto maior arsenal nuclear do mundo, então transferido para a Rússia em 1995.
Ele enfatizou “o colapso da antiga ordem mundial”; renovou seu apoio ao desenvolvimento sustentável; e elogiou a “transformação mais radical da Eurásia em 100 anos”.
Isso preparou o palco para o debate final. O ex-primeiro-ministro espanhol José Luis Zapatero fez um apelo apaixonado por um cessar-fogo humanitário em Gaza. E o lendário jornalista russo Vladimir Pozner, de quase 90 anos de idade, que, entre outras coisas, foi apresentador de um popular programa de TV político no Channel One por 14 anos, ofereceu sua interpretação do conflito na Ucrânia.
E foi aí que a tensão mal contida que borbulhava sob o fórum finalmente explodiu. O catalisador tinha que ser a Ucrânia.
Um atlanticista desrespeitou Pozner com um ataque ad hominem barato. Fui obrigado a intervir, na frente de todos. O debate que se seguiu foi duro: de um lado, dois russos e eu. Do outro lado, a supremacia anglo-americana.
Isso apenas confirmou, mais uma vez, que a humilhação cósmica americana/OTAN em curso na guerra por procuração na Ucrânia será, para os atlantistas, uma ferida que nunca será curada. O mérito do Astana Club é torná-lo, mais uma vez, bastante gráfico, em meio a um debate civilizado sobre todos os aspectos de nossa atual e tóxica situação geopolítica.
E não, não encontramos uma “nova fórmula para a paz”.
Fonte: https://sputnikglobe.com/20231215/pepe-escobar-clash-of-civilizations-in-kazakhstan-1115599377.html
É natural que não tenha sido encontrada “uma nova fórmula para a paz”. Os verdadeiros defensores da paz no mundo ocidental ainda restantes nos dias de hoje, deviam ser protegidos pela Greenpeace.