Prova 1: o premiê Li Keqiang simplesmente desapareceu das vistas do público por quase duas semanas – depois que o presidente Xi Jinping comandou uma reunião crucial do Politburo no final de julho onde se definiu nada menos que todo o desenvolvimento estratégico chinês para os próximos 15 anos.
Li Keqiang reapareceu para coordenar uma sessão especial do todo-poderoso Conselho de Estado, justo quando o principal ideólogo do Partido Comunista Chinês, Wang Huning – número 5 do Politburo – surgiu como convidado especial em um encontro da Federação da Juventude Chinesa (ACYF [All China Youth Federation], na sigla em inglês – NT).
Ainda mais intrigante, lado a lado com Wang, poder-se-ia encontrar Ding Xuexiang, nada menos que o Chefe de Gabinete do Presidente Xi, assim como outros três membros do Politburo.
Nesta espécie de “agora estou aqui, agora não estou mais” o fato de que todos surgiram ao mesmo tempo, depois de uma ausência de quase duas semanas, levou astutos observadores chineses a concluir que Beidaihe na realidade aconteceu. Mesmo que nenhuma ação política tenha sido detectada à beira-mar. A dica semioficial é que, por causa da Covid-19 não houve reuniões presenciais ou confraternizações.
Porém, é a prova 2 que pode ser definitiva. O já famoso encontro do Politburo no final de julho, liderado por Xi Jinping, delineou de fato a sessão plenária do Comitê Central em outubro. Tradução: os contornos do roteiro que será seguido já tinham sido aprovados por consenso. Não havia necessidade de outras discussões em Beidaihe.
Política oficial ou balões de ensaio?
O caldo entorna quando se considera uma série de balões de ensaio que começaram a surgir poucos dias depois na mídia chinesa. Mostro alguns pontos principais:
1. No front da guerra comercial, Pequim não expulsará as companhias (norte)americanas já operando na China, mas aquelas que querem entrar nos mercados financeiros, de informação tecnológica e de serviços de saúde e educação não serão aprovadas.
2. Pequim não se desfará de uma vez só da esmagadora quantia de títulos do Tesouro (norte)americano que detém, porém – como já acontece – acelerará a alienação dos ativos. Ano passado, o total ficou em $100 bilhões de dólares. Prevê-se que até o final de 2020 o total pode chegar a $300 bilhões.
3. Previsivelmente, também será acelerada a internacionalização do Yuan. No pacote, a configuração final dos parâmetros para a compensação de dólares dos Estados Unidos através do sistema chinês CIPS – já prevendo a possibilidade vulcânica de que Pequim seja expulsa do sistema SWIFT pela administração Trump ou seja lá quem for a ocupar a Casa Branca após janeiro de 2021.
4. No que foi amplamente interpretado através da China como o front da “guerra de amplitude total”, principalmente híbrida, o Exército de Liberação Popular (People’s Liberation Army – PLA, na sigla em inglês – NT) foi colocado em alerta 3 – e todas as licenças foram canceladas até o final de 2020. Aceleração do desenvolvimento de armas nucleares e aumento do gasto com a defesa até 4% do PIB serão objetos de esforço conjunto da nação. Os detalhes deverão ser entregues durante o encontro do Comitê Central em outubro.
5. Colocar-se-á ênfase total no espírito chinês de autossuficiência independente e na construção do que pode ser definido como o sistema de “circulação econômica dupla”: consolidação do projeto de integração eurasiana paralelamente com a instalação do mecanismo de liquidez global do Yuan
No cerne desse caminho existe o que foi descrito como “o abandono firme de todas as ilusões quanto aos Estados Unidos e a condução de mobilização de guerra do povo chinês. Temos que promover a batalha para resistir às agressões dos Estados Unidos (…) a mentalidade de guerra orientará a condução da economia nacional (…) estejam preparados para a completa interrupção das relações com os Estados Unidos.”
Pelo que se observa até agora, ainda não está claro se são apenas balões de ensaio lançados para a opinião pública chinesa ou decisões reais alcançadas pela Beidaihe “invisível”. Assim, todos os olhos estão postos na forma pela qual essa tremenda configuração será apresentada quando o Comitê Central trouxer à luz seu planejamento estratégico em outubro. Significativamente, acontecerá faltando apenas algumas semanas para as eleições nos Estados Unidos.
É tudo uma questão de não parar
Todo o exposto até aqui espelha um debate recente em Amsterdã sobre o que configura a “ameaça” chinesa ao ocidente. Aqui, alguns pontos principais.
1. A China nunca se cansa de reforçar seu modelo econômico híbrido – uma absoluta raridade global: nem totalmente público, nem economia de mercado.
2. É espantoso o nível do patriotismo chinês: uma vez que o país esteja encarando inimigo externo, 1,4 bilhões de pessoas agem em uníssono.
3. Mecanismos nacionais tem força tectônica: absolutamente nada consegue parar o uso total dos recursos financeiros, materiais e humanos uma vez estabelecida determinada política.
4. A China conseguiu instalar o mais abrangente sistema industrial contínuo do planeta, sem interferência estrangeira, mesmo eventualmente necessária (bem, restaram algumas questões relativas a semicondutores para a Huawei resolver).
O planejamento da China alcança décadas, não apenas anos. Planos quinquenais são complementados por planos para uma década e até para os próximos 15 anos, como mostrou o encontro presidido por Xi Jinping. A Inciativa Cinturão e Estrada (BRI, na sigla em inglês [Belt and Road Initiative] – NT) foi pensado com um plano para realização em quase 40 anos, concebido em 2013 para ser finalizado em 2049.
E o nome do jogo é continuidade – quando se pensa que os Cinco princípios da coexistência pacífica, desenvolvidos nos idos de 1949 e depois expandidos por Zhou Enlai na Conferência de Bandung em 1955, são as inabaláveis guias orientadoras da política externa do país.
O grupo independente coletividade Qiao que viabiliza o papel de qiao (ponte) junto aos huaqiao (“chineses de além mar”), estrategicamente importantes, acerta na mosca quando destaca que Pequim jamais promoveu o modelo chinês como solução para os problemas globais. Do que o país se orgulha é das soluções chinesas para condições específicas do país.
Também destacam a força da argumentação de que o materialismo histórico é incompatível com a democracia liberal capitalista, que força austeridade e mudança de regime em sistemas nacionais, impondo modelos preconcebidos.
Isso sempre leva de volta ao núcleo da política externa do Partido Comunista Chinês: cada nação deve traçar o seu próprio curso, dadas as condições nacionais.
Assim, emergem todos os contornos do que pode ser descrito racionalmente como uma Meritocracia Centralizada com Características Socialistas Confucianas: um paradigma civilizacional diferente, que a “nação indispensável” ainda se recusa a aceitar e que com certeza não conseguirá abolir através de Guerra Híbrida.
Pages: 1 2
Be First to Comment