Sábado, a França e a ONU organizaram uma videoconferência para coordenar uma rodada de doações – junto com a Comissão Europeia (CE), o FMI e o Banco Mundial. O resultado não foi lá tão brilhante – míseros 252 milhões de euros foram oferecidos – e novamente condicionados às “reformas institucionais”.
A França ofereceu 30 milhões de euros, o Qatar 50 e a Comissão Europeia 68 milhões. De maneira crucial, nem a Rússia nem o Irã estavam entre os doadores. Os EUA – que impuseram sanções duras contra o Líbano – e seus aliados do Conselho de Cooperação do Golfo, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos não doaram. A China esteve presente apenas pro forma.
Paralelamente, uma poderosa comunidade brasileira, os Cristãos Maronitas, estão mandando dinheiro para os manifestantes da revolução colorida. O ex-presidente Michel Temer e o magnata da indústria Paulo Skaf estão voando para Beirute. O antigo presidente do Líbano, Amin Gemayel (1982-1988), tem inúmeros negócios no Brasil a partir de fundos que desviou quando no poder. Tudo indica que o neoliberalismo, quando se trata de manter o poder no Líbano, não faz prisioneiros.
O modelo Hariri
A explosão no porto agravou a já profunda crise do Líbano, mas nada tem a ver com a Covid-19 ou com a guerra por procuração dos EUA na Síria – que despejou um milhão de refugiados no país. Trata-se da proverbial tática neoliberal de shock and awe (choque e pavor – nt), conduzida em tempo integral pelo clã Hariri: o antigo primeiro ministro Rafiq, assassinado em 2011 e Saad, expulso do poder em janeiro.
O modelo Hariri privilegiava a especulação imobiliária e a financeirização. O grupo Solidere, controlado por investidores árabes junto com alguns libaneses, entre eles Hariri, destruiu o centro histórico de Beirute, substituindo-o por imóveis luxuosos. É o modelo rentista neoliberal clássico que beneficia sempre uma pequena elite.
Ao mesmo tempo, o Banco do Líbano estava atraindo fundos da pequena diáspora libanesa e investidores árabes variados ao praticar taxas de juros bem interessantes. De repente, o Líbano tinha uma moeda artificialmente forte.
Uma espécie de pequena classe média floresceu durante os anos 2000, compreendendo comerciantes de importação e exportação, o setor de turismo e operadores do mercado financeiro. Mas ainda assim, a desigualdade era o nome do jogo. De acordo com os dados da organização World Inequality Database, metade da população Libanesa possuía menos riqueza que os 0,1% no topo.
Finalmente, a bolha estourou em setembro de 2019, quando por acaso eu estava em Beirute. Sem dólares circulando, a libra Libanesa começou a desabar no mercado negro. O Banco do Líbano enlouqueceu. Quando a bagunça administrativa tocada por Hariri impôs a “taxa whatsapp” sobre as chamadas em outubro, desencadeou protestos massivos. O capital fugiu em voo livre e a moeda colapsou de vez.
Quem mergulhou o Líbano em uma crise sistêmica foi em princípio a lógica neoliberal e não há qualquer evidência de que o FMI, o Banco Mundial e “doadores” ocidentais/árabes variados irão liberar o Líbano, agora devastado.
Uma solução possível seria fugir da financeirização e focar em investimentos produtivos, voltados para as necessidades urgentes da população atingida pela austeridade e totalmente empobrecida.
Ocorre que Macron, o FMI e seus “parceiros” só estão interessados em manter a estabilidade monetária; atrair capital especulativo estrangeiro; assegurar que a oligarquia libanesa rapace conectada ao ocidente escape viva e acima de tudo comprar nacos dos ativos libaneses por ninharias.
Ou Iniciativa Cinturão e Estrada ou decadência.
Em flagrante contraste com a perpetuação exploradora do modelo neoliberal ocidental, a China está oferecendo ao Líbano a chance de partir para o Leste, para ser parte da Nova Rota da Seda.
Em 2017, o Líbano assinou compromisso de se juntar à Iniciativa Cintura e Estrada (BRI, na sigla em inglês – nt).
A seguir, em 2018, o Líbano tornou-se o 87º membro do Banco de Investimento em Infraestrutura da Ásia (AIIB).
Ao oferecer contas bancárias em Yuan e fazer crescer o comércio bilateral na moeda chinesa, o Líbano, nos últimos anos, passou a fazer parte da internacionalização do Yuan.
Pequim já discute a modernização da infraestrutura libanesa – incluindo a expansão do aeroporto de Beirute.
Isso significa que no momento, Pequim está em posição de oferecer um acordo conjunto de segurança/reconstrução totalmente novo para o porto de Beirute – na hora em que estava quase fechando um acordo de proporção menor com o governo de Diab, ligado apenas à expansão e renovação.
Resumindo, a China tem um plano “A” real para tirar resgatar o Líbano do atual beco sem saída financeiro.
É exatamente isso o que era, e continua sendo, total anátema para os interesses dos Estados Unidos, OTAN e Israel.
A administração Trump não respeitou barreiras para impedir que Israel tivesse o porto de Haifa desenvolvido pela China.
As mesmas táticas “uma oferta que você não pode recusar” serão aplicadas com força total sobre quem quer que seja que ocupe o novo governo no Líbano.
Beirute é centro absolutamente crucial na conectividade geopolítica/geoeconômica na Inciativa Cinturão e Estrada do Mediterrâneo Oriental. Como Haifa temporariamente está fora de alcance, Beirute cresceu em importância como um portal de entrada para a União Europeia, complementando o papel do Pireu e dos portos italianos no Mar Adriático.
É importante tomar nota que o porto em si não foi destruído. A enorme cratera no local representa apenas uma seção do cais. Os edifícios destruídos podem ser reconstruídos em tempo recorde. A reconstrução do porto foi estimada em $15 bilhões de dólares – dinheiro de trocado para uma companhia experiente como a China Harbour.
Por enquanto, o tráfico naval está sendo redirecionado para o porto de Trípoli, a 80 quilômetros ao norte de Beirute e apenas 30 quilômetros de distância da fronteira entre Síria e Líbano. Seu diretor, Ahmed Tamer, confirma que “o porto testemunhou nos últimos anos o trabalho de expansão das companhias chinesas, e recebeu navios de grande porte da China, levando containers em grande número”.
Acrescente-se que o porto de Trípoli também será essencial para a reconstrução da Síria – à qual a China está totalmente comprometida.
A rede de conectividade da Iniciativa Cinturão e Estrada do Sudoeste Asiático é um labirinto que inclui Irã, Iraque, Síria e Líbano.
A China já planeja investir em rodovias e ferrovias, as últimas desenvolver-se-ão depois em ferrovias de alta velocidade. Será a conexão do corredor central China/Irã da Iniciativa Cinturão e Estrada – que logo receberá o reforço dos $400 bilhões de dólares da parceria estratégica de 25 anos que será em breve assinado pelos dois países – com o Mediterrâneo oriental.
Há que se acrescentar o papel representado pelo porto de Tartus na Síria – com presença naval russa muito forte. Inevitavelmente, Pequim investirá na expansão de Tartus – crucialmente ligado ao Líbano por auto estrada. A parceria estratégica China/Rússia será amparada pela rede protetora de Tartus com os sistemas de mísseis S-300 e S-400.
Em termos históricos, o que se desenvolveu lentamente nesta parte Eurásia, uma faixa larga que ia de Samarqanda a Córdoba, com centros importantes como Bagdá e Damasco, foi uma civilização sincrética superposta sobre contexto regional, rural e nômade. A coesão interna do mundo muçulmano forjou-se a partir do século 7º até o século 11: foram estes os fatores principais que delinearam uma Eurásia coerente.
Um dos fatores essenciais de unificação, abstraindo-se o Islã – foi o árabe, a língua da religião, administração, comércio e cultura. Esse mundo muçulmano em evolução foi configurado como um enorme domínio econômico e cultural, cujas raízes conectaram o pensamento Grego, Semítico, Persa, Indiano e Árabe. Síntese maravilhosa que formou uma civilização única a partir de elementos de origem diferente – Persa, Mesopotâmica e Bizantina.
Dessa síntese, evidentemente faziam parte o Oriente Médio e o Mediterrâneo oriental, francamente abertos para o Oceano Índico, as rotas do Cáspio, Ásia Central e China.
Neste momento, séculos depois, o Líbano só terá a ganhar se abandonar a mitologia da “Paris do Oriente” e olhar verdadeiramente para Leste – mais uma vez, posicionando-se do lado certo da história.
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