Márcia G. Damasceno(*) e Quantum Bird – 2 de outubro de 2024
A Argentina é uma das potências da América do Sul. Com cerca de 46 milhões de habitantes, o país tem um grande potencial turístico e fortes tradições, além de paisagens espetaculares, como na Patagônia.
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Dados do instituto de estatísticas do país, o Indec, mostra que 52,9%, ou seja, mais da metade da população, está atualmente abaixo da linha da pobreza. Cerca de 15,7 milhões de pessoas. O presidente Javier Milei, próximo de completar 1 ano de governo, tem enfrentado uma forte crise econômica e social, com dívidas elevadas, câmbio deteriorado, reservas internacionais escassas e inflação na casa de 236%. A aposta de Milei para reverter esse cenário é buscar, a todo custo, o equilíbrio fiscal, diminuindo subsídios federais, privatizando empresas e congelando o reajuste de salários e pensões.
Em que se baseia a economia do país e o que explica a crise atual?
Q.B.: A economia argentina se baseia desde sempre em produtos agropecuários e commodities. O país experimentou um ciclos de desenvolvimento e estatização em períodos entre as décadas de 1940 e 1970, durante as administrações de Juan Perón, mas tem uma história longa e bastante típica para a região, repleta de golpes de estado e lideres populistas coloniais. Devido a esta instabilidade, nunca conseguiu se industrializar na mesma escala do Brasil. Podemos dizer que foi na Argentina que o experimento neoliberal foi executado do inicio ao fim. Desde o ultimo mandato de Perón, em 1974. sucessivos governos se empenharam em liquidar os recursos estratégicos do país e privatizar sua infraestrutura. O país foi a bancarrota e deu calotes da dívida externa quase uma dezena de vezes. A economia argentina deixou de existir em um sentido formal e sua moeda nacional, profundamente instável e desvalorizada, é evitada pelos seus próprios cidadãos, que preferem, sempre que possível, precificar as coisas em dólares. Aliás, a dolarização completa da economia, que seria o ato terminal de submissão colonial, é cogitada regularmente na cena politica de lá. Não há muito o que fazer sem operar uma ruptura completa com o capitalismo e proceder uma estatização e planificação ao estilo chines, ou soviético, da economia. Milei assumiu a presidência do país nesse contexto, após uma campanha intensa de guerra hibrida e sabotagem econômica. Ele chegou para liquidar qualquer esperança de resgate e recuperação da Argentina pelos BRICS+ e para reafirmar a precedência da Doutrina Monroe na região, frente a crescente presença chinesa na economia argentina.
A pesquisa da Universidade Torcuato Di Tella, divulgada mostra a impopularidade do governo. O Índice de Confiança Governamental (ICG) caiu em 15% em setembro, quando comparado ao mês anterior, o pior desempenho desde dezembro do ano passado. A queda na popularidade pode representar uma reação popular?
Q.B.: Não visito a Argentina faz muito tempo, mas do que ouço no circulo de amigos argentinos, diria que é improvável uma revolta popular de fato. A queda popularidade reflete apenas a frustração popular com a piora da condição econômica geral, e isto era previsto. Milei está acabando com a doença matando o doente. A inflação está caindo porque o poder de compra está em queda livre. A situação está realmente ruim para o argentino médio. O problema é: revolta popular para o que ? Com qual objetivo? A economia Argentina não tem conserto dentro da estrutura democrática liberal e capitalista. O país tem um núcleo de bilionários ultrarreacionários e antinacionais, que se beneficiaram historicamente das privatizações, controlam quase todos os recursos estratégicos e administram a economia do país em beneficio próprio. Esse pessoal odeia visceralmente qualquer referencia a Perón porque ele ousou estatizar certas infraestruturas e recursos. A distribuição de renda é péssima, e segue piorando. Apenas uma ruptura revolucionária, seguida da planificação da economia resolveria. Não creio que existam propostas nessa direção. O governo e as reformas destrutivas de Milei podem ser inviabilizados, mas e depois?
Eleito pela coalizão de direita ‘ La libertad avnaza’, Milei não tem maioria no legislativo. Quem são os congressistas de oposição e o que pretendem em relação as políticas da direita?
Q.B.: A oposição é um balaio de gatos similar à Frente Ampla para Democracia no Brasil. Basicamente a direita moderada, a esquerda liberal e quadros que se identificam como centro. E antes que você me pergunte, não se tratam progressistas no sentido materialista histórico, mas principalmente democratas liberais.
O Brasil é o principal parceiro comercial da Argentina que é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil. A aproximação política entre Brasil e Argentina, começou com a redemocratização dos dois países na década de 1980, e foi base do projeto que levou à criação do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), em 1991. O capital brasileiro está presente em diversos setores da economia, como siderúrgico, petrolífero, bancário, automotivo, têxtil, calçadista, de máquinas agrícolas, de mineração e de construção civil. A presença de capitais argentinos no Brasil também é expressiva. Como se tem se configurada essa relação atualmente?
Q.B.: A Argentina sempre foi um mercado consumidor dos produtos industrializados brasiletos. Devemos lembrar que durante boa parte da década de 80 e início dos anos 90, antes da praga do neoliberalismo pousar por aqui, o Brasil foi a nação mais industrializada do Sul Global. A presença crescente multinacionais diversas, e da manufatura Chinesa na região, junto com a desindustrialização voluntária, por escolha ideológica do Brasil – obrigado PT e PSDB — nos converteu em um importador de manufatura crescentemente chinesa, o que tem remodelado as relações comercias entre nós e a Argentina como disputas e acordos meramente fiscais. No plano mais geral, a presença massiva de multinacionais na região, não importa a origem, também reforça essa tendencia. A complementaridade natural entre as economias é cada vez menos explorada.
No início do governo Milei hostilizou as relações com os dois maiores parceiros comerciais da Argentina, Brasil e China alinhando o país com os EUA e Israel. O pedido para se retirar dos BRICS foi anunciado nos primeiros meses do governo. A Argentina foi anunciada como um dos novos membros do chamado Brics+ em agosto de 2023, durante a cúpula do bloco realizada em Johanesburgo, na África do Sul. Além do país sul-americano, foram aceitos outros cinco novos sócios: Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã. O que representa essa recusa para a Argentina e para os BRICS?
Q.B.: Significa a inserção firme da Argentina no bloco AngloSionista e a sua submissão à Doutrina Monroe. Para o povo argentino, a destruição de qualquer prospecto de futuro digno e soberano. Para o Brasil, seu principal proponente, significou uma perda enorme de prestígio, pois Venezuela e Bolívia estavam prontas para aderir aos BRICS+, e foram preteridos pelo Brasil. Pode ter sido um ato de sabotagem brasileiro contra os BRICS+, pois a vitória de Milei era certa e ele já havia declarado suas posições. Sobre romper relações com a China… bem mais fácil dito do que feito. Só se for para consumir domesticamente a produção colossal de soja, ou seja comer somente soja, e comprar produtos chineses revendidos pelos norte-americanos e brasileiros com um sobrepreço.
Durante uma reunião, Gastón Benvenuto, controlador da Autoridade Geral de Portos da Argentina (AGP), Mauricio Gonzalez Botto, secretário de empresas e corporações do estado, o embaixador dos EUA na Argentina, Mark Stanley, e Adriel McConnel, representante do Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA realizaram um acordo permitindo a presença do exército dos EUA em todo o curso da rota fluvial mais importante da Argentina, o rio Paraná. O rio é a segunda maior hidrovia da América do Sul, perdendo apenas para o rio Amazonas, e o maior rio navegável da região onde trafegam cerca de 80% de todas as exportações agrícolas, incluindo grãos e óleos.
Pode-se afirmar que essa é uma maneira eficaz de conter a crescente presença da China e que os EUA se sentem ameaçados em relação a competividade na América do Sul?
Q.B.: Se é eficaz ou não, eu não sei. De fato, trata-se de uma cessão de soberania sem precedentes e uma ameaça enorme aos países da região. Acredito que esta medida tem muito mais a ver com a implementação de um controle mais efetivo pelas agencias estadunidenses sobre o trafico de armas e drogas do que com limitar a presença da China.
As ilhas Malvinas é território ocupado pelas forças britânicas desde 1833, quando expulsaram as autoridades Argentinas estabelecidas no local. Atualmente o governo britânico procura petróleo e pretende perfurar a área na expectativa de extrair cerca de 300 milhões de barris nos próximos 30 anos através da empresa Israelense Navitas Petroleum. Parte dos rendimentos deve ser fatiada entre EUA e Israel. Milei já disse em entrevista que a ilha é território britânico.
O alinhamento do Argentino com o Reino Unido significa a possibilidade de adesão do país a OTAN? Quais os benefícios o país pode extrair dessa aliança?
Q.B.: A Argentina se candidatou a parceiro global da OTAN. Simples assim. Sobre as Ilhas Malvinas, acredito que os políticos argentinos usam isso politicamente, mas não estão, de fato dispostos a recuperar aquele território. A descoberta de petróleo na região e sua exploração por empresas britânicas, com a anuência do governo argentino atual apenas demonstram a escala da conversão do país em uma colonia anglo-sionista. Temo que não há muito o que eles possam fazer sobre isto, além de expressar sua frustração nas redes sociais ou insistir em slogans políticos chauvinistas.
(*) Márcia G Damasceno é jornalista, professora e educadora social.
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