Os limites da guerra

Dmitry Orlov – 12 de fevereiro de 2023

Uma guerra quente está ocorrendo no coração do subcontinente europeu que, se você consultar um mapa geográfico, vai desde o cênico Cabo da Roca em Portugal (entrada gratuita) até a majestosa cordilheira dos Urais, na borda leste da Rússia européia. O locus atual está nas províncias russas recém-adquiridas de Lugansk, Donetsk, Zaporozhye e Kherson. Junto com algumas outras províncias, como Odessa, Kharkov e Kiev, essas eram terras russas até que Vladimir Lenin achou por bem reuni-las em uma República Socialista Soviética Ucraniana inventada às pressas. Mas essa entidade quimérica já se foi há mais de 30 anos e o que veio em seu lugar se mostrou inviável e está em estágio avançado de decomposição política. É a proverbial mala sem alça: impossível de levantar, mas valiosa demais para deixar para trás; daí o conflito atual, que é sobre abri-la e pegar o que está dentro dela.

No que diz respeito às guerras, é real, empregando tanques, APCs, todos os tipos de artilharia, foguetes, trincheiras, infantaria e assim por diante. Como na maioria das guerras, esta é baseada em alguns mal-entendidos. Os EUA e seus parceiros da OTAN se recusam a entender que a Rússia quer seu próprio território de volta e continuam pensando que essa demanda é de alguma forma negociável. Eles também têm trabalhado sob o equívoco de que seria de alguma forma possível derrotar a Rússia simplesmente fornecendo às infelizes forças ucranianas algum lixo de guerra obsoleto e alguma inteligência, impondo algumas sanções econômicas à Rússia, tentando isolá-la politicamente e tomando várias outras medidas semelhantes. que os russos mal notaram. Os russos estão ganhando tempo e esperando que todos caiam em si e lhes dêem o que querem, enquanto esmagam as tropas ucranianas aos milhares.

Os americanos parecem estar recuperando o bom senso: menos de um ano após o início do conflito, muitos deles já estão declarando que mais apoio aos ucranianos é uma má ideia. Mas então ninguém sabe o que seu Imperador Dementius Optimus Maximus, Destruidor dos Gasodutos do Norte, fará. Seu objetivo declarado era enfraquecer a Rússia, mas como a Rússia só se fortaleceu nesse ínterim, talvez ele pudesse tentar fortalecer a Rússia. (Sabe, se você não consegue soltar algo empurrando, tente puxá-lo.) Os alemães, por outro lado, estão vacilando. Seu ministro das Relações Exteriores, cheia de ginástica, Annalena, anunciou recentemente que a Europa está em guerra com a Rússia, e então se corrigiu apressadamente: a Europa não está (nein! nicht!) em guerra com a Rússia. Por outro lado (lado número três), o primeiro-ministro da Polônia, Tadeusz Morawiecki, declarou desde então que derrotar a Rússia é a razão de ser da Polônia. Isso fez com que a Rússia e a Alemanha se sentassem e olhassem diretamente uma para a outra. Você vê, a Polônia é um daqueles países que continua piscando entre dentro e fora da existência.

Ele existe quando seus vizinhos estão passando por um período de fraqueza ou estão se sentindo magnânimos, e desaparece quando em questão de algumas décadas se torna raivosamente nacionalista e seus vizinhos decidem que já tiveram o suficiente. Mas pelo menos a Polónia é uma nação histórica cuja existência foi atestada nos anais da história europeia, ao contrário da Ucrânia, que a edição de 1911 da Encyclopaedia Britannica definiu da seguinte forma:

Que isso seja um conto de advertência para Morawiecki e sua turma; quanto ao resto, se eles realmente caírem em si, provavelmente desejarão negociar com a Rússia. E então as perguntas se tornam: o que há para negociar? e com quem negociar? Vamos tentar responder a cada uma delas.

Quanto aos objetos de negociação, existem as novas regiões russas de Donetsk, Lugansk, Zaporozhye e Kherson e a relativamente nova região russa da Crimeia. Estas não podem ser objecto de negociação porque a sua adesão à Federação Russa já foi ratificada e a sua alienação seria inconstitucional. Depois, há as terras russas ainda a serem libertadas: Nikolaev, Odessa, Kharkov, Sumy, Kiev e algumas outras. Aqui, muito depende se a Rússia realmente os quer ou não: Nikolaev e Odessa – provavelmente; o resto – talvez.

Mas então não vamos esquecer as exigências de segurança que a Rússia fez há pouco mais de um ano: recuo da OTAN para suas fronteiras de 1997, retirada de todas as armas ofensivas da OTAN e tropas estrangeiras, com neutralidade para todos os países intermediários. Essas demandas podem ser atendidas da maneira mais fácil – dando à Rússia o que ela quer e, de fato, o que havia sido prometido quando concordou com a reunificação da Alemanha, ou da maneira mais difícil – como resultado de um impasse nuclear tenso, possivelmente com grandes danos colaterais. Tendo em mente que, neste ponto, a Rússia tem domínio geral da escalada, seria mais sensato seguir o caminho mais fácil e reduzir a OTAN. Pelo menos, isso permitiria manter intacto o núcleo dela.

E depois há a questão de quem está lá para negociar. Após o fiasco de oito anos dos acordos de Minsk, segundo os quais a Ucrânia seria federalizada e Donetsk e Lugansk teriam autonomia, e depois que seus fiadores europeus confessaram que tudo não passava de uma farsa e uma tática protelatória com o objetivo de dar à Ucrânia uma chance de se rearmar e retreinar, os fiadores dos acordos de Minsk – França e Alemanha – obviamente não são confiáveis. E depois das recentes revelações, graças ao veterano jornalista investigativo Seymore Hersch, que a explosão dos oleodutos Nord Stream – um ato de terrorismo internacional – foi realizada sob ordens diretas do imperador americano Dementius Optimus Maximus, os EUA obviamente não são confiáveis também. Quem resta para a Rússia negociar? O palhaço vestido de cáqui viciado em drogas escondido em seu bunker em Kiev? Isso seria idiotice.

E assim a única escolha é recuar e deixar o massacre ucraniano continuar até que o lado ucraniano caia para a contagem. O que se seguirá pode ser chamado de negociações, por educação, mas, em essência, o que provavelmente acontecerá é que a Rússia especificará — não pedirá, não exigirá — o novo formato das coisas na Europa Oriental. E isso, ouso dizer, seria realmente um resultado positivo. Sim, as guerras são coisas desagradáveis; soldados morrem, mães choram. Edifícios históricos são danificados e destruídos. Mas às vezes são inevitáveis ​​— por causa da natureza humana. Essa é minha opinião ponderada e estou disposto a defendê-la. “Mas as guerras são tão… violentas!” alguns de vocês podem objetar, e a violência é, obviamente, abominável. E, em geral, eu concordaria. Porém… (o que se segue é um pouco de filosofia, que você pode pular se não gostar de filosofia).

Há aqueles que defendem a mais estrita não-violência. Há também aqueles que veem tal abordagem como um absurdo completo e absoluto; alguns até acham isso tão irritante que dá vontade de socar as luzes dos malditos pacifistas, mas são forçados a se conter, causando grande estresse para si mesmos. Por sua vez, o estresse é uma das principais causas de problemas de saúde – tanto psicológicos quanto fisiológicos. Deixando de lado a questão filosófica de se provocar alguém a cometer violência, seja por meios violentos ou não violentos, é em si um ato de violência, a mais estrita não-violência é teoricamente possível?

Livrar-se de toda a violência não elimina de forma alguma o problema da agressão; simplesmente a manda para o subterrâneo e a transforma em agressão passiva. Por sua vez, ser submetido a uma agressão passiva faz com que as pessoas queiram dar um soco no agressor e, sendo forçadas a se conter, causam grande estresse que, por sua vez, causa problemas de saúde – tanto psicológicos quanto fisiológicos. Esses problemas têm apenas uma solução fácil: apagar as luzes da pessoa agressiva passiva; e não é apenas eficaz, mas também profundamente satisfatório. Assim, fechamos o círculo. E enquanto o caráter de muitas pessoas desagradáveis ​​é bastante aprimorado por eles de vez em quando serem esbofeteados na cabeça ou apanhados e jogados nos arbustos quando eles merecem, ninguém jamais melhora sendo submetido a uma agressão passiva.

É uma lei da natureza que praticamente qualquer criatura, humana ou não, se você cuidar bem dela e pedir pouco ou nada em troca, com o tempo se tornará insolente, começará a se sentir no direito e irá começar a fazer exigências cada vez maiores e mais irracionais. Todas as formas educadas de dissuasão serão inúteis; qualquer tentativa de privar o referido bicho dos referidos benefícios, confiná-lo ou de outra forma restringir seus movimentos, ou influenciá-lo por outros meios não violentos, será recebido não como punição, mas como uma injustiça. Seus gritos ou gestos serão simplesmente ignorados e a situação ficará cada vez pior com o tempo. A solução, porém, é a própria simplicidade: basta dar um tapa no dito bicho, ou chicoteá-lo, ou agarrá-lo pela nuca e sacudi-lo vigorosamente, e depois ignorá-lo por um tempo.

Se você pensa que a ação disciplinar é exclusiva dos humanos e seus pupilos e animais de estimação, não é: ela também é praticada pelos carvalhos em relação aos esquilos. Os esquilos gostam de bolotas e as enterram, depois as desenterram e as comem. No processo, eles esquecem onde enterraram boa parte das bolotas, o que permite que elas brotem em mudas, algumas das quais se transformam em árvores adultas que produzem bolotas. Isso é bom para as árvores e também para os esquilos. No entanto, com o tempo, os esquilos otimizam sua operação desenvolvendo uma memória melhor: em vez de enterrar muito mais bolotas do que desenterrar e comer, eles enterram apenas o suficiente e encontram e comem a maioria delas, cruzando a linha tênue entre simbiose e parasitismo. E então todas as árvores conspiram (conceitualmente falando; o mecanismo exato de como elas fazem isso permanece um mistério) e, por uma temporada inteira, não produza bolotas. Sendo árvores, os carvalhos são obrigados a recorrer a meios agressivos passivos, mas o fazem em grande escala. Os esquilos eficientes morrem de fome (ou simplesmente passam fome e não conseguem produzir descendentes), enquanto os esquilos ineficientes simplesmente precisam pensar e cavar um pouco mais, e mais deles sobrevivem. A eficiência é punida, a ineficiência é recompensada e a simbiose é restaurada.

O que vale para as pessoas e seus animais de estimação, e carvalhos e esquilos, também vale para as nações, sejam elas grandes ou não tão grandes. E é por isso que de vez em quando temos que ter guerras.


Fonte: https://boosty.to/cluborlov/posts/82f871a1-dc67-40bc-af9b-7bd979e48104?share=post_link

One Comment

  1. Smidt Diuk said:

    Pronto, está aqui um texto que deveria ser leitura obrigatória  para o lula. Tá tudo mastigadinho pra ele entender de vez a natureza da crise ucraniana, tudo o que a envolve e curar-se dessa falta de modéstia que literalmente o faz cagar pela boca.

    Fico me perguntando se ele lê o que lemos aqui. Duvido, pois se lesse jamais teria feito declarações tão infelizes como as que fez sobre a Ucrânia. Lula é o tipo do cara que se “informa” pela Folha de são Paulo e pela globo e faz juízo da realidade a partir daí. É só ver a nomeação que ele fez –  mais uma vez – para o ministério das comunicações pra entender que importância ele dá a esse setor ultra estratégico e por consequência o que ele tenderia  a achar confiável como informação que devesse ser levada em conta. Na mídia corporativa a versão corrente é  a mesma das suas declarações.

    Tenho lido comentários aí pela rede nos perfis progressistas e a maioria deles tem aquela marca típica do petismo, aquele papo furado sobre o lula não poder bater de frente, ter que acender uma vela para deus e outra para o diabo e blá blá blá. Isso, mais que tudo, sempre foi a marca do lula, a desculpa que o exigiu de enfrentar questões estratégicas como a comunicação, a politização do povo brasileiro que foi deixado a própria sorte frente ao crescimento do pentecostalismo, o estabelecimento de prioridades e a adoção de uma severa política de austeridade que canalizasse todos os recursos da nação para onde eles eram estritamente necessários. Lula, em nome de uma conciliação que era possível só na cabeça dele, usou isso como desculpa para não enfrentar essas questões.

    Esse cenário acabou chocando um fascismo rastaquera que encampou um discurso autoritário e defensor de uma “solução” para o brasil através do atalho das periódicas e desastrosas viradas de mesa que sempre contaram com a simpatia de uma população despolitizada ao extremo e, portanto, presa fácil do discurso da antipolitica veiculado por uma mídia fora de qualquer controle. Bozo não precisou inventar nada, já estava tudo aí. E podemos dizer que ele teve o mérito de expor as entranhas de  um país que a esquerda não queria acreditar que existia. Esse fascismo sempre esteve  presente na sociedade brasileira, mesmo entre o povo que seria a sua principal vítima.

    Em muitos comentários que tenho lido por aí o mantra é o mesmo de sempre, tem que ter calma, lula não pode bater de frente, lula está tomando pé numa situação difícil e coisa e tal. Mas ele já não tinha tomado pé antes?
    Lula continuará tomando pé da mesma maneira numa realidade que só piorou porque ele ficou só tomando pé quando podia ter tentado chegar na praia? Ah, mas ele não podia… se ele não podia numa época em que havia alguma possibilidade de fazer certos enfrentamentos, não será agora, em condições muito piores, que ele o fará.

    No final das contas vai se revelando que Lula não foi algo que o grande capital teve que engolir a contragosto por falta de opção e sim foi a melhor opção. Como já está ficando muito claro em menos de dois meses de seu novo mandato. Pois quem melhor do que ele pra dizer as coisas que está  dizendo?

    15 February, 2023
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