Rachel Marsden, 16/1/2021, traduzido de RT (trad. ing.-fr. em lecridespeuples.fr)
Como celeiro do mundo, a África tem sido há muito fonte de renda para a indústria francesa, da Defesa aos recursos naturais. Paris tem-se visto tradicionalmente como parceiro privilegiado do continente, especialmente de suas antigas colônias. Sendo a própria França relativamente pobre em recursos, a relação é vista como essencial para a soberania da França.
Se a França pode tomar decisões com seus parceiros africanos, então não precisaria procurar recursos em áreas menos favoráveis onde sua influência e seu controle são muito menores. Agora, a França começa a também decidir pela Europa, pelo menos temporariamente. E Macron – claro! – não deixaria passar essa oportunidade.
Assim, quando Macron assumiu a presidência semestral rotativa do Conselho da União Europeia, dia 1/1/2022, imediatamente voltou sua atenção diretamente para a África. O primeiro evento organizado pelo governo francês nesse papel foi uma reunião para identificar as prioridades dos membros da UE em suas relações com a União Africana, antes de uma cúpula entre os dois órgãos, marcada para fevereiro.
Em coletiva de imprensa, dia 11/1, Macron disse que desejava que a Europa fosse “mais forte no mundo”. E que planejava “construir uma nova aliança, para reconstruir nossa parceria União Europeia-União Africana”.
Mas, ao mesmo tempo em que Macron faz declamações poéticas em público sobre investir em “infraestrutura verde” e “apoiar a prosperidade e a paz” na África, já se pode ver a ‘outra agenda’, por trás dos lugares-comuns de sempre.
Macron há muito tempo sonha com uma maior integração europeia. Sonha também com uma “defesa europeia”, pedra angular do sonho da ‘integração’. A visão que Macron tem da Europa reflete e amplia a posição do ex-general francês e presidente Charles de Gaulle – a Europa como potência geopolítica capaz de mediar entre os polos russo e norte-americano. E a África oferece o cenário perfeito de conflito – além da proximidade com a Europa – para servir de pretexto para desenvolver esse novo conceito de um exército europeu.
Mas, como sempre, o diabo está nos detalhes. Por exemplo: que outros países europeus realmente possuem exércitos que possam oferecer contribuição legítima para alguma força ou missão pan-europeia? Grécia? Itália? Polônia? (Esqueçam a Alemanha, que muito tem resistido contra se aliar à França, em alguma possível convulsão da OTAN liderada pelos EUA, que fornece a Berlim um guarda-chuva nuclear).
Tais candidatos ainda precisam ter vontade de intervir no exterior, especialmente em missões cujo investimento terá retorno pálido, se comparado ao que a França ganharia forçando inevitavelmente seus concorrentes industriais estrangeiros, dado que se sabe que missões militares disfarçadas de antiterrorismo ou humanitarismo sempre acabam em acordos econômicos.
Também é duvidoso que os cidadãos de Itália, Polônia, Grécia ou outros países da UE venham a apoiar um maior envolvimento militar estrangeiro na região do Sahel na África – questão sobre a qual Macron tem batido o punho e deixado claro que se trata de missão liderada essencialmente pela França, de composição multilateral. E aí reside um paradoxo quintessencial da soberania nacional e da soberania europeia.
Seria mesmo possível fortalecer a Europa, sem enfraquecer os estados membros individuais, forçando-os a responder a uma liderança supranacional que dificilmente estaria totalmente alinhada com os respectivos interesses nacionais?
Para complicar ainda mais as ambições africanas de Macron para a França e seu projeto de vitrine europeia, há o fato de a França ter cometido vários erros diretamente no continente, que levaram concorrentes como China, Rússia e Estados Unidos a roubar, de Paris, a posição ‘forte’.
O exemplo mais recente, é Macron ter-se deixado roubar por Washington na Austrália, quando contrato multimilionário de submarinos foi subitamente cancelado e ‘transferido’ a Washington. Ora! Não há quem não saiba que quem quer roubar a namorada do amigo começa por se autoconvidar para andar junto com o casal. Que interesse Macron supõe que Washington teria, ao pedir para passar tempo com Paris em missões na África? A cozinha francesa?
Há também o fato de que a estratégia antiga, de promover intervenções na França com motivação militar ou de ‘segurança nacional’ – que implicava agravar os conflitos ou garantir apoio a golpes de Estado – sempre contando com transição para eventual ganho econômico e industrialização já perdeu toda a viabilidade. Além dos outros muitos motivos, também porque a opinião pública já desmascarou essa trapaça.
A trapaça decifrada foi depois substituída por outro modelo, que começa por empreitada econômica estrangeira, que em seguida oferece abertura ao pessoal da segurança privada, para se engajar no país ‘ocupado’ a fim de garantir proteção aos investimentos estrangeiros.
A ótica da ampla intervenção armada sem qualquer justificativa real apoiada pela opinião pública deixou de ser prática recomendada. Por exemplo, quando o CEO da multinacional francesa Total Energies, Patrick Pouyanne, suplicou aos países europeus que ajudassem Moçambique na luta contra a Daech em 2020, seu pedido caiu em ouvidos moucos. A insurgência islamista havia dificultado o desenvolvimento do projeto de gás natural da empresa, acabando por adiá-lo pelo menos até 2026.
Quando os maiores gigantes industriais da Europa são deixados entregues a eles mesmos para se defenderem na África, apesar dos apelos de ajuda aos seus países de origem porque a situação é politicamente problemática, não é surpreendente que outros estados nacionais concorrentes estejam optando por opções de segurança de perfil mais baixo com pegadas menores que permitam negação mais plausível do que grandes implantações formais.
E é nesse cenário que Macron espera enxertar sua força europeia como nova vitrine para a projeção que planeja, do poder econômico, militar e político europeu. Infelizmente, Macron vê o atual campo de batalha através de lente pouco confiável, distorcida pela vontade ideológica e política.*******
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