O PROJETO

Dan Pugliese para o Saker Latinoamérica – 08 de junho de 2022

Escravizar é manter pela força outro trabalhando em proveito próprio e em toda a animália somente existem duas espécies que escravizam seus iguais – a polyergus lucidus, um tipo de formiga e o homo sapiens. Sociedades organizadas, há milênios, dominam outras pela imposição da força física, pela força de recursos econômicos e pela supremacia cultural e são estes dois últimos elementos que distinguem enormemente os dois tipos de escravidão.

Na antiguidade os povos germanos, iberos, trácios, godos, gauleses eram dominados por Roma. Primeiro, por um exército profissional com uma doutrina de guerra superior que além de dominar oferecia proteção aos dominados contra a agressão de povos invasores. Segundo, por impostos cobrados diretamente, e o envio dos guerreiros derrotados como escravos para produzir as riquezas que fizeram a grandeza do império. Terceiro, domados para aceitar a política, o idioma, o modo de viver e os costumes romanos e principalmente pela cooptação das elites dominadas através da manutenção do status quo e privilégios. O gládio, o denário e os costumes se traduziam como – mores nostros accipe, tributa solve, in pace vive – expressão do poder militar, econômico e ideológico articulados como poder estratégico. Este sofisticado modelo propiciou durante séculos panis et circenses para o povo e um dolce far niente às elites romanas.

Muitas outras hegemonias substituíram Roma mas, a partir do século XVII, a hegemonia anglo-saxônica se impôs pelo Império Britânico e posteriormente por sua ex-colônia, os Estados Unidos da América. Continuou a ter base nas armas, na moeda e na ideologia mas outras camadas e interesses diversificados tornaram este poder complexo e sofisticado, vejamos.

O American War Power

Individualmente os EUA possui um aparato bélico imensamente destrutivo. Sou cauteloso em tratar de temas bélicos. Nestes assuntos é mais produtivo ler Martyanov e observar os Lusíadas, obra mater da língua portuguesa quando o poeta Camões canta que –

A disciplina militar prestante

Não se aprende, senhor, na fantasia

Sonhando, imaginando ou estudando

Senão vendo, tratando e pelejando

Mas, entretanto podemos observar que na sua história os EUA travaram em seu território as Guerras Anglo-Americanas, a Guerra de Secessão, o massacre das populações nativas, a invasão do Mexico e desde então, todos confrontos aconteceram fora das suas fronteiras. Na II Guerra Mundial, por exemplo, nenhuma bomba caiu no território continental dos EUA, protegido a leste e oeste por oceanos e ao norte e sul por países subalternos, resultando em uma doutrina militar voltada a guerrear fora do país, apoiada na capacidade industrial de produzir armamentos e capacidade logística de deslocar tropas e material bélico.

As doutrinas militares se adequam ao seu uso efetivo e o cenário da Guerra Fria exigia enfrentar ao mesmo tempo, duas potencias, em dois continentes diversos. Toda vez que tal doutrina foi aplicada em intervenções localizadas, a exemplo do Vietnam e Coreia, os conflitos foram desastrosamente encerrados indicando a necessidade de mudanças. Uma nova doutrina militar foi desenvolvida flexibilizando alguns princípios estabelecidos por Clausewitz no sentido de permitir aplicar seu conceito básico de guerra como política exercida por outros meios, estabelecendo três postulados. Primeiro, manter artefatos termonucleares necessários a MAD – Destruição Mutualmente Assegurada para conter a possibilidade de uma Guerra Total. Segundo, assegurar uma política hegemônica através intervenções militares globais apoiada em porta-aviões, forças especiais, drones, aviação tática articulada e imposição de shock and awe. Terceiro, como postulado básico e indispensável, manter condições de suprir, pelo tempo necessário, a totalidade dos recursos humanos, materiais e logísticos necessários aos dois primeiros postulados.

O American Money Power

A financeirização da economia se tornou expressiva na primeira década do século XX e decisiva com o dólar desvinculado do ouro passando a ser fiduciário na sua capacidade de intermediar os mercados. A moeda norte-americana passou a ter vínculos cada vez mais tênues com a economia produtiva e mais com o Federal Reserve – FED que gerencia o dólar através da taxa dos juros, impressoras de papel moeda e títulos garantidos pelo governo dos EUA. O comércio de ativos financeiros passou a ser o elemento gerador de valor e o setor produtor de riquezas se dirigiu para a ciência, desenvolvimento de novas tecnologias e marketing, a indústria de produção de artefatos de alta tecnologia, metalurgia essencial, setor aeroespacial, armamentista, construção civil e a produção e comercialização de comodities alimentares, energéticas e minerais. Os EUA iniciaram um processo de desindustrialização de bens de consumo, deixando esta atividade para países que conseguem produzir em larga escala e a preços reduzidos. Mantiveram segmentos da indústria pesada necessária a produção bélica, mas o dólar passou a ser elemento suficiente para regular trocas, comercializar ativos financeiros e receber royalties. Como capital virtualizado, uma ilusão confiável, o dólar passou a ser a base do poder financeiro necessário a submeter a economia mundial aos EUA.

O American Soft Power

Como necessidade psicossocial voltada a aumentar a autoestima da população para superar a crise econômica de 1929, a diversificada cultura dos EUA foi simplificada em um modelo ideológico que enaltecia o pais como referência de prosperidade, liberdade individual, liberalismo econômico e democracia política. Após o fim da II Guerra Mundial foi popularizado como o american way of life e com indústria bélica convertida para a produção de bens de consumo, foi difundido mundialmente como ideologia vencedora. Seu uso como mecanismo de poder foi nomeado por Joseph Samuel Nye como softpower[1]. A ideologia contida no softpower elege como medida de sucesso e felicidade humana a capacidade de consumir, inigualáveis a ciência e tecnológica norte-americana, indiscutível seu o modelo político e invencível seu poder militar.

Hollywood não somente produz para todas as mídias e exporta para o mundo uma cinematografia da violência imagética, mas também padrões comportamentais que simplificam a questão sexual em mera escolha identitária, globalizam as questões sociais norte-americanas, apresentam seu modelo político como padrão de democracia e suas agências de inteligência como oniscientes. As agências de notícias vendem conteúdo aos meios jornalísticos e repercutem os acontecimentos em narrativas que servem aos interesses dos EUA, fazendo da notícia fenômenos emocionais desprovidos de conteúdo. Foi fácil para os EUA cooptar boa parte das elites mundiais cultural e ideologicamente, absorvendo pelo poder econômico seus segmentos econômico-financeiros e mantendo governos sob proteção e vassalagem.

O American Strategic Power

O poder estratégico representa a soma mensurada por uma equação que relaciona poder econômico, poder militar e poder ideológico em um sistema articulado em que a diminuição de um poder implica no desgaste dos outros. Esta capacidade é permanentemente avaliada frente às ameaças ao interesse das elites norte-americanas, o seu denominado establishment. Decisões e ganhos são compartilhados com elites congêneres de outras nações que retribuem oferecendo sustentação internacional. Eventuais conflitos de interesses são ajustados por mecanismos de contrapartidas e a hegemonia dos EUA serve a todos para a apropriação de riquezas produzidas em todo mundo. Mas o conceito de poder estratégico se torna difuso se não identificarmos uma estrutura que gerencie e implemente suas ações e Ray McGovern denomina este organismo de MICIMATT (Military Industrial, Congressional, Intelligence, Media, Academy and Think Tanks). Uma estrutura articulada interesses que se constitui no verdadeiro Estado Profundo dos EUA.

O complexo Militar Industrial fomenta o desenvolvimento das tecnologias que servem a todos os segmentos da economia, no sentido militar fornece a máquina necessária a projeção de poder, no sentido econômico mantem a necessidade de conflitos para si vis pacem para bellum manter o comércio internacional de armas e contratos governamentais rentáveis. O complexo político Congressual arbitra os interesses conflitantes do establishment e disputando internamente a aceitação social, direciona o governo por sua visão estratégica do país. O Complexo Midiático de informação e entretenimento ressoa mundialmente a ideia da supremacia das armas e do modelo político-cultural norte-americano. A comunidade de Inteligência coleta e fornece informações sensível necessárias a tomada decisões em troca de recursos financeiros ilimitados. As Universidades desenvolvem conhecimentos e a mão de obra necessárias a manutenção do status quo remunerando reitores com bônus milionários. Os Think Tanks exploram o desenvolvimento de ideias, contingenciam imprevistos e a elaboram novas perspectivas em troca de cargos governamentais. O MICIMAT se articula coletivamente por compartilhamentos de papers, trabalhos acadêmicos, avaliações dos Think Tanks, grupos políticos congressuais, lobistas e desagua no gabinete da presidência dos EUA como Estado Profundo, o efetivo de poder nos EUA. Internacionalmente, eventos públicos propiciam o ambiente que dissimula reuniões de trabalho onde temas e direções estratégicas são articuladas e determinadas.

A hegemonia ameaçada

A segunda década do século XXI trouxe aos EUA ameaças e desafios. A recessão econômica mundial de 2010 desencadeada pela desvalorização do dólar imposta ao mundo para contornar em 2008 sua própria crise financeira, instalou uma erosão da confiança na moeda norte-americana. A Rússia se reconstruiu social e economicamente passando a ser um país geopoliticamente influente pela importância de sua indústria bélica. Seu complexo Industrial Militar estatizado desenvolveu sofisticadas tecnologias, meios inovadores de interferência digital, sistemas de mísseis hipersônicos, vetores praticamente indetectáveis de armas e principalmente uma doutrina militar que se demonstrou superior onde foi aplicada. Economicamente a Rússia conseguiu se vincular a Europa através de comodities energéticas vendidas a preços competitivos e alinhar objetivos econômicos de ex-repúblicas soviéticas.

O modelo econômico hibrido da China impulsionou sua economia a um nível superior e a dependência dos EUA da compra de bens de consumo produzidos pela indústria chinesa interligou circunstancialmente as duas economias. A China, buscando independência estrutural, passou a desenvolver projetos estratégicos de corredores logísticos conectando diretamente sua economia e o comercio de bens e comodities com países da Ásia, Europa, África e América do Sul. O desenvolvimento bélico e aeroespacial chinês, inclusive uma força naval dotada de porta-aviões modernos, começou a projetar poder no Oceano Pacífico, especialmente no estratégico Mar da China.

Em suma, as dificuldades para manter o dólar como moeda padrão de valor mundial garantidor de lucros financeiros, os resultados medíocres das intervenções militares no Iraque, Afeganistão e Síria, os avanços da tecnologia bélica russa, o desgaste ideológico na Ásia e no Oriente Médio e a crescente proeminência político-estratégica da China e Índia apontaram para a relativização do modelo político e cultural norte americano, desenharam um cenário futuro em que o desequilíbrio geométrico do poder estratégico dos EUA não lhe permitiria enfrentar antagonismos a sua hegemonia.

Por mais despreparado estupido e narcisista que seja o establishment norte-americano, o Deep State observou um panorama futuro extremamente desfavorável aos EUA, perdas, ganhos e planos de contingência foram desenhados. A opção de uma guerra econômica com a China traria imediatos e devastadores efeitos reversos, enfrentar militarmente a Rússia implicaria em riscos de consequências militares trágicas. Manter a hegemonia dos EUA exigia um projeto que evitasse choques frontais com a China e a Rússia e se desenvolvesse interconectado e articulado dinamicamente, através de ações permanentes de desgaste e erosão das adversidades.

Economicamente – manter o dólar sob controle absoluto do FED, drenando recursos necessários para manter as taxas de lucro financeiro da economia norte-americana impactando outras economias, principalmente a europeia, notadamente a alemã e inviabilizando a integração direta da economia chinesa com o mundo. Militarmente – aumentar exponencialmente os investimentos no poder militar e ao mesmo tempo desgastar o poder militar russo, o único que pode efetivamente enfrentar os EUA estrategicamente. Ideologicamente – sob seus próprios conceitos, voltar a representar a nação líder na defesa da liberdade, do desenvolvimento, do progresso, mantendo a paz não através de organismos internacionais, mas da ideia de uma convivência internacional em uma ordem baseadas em regras pelos EUA definidas.

Neste objetivo, governos democratas e republicanos implementaram ações diversificadas com custos e riscos desconcentrados – as Primaveras Árabes, a intervenção na Líbia, o Euromaidan, as sanções econômicos da Venezuela, uma diplomacia voltada a desfazer alianças de países na Ásia, África e BRICS, interferências políticas na América Latina, principalmente no Brasil, pressões econômicas sobre a Índia e África do Sul, fomento de conflitos étnicos desagregadores na Turquia e Ásia, ações para evitar ou restringir o projeto Nord Stream ocupando o lugar da Rússia na venda de comodities energéticas a Alemanha e movimentos destinados aumentar o percentual do orçamento militar dos países membros da OTAN para a compra de sistemas bélicos norte-americanos.

O projeto

Mas o acaso e a necessidade se apresentaram em 2020 quando os EUA foram forçados a manter sua máquina gráfica imprimindo dólares para minimizar as consequências da Pandemia de COVID, injetando liquidez nunca vista no mercado financeiro, abalando a estabilidade da sua moeda. A premência em distribuir os efeitos inflacionários por todas as economias do mundo precipitou uma ação que, embora desenhada, talvez não estivesse na linha do tempo e que denominaremos – o projeto – continente Europa, país Ucrânia. Suas bases já estavam implantadas desde o Euromaidan se complementando com a eleição de Zelensky como presidente. Faltava o pedido ucraniano de ingresso na OTAN e os movimentos militares iniciados em 2021 concentrando pessoal e equipamento para um ataque definitivo a região separatista do Donbass etnicamente russo. Ignorando advertências no sentido do respeito ao conceito de profundidade estratégica e aos limites da OTAN, o projeto objetivava forçar a Rússia a uma ação militar defensiva e desgastante na região separatista do Donbass, a uma guerra econômica pela imposição de sanções e a demonização midiática da figura do seu presidente isolando politicamente o país como contraventor da ordem baseadas em regras.

Evidentemente o impacto das sanções econômicas impostas a Rússia e o blowback resultante, era previsto e desejável pois levaria a economia europeia a se submeter aos interesses norte-americanos, principalmente ao destino do dólar e vincular a Europa, principalmente a Alemanha pelo fim do sistema Nord Stream às comodities energética norte americanas. A cereja do bolo – levar o leste europeu a entregar à Ucrânia o antigo arsenal soviético que queimado pelos russos, forçaria a compra de armamentos no padrão OTAN-EUA. Possivelmente os EUA não esperava a resposta militar antecipada da Rússia, nem a estratégia de objetivos múltiplos como o cerco a Kiev – a Rússia almoçou o inimigo antes de ser jantada por ele. Sua rápida e eficiente resposta militar deve ter surpreendido pela profundidade e pelo grau de destruição da infraestrutura militar ucraniana e certamente implicou em maiores custos. Se mais destruição – a reconstrução da Ucrânia é o sonho das empreiteiras. Se mais mortes – afinal, os mortos são todos ucranianos.

Não avançaremos nas consequências, todo conflito quando se instala ganha vida própria. Observemos apenas o insuspeito Jamie Dimon, do JP Morgan Chase, expressar sua preocupação com o FED estar se desfazendo de sua carteira de títulos, procedimento definido como aperto quantitativo (QT) ao lado do aumento das taxas de juros. «Nós nunca tivemos um QT assim, então você está olhando para algo sobre o qual você poderia escrever livros de história por 50 anos. Eles não têm escolha porque há muita liquidez no sistema. Eles precisam remover parte da liquidez para interromper a especulação, reduzir os preços das casas e coisas assim.»

Sonhos e pesadelos

A diversidade na longa história do planeta Terra, sempre foi o elemento indispensável a sobrevivência da vida e toda hegemonia reduz a diversidade. Se podemos sonhar, este sonho talvez seja o pesadelo das hegemonias – um mundo onde cada país contraste sua economia em um espaço global respeitoso, encerrando um milenar ciclo ascensões e quedas de poder, um planeta em que cada cultura se imponha não como elemento de domínio sobre as outras, mas com uma bela exposição do encanto e da riqueza das sociedades humana.

  1. «O conceito básico deste poder é a capacidade de influenciar os outros para que façam o que você quer. Basicamente, há três maneiras de se fazer isto: uma delas é ameaçá-los com porretes, a segunda é recompensá-los com cenouras e a terceira é atraí-los ou cooptá-los para que queiram o mesmo que você. Se você conseguir atrair os outros, de modo que queiram o que você quer, vai ter que gastar muito menos em cenouras e porretes»

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