F. William Engdahl – 31 de julho de 2023
Desde que a Rússia anunciou em 17 de julho que não renovaria seu acordo de Iniciativa de Grãos do Mar Negro intermediado pela Turquia e o Reino Unido, para permitir exportações de grãos da Ucrânia com passagem segura de Odessa e dois outros portos ucranianos do Mar Negro, a grande mídia ocidental afirma que a recusa criou fome global e aumento dos preços dos alimentos. Um ataque ucraniano na principal ponte que liga o continente da Rússia à Península da Crimeia, programado precisamente para o fim do acordo de grãos, provocou um ataque maciço de retaliação das forças russas, danificando gravemente Odessa e os portos de embarque de grãos próximos. Qual é, de fato, a situação do abastecimento de alimentos do “Celeiro da Europa”, como costumava ser chamada a Ucrânia?
Em 19 de julho, o Indian Express publicou a manchete: “O mundo enfrenta a perspectiva de ‘jogos vorazes’ enquanto a China acumula grãos e a Rússia se retira do acordo”. Eles declararam ainda: “Uma crise de fome pode estar reservada para o mundo no próximo ano devido à retirada da Rússia de um importante acordo de grãos alimentícios com a Ucrânia, o impacto do armazenamento de grãos alimentícios pela China, o maior consumidor mundial de arroz, alertou um analista”. O LA Times foi igualmente alarmista: “A Rússia interrompe o acordo que permite à Ucrânia exportar grãos, em um golpe para a segurança alimentar global”. CNN, Yahoo e outras mídias ocidentais publicaram histórias alarmistas semelhantes. Nenhum deles se preocupou em entrar em detalhes sobre a situação atual. É muito menos alarmante do que se afirma. O mundo pode enfrentar escassez de grãos em breve, mas não será por causa das ações da Rússia na Ucrânia.
Em 19 de julho, dois dias após o cancelamento, os preços mundiais de grãos futuros dispararam cerca de 8%, com a notícia de que a Rússia agora considerava qualquer navio que atracasse em Odessa ou em outros portos da Ucrânia como suspeito de transporte de armas e alvo de mísseis russos. Desde então, a mídia ocidental afirmou que a Rússia está causando fome mundial potencial ao encerrar o acordo de exportação de grãos com a Ucrânia. Quais são os fatos reais?
Por que a Rússia parou
O acordo Black Sea Grain Initiative [Iniciativa do grão do Mar Negro – nota d tradutor] foi assinado em julho de 2022, após acusações de que as ações militares da Rússia na Ucrânia estavam criando graves problemas de grãos para a África e outros países pobres. A Rússia concordou, com a participação da ONU, em um acordo no qual uma passagem segura pelo Mar Negro a partir de portos de grãos da Ucrânia, como Odessa, seria garantida pela Rússia em troca do levantamento das sanções do Ocidente à exportação de trigo e fertilizantes russos, incluindo o levantamento da proibição SWIFT para o maior banco estatal russo de exportação de grãos. Rússia, Ucrânia, Turkiye e as Nações Unidas chegaram a um acordo em 22 de julho de 2022 para fornecer um corredor marítimo humanitário para navios que transportam alimentos e fertilizantes dos portos ucranianos do Mar Negro. Em 18 de maio de 2023, a Rússia estendeu o acordo, chamado Black Sea Grain Initiative, por 60 dias, até 17 de julho.
Houve um grande problema. O Ocidente recusou-se a honrar a sua parte do acordo [Pela énesima vez confirmando que países do Ocidente Coletivo não honram acordos – nota do tradutor]. De acordo com o portal de notícias estatal russo Sputnik, “o acordo [dos grãos] é parte integrante de um um pacote de acordos. A segunda parte — o memorando Rússia-ONU, elaborado por três anos — prevê o desbloqueio das exportações russas de alimentos e fertilizantes, a reconexão do Banco Agrícola Russo ao SWIFT, a retomada do fornecimento de maquinário agrícola, peças de reposição e serviços, a restauração do oleoduto de amônia Togliatti-Odessa (que a Ucrânia sabotou em junho -nós sabotamos [EUA] ) e uma série de outras medidas. Moscou diz que esta parte do pacote de acordos ainda não foi implementada”.
Em 17 de julho, dia em que a Rússia anunciou que não renovaria o acordo, a Ucrânia, auxiliada pela inteligência dos EUA e do Reino Unido, lançou um ataque mortal à única ponte que liga a Crimeia, onde fica a frota naval russa do Mar Negro, ao continente russo. A pista de veículos foi seriamente danificada por um drone naval ucraniano e dois civis foram mortos, com um terceiro em coma. Moscou lançou represálias mortais nas noites seguintes com grandes ataques a bomba que destruíram grande parte da infraestrutura portuária de Odessa e outros portos próximos do Mar Negro.
Terminais de grãos e infraestrutura portuária na Ucrânia foram alvo de ataques russos na noite de 18 e 19 de julho, causando grandes danos que levarão pelo menos um ano para serem totalmente reparados, segundo o Ministério de Política Agrária e Alimentação da Ucrânia. Uma parte significativa da infraestrutura do porto de Chornomorsk foi destruída e 60.000 toneladas de grãos também foram destruídas. Infraestrutura de grãos de negociantes e transportadores internacionais e ucranianos, como a Luxemburg-Ukrainian Kernel, Viterra, uma parte do enorme grupo suíço Glencore, o maior trader de commodities do mundo, e o Grupo francês CMA CGM foram danificados.
Moscou não apenas acusa que a ONU e o Ocidente se recusaram a honrar a sua do acordo. O Ocidente também estava usando os navios protegidos para entregar armas da OTAN e outras fontes à Ucrânia para alimentar a guerra, dificilmente um ato humanitário.
Trigo para a UE?
Enquanto o Ocidente afirmava que o bloqueio russo ao tráfego de navios de Odessa e outros portos da Ucrânia estava criando um desastre humanitário na África e em outros países pobres, o trigo, assim como o milho ucraniano e o óleo de girassol, não estava indo para os países mais pobres do Sul. Muito pelo contrário, até que uma grande revolta de agricultores na Polônia, Bulgária, Romênia e outros países da UE forçou Bruxelas a proibir temporariamente a importação do grão barato da Ucrânia. Segundo a ONU, a UE foi a principal beneficiária do Acordo de Grãos do Mar Negro: 38% de todos os grãos da Ucrânia foram enviados para a Europa, apesar do fato de a UE ser um exportador líquido de trigo. Outros 30% foram para Turquia e 24% para a China. Apenas 2% foram para nações do Sul Global.
Em abril, enfrentando uma grande revolta de agricultores contra uma enxurrada de importações baratas de grãos ucranianos, Polônia, Eslováquia, Hungria e Bulgária introduziram uma proibição temporária de produtos agrícolas da Ucrânia depois de fracassar em suas repetidas exigências de que a UE de Bruxelas impusesse uma proibição geral e permitisse que o grão fosse para a África e outros estados de acordo com o acordo original.
Alguns fatos concretos do USDA
Embora a maioria das estatísticas do governo dos EUA hoje não valham muito, devido a décadas de manipulações políticas, as do Departamento de Agricultura dos EUA para a produção global de trigo são geralmente consideradas bastante precisas, pois os cartéis mundiais de grãos dependem dos dados para precificar o grão. Em seu relatório de 12 de julho, pouco antes de encerrar a renovação russa do Mar Negro, um relatório do USDA, intitulado Grain: World Markets and Trade, observou o seguinte: “À medida que o ano comercial de 2022/23 chega ao fim, a Rússia solidificou sua posição como o maior exportador de trigo do mundo”. Eles observaram: “Estima-se que a Rússia exporte 45,5 milhões de toneladas em 2022/23. Seus principais destinos são o Oriente Médio, Norte da África e Ásia Central… Prevê-se que as exportações de trigo da Rússia atinjam outro recorde de 47,5 milhões de toneladas em 2023/24.”
O relatório do USDA continua, sobre a Ucrânia, onde a luta afetou suas melhores regiões produtoras de grãos, “a área plantada da Ucrânia caiu significativamente como resultado da guerra com a Rússia. A produção em 2023/24 está prevista em 17,5 milhões de toneladas, a menor safra em mais de uma década. Com a oferta drasticamente reduzida e a incerteza em torno do futuro da Iniciativa de Grãos do Mar Negro, as exportações de trigo da Ucrânia para 2023/24 estão previstas para 10,5 milhões de toneladas, uma queda de mais de 40% em relação à média pré-guerra. Enquanto a Iniciativa de Grãos do Mar Negro ajudava a Ucrânia a exportar 16,8 milhões de toneladas de trigo em 2022/23, 39% do trigo saiu do corredor de grãos (principalmente por meio de remessas terrestres para a Europa Oriental).”
Se então subtrairmos os 6,6 milhões de toneladas de trigo que foram para a UE por rotas terrestres, cerca de 10,2 milhões de toneladas de grãos ucranianos não estão disponíveis para os mercados mundiais através do Mar Negro. No entanto, isso equivale quase exatamente ao volume de trigo ucraniano que inundou os mercados locais da UE no ano passado.
Rússia promete grãos para a África
Em 27 de julho, na Segunda Cúpula Anual Rússia-África em São Petersburgo, o presidente russo Putin prometeu que a Rússia forneceria grãos gratuitamente parapaíses africanos selecionados que recebiam grãos da Ucrânia: “Estaremos prontos para fornecer Burkina Faso, Zimbábue, Mali, Somália, República Centro-Africana e Eritreia com 25-50.000 toneladas de grãos gratuitos cada um nos próximos 3-4 meses.”
A OTAN e a grande mídia ocidental estão manipulando uma narrativa unilateral para culpar a Rússia por algo que suas próprias ações corruptas provocaram. A suspensão russa do acordo de grãos, que eles declararam pronto para reabrir desde que haja garantias de que a parte russa será cumprida, não está criando uma catástrofe global. O que é muito mais perigoso para o mundo são as ações deliberadas da administração da UE e Biden para impor cortes severos na produção mundial de fertilizantes sob sua chamada Agenda de Carbono Verde Zero.
Fonte: http://www.williamengdahl.com/gr31July2023.php
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