5/10/2020, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation
O evento definidor dessa era pós-Covid (e vença quem vencer, nas eleições dos EUA), provavelmente será o desacoplamento dos Estados Unidos, da China – desacoplamento de tecnologia das telecomunicações (do 5G, da Huawei); desacoplamento da mídia chinesa e plataformas de bate-papo; a eliminação de toda a tecnologia chinesa, do ecossistema de microchips dos EUA; desconexão da China, da Internet, das lojas de aplicativos, dos cabos submarinos; e desacoplamento do acesso a sistemas dos EUA de armazenamento de dados baseados em nuvem – sob o programa Clean Network (“Rede Limpa”) de Pompeo. Aí está a primeira barragem de artilharia pesada, para uma guerra de trincheiras prolongada que vem aí, imunda de lama.
Não é Guerra Fria, mas reversão a uma era anterior que, então, terminou em guerra quente – quando os formuladores de políticas (e os mercados) notoriamente falharam, ao avaliar o perigo crescente. Esse perigo acumulara-se durante o hiato, modorrenta sesta de verão, que durou, do assassinato do arquiduque Franz Ferdinand no final de junho de 1914, até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, cinco semanas depois.
Os diplomatas, claro, compreendiam que duas alianças fortemente armadas já estavam em rota que poderia levar à colisão, mas durante vários anos ouviram-se ruídos de sabres em agitação, e o fracasso de jamais chegar ao auge induziu a sensação de que o status quo duraria indefinidamente. A opinião, então, foi influenciada pelo best-seller de Norman Angell em 1909, The Great Illusion [port. A Grande Ilusão, 2002, PDF, ed. Imprensa Oficial do Estado de SP]. Ali se argumentava que a guerra ter-se-ia tornado impossível, porque o comércio global e os fluxos de capital estavam intimamente interligados.
O que porém não compreenderam naquele momento prévio foi que as circunstâncias de meados de 1914 (o momento de Sarajevo) pareciam muito propícias fosse para que a Alemanha aspirasse ao império, fosse para que a Grã-Bretanha se convencesse de que poderia aniquilar totalmente a Alemanha. Assim como alguns em Washington convenceram-se de que, hoje, as circunstâncias poderiam levar para qualquer lado.
Trump et al. parecem convencidos de que os EUA poderiam usar a própria força financeira e comercial – enquanto os EUA ainda predominam –, para esmagar a ascensão da China, conter a Rússia e submeter a Europa, forçando os europeus à vassalagem em tecnologia.
A guerra dos Bálcãs no início do século 20 bloqueou a Áustria-Hungria, volúvel aliada da Alemanha, numa luta maior, da Alemanha contra a Rússia. Hoje, Pompeo tem esperança de conseguir prender a (volúvel) Europa, nas teias do serviço (dos EUA) de conter a Rússia. As ameaças contra o gasoduto Ramo Norte (Nordstream) e o golpe Navalny são apenas algumas das ‘alavancas’ de Pompeo.
O ataque de Pompeo com sua ‘Rede Limpa’ é o ‘momento Sarajevo’ de hoje. Os formuladores de políticas e os mercados permanecem blasés (como em 1914, quando os mercados só em agosto despertaram para os riscos, quando a guerra já eclodia). No final de janeiro de 2021, é muito provável que os EUA já estejam paralisados numa crise constitucional intratável, possivelmente violenta – e em guerra tecnológica total com a China. Àquela altura, Europa e EUA provavelmente já estarão em recessão total, uma vez que o Coronavírus avance furioso sobre o inverno.
O desacoplamento no campo da tecnologia não é explicitamente militar, mas tampouco é neutro, em relação ao sistema.
Quem (o quê) suga nossos data e examina-os mediante algoritmos, para saber o que pensamos, o que sentimos e fazemos, tem precisamente, o poder necessário para moldar nossa sociedade, social e politicamente. A questão aqui é que nossos data – se permanecermos na esfera digital dos EUA – estão prestes a ser usados e moldados de modo opositivo, em desacordo. E com os tambores da guerra batendo, vem inevitavelmente a convocação ao comprometimento público total.
É óbvio que, com o projeto ‘Fortress America’ Limpa, Pompeo serve-se da tese de Antonio Gramsci, de que a esfera cultural é a arena mais produtiva da luta política, mas inverte-lhe o conteúdo político. Em vez de a cultura ser o local da ação revolucionária contra uma elite (como Gramsci concebeu), as plataformas sociais dos EUA, ‘saneadas’ de rivais não ocidentais, tornam-se precisamente o local onde o sistema se reafirma – neutralizando a possibilidade de resistência política, via suas armas mais poderosas: a grande plataforma algorítmica e a demonização – pelas mídias sociais –, da China (dita ‘praga chinesa’) e da Rússia (dita ‘assassina de dissidentes’).
Esses podem ser os meios pelos quais uma Europa amplamente adversa à guerra pode voltar-se contra China e Rússia, em nome de uma suposta promoção dos valores liberais (europeus) ditos “universais”.
Mas há outro desacoplamento igualmente significativo, que vem abrindo caminho à frente:
“A Rússia tem observado com crescente inquietação que a Alemanha está em outra transição histórica”, escreve o embaixador Bhadrakumar, “que mantém paralelos perturbadores com a transição de Bismarck no cenário europeu pré-1ª Guerra Mundial (…).Para ilustrar a mudança que está varrendo a ideologia alemã, em entrevista ao semanário Die Zeit em julho, “a ministra da Defesa alemã, Annegret Kramp-Karrenbauer (que também é presidente em exercício do partido governante União Democrata Cristã), enfatizou que é “mais que hora para discutir” o modo como a Alemanha deve posicionar-se no mundo no futuro”.
Karrenbauer disse também, prossegue Bhadrakumar, que “se espera que a Alemanha mostre liderança, não só como potência econômica”, mas também em relação à “defesa coletiva; trata-se de missões internacionais, trata-se de expor uma visão estratégica do mundo, e em última instância trata-se de saber se queremos moldar ativamente a ordem global.” E o embaixador conclui: “a voz alemã não é mais a voz do pacifismo” (loc.cit., traduzido).
Kramp-Karrenbauer disse que “a reivindicação da atual liderança russa” de defender seus interesses “de maneira muito agressiva” deve ser “confrontada com uma posição clara: estamos bem fortificados e, em caso de dúvida, prontos para nos defender. Vemos o que a Rússia está fazendo e não vamos permitir que a liderança russa se safe”.
“Com tudo isso se vê que” – resume Bhadrakumar –“75 anos após o fim da 2ª Guerra Mundial, o imperialismo alemão novamente se agita – [com suas elites] mais uma vez, contra a Rússia. Está de volta à agenda alemã a militarização abrangente da sociedade. (…) Berlim desempenha papel importante na ofensiva ocidental contra a Rússia e lidera o grupo de combate da OTAN na Lituânia. Alemanha e EUA também estão trabalhando juntos nos movimentos da OTAN contra a Rússia.
A Alemanha é a área de teste mais importante para unidades da OTAN posicionadas na fronteira do Leste Europeu com a Rússia. E a mídia alemã está inundada de opiniões exigindo que o compromisso da OTAN seja agora finalmente cumprido, e que os gastos militares aumentem para 2% do produto interno bruto. (Atualmente estão em 1,38% do PIB, embora recentemente tenham aumentado maciçamente os gastos militares e estejam em consideração projetos de armamento de vários dígitos de bilhões.)”
O bem relacionado chefe do escritório da Carnegie em Moscou, Dmitri Trenin, escreve em direção semelhante:
“Berlim está encerrando a era iniciada por Gorbachev, de relação de confiança e amizade com Moscou. A Rússia, por sua vez, não espera mais nada da Alemanha e, portanto, não se sente obrigada a levar em conta sua opinião ou interesses (…). Só podemos imaginar como Putin reagiu ao anúncio de Merkel de que Navalny havia sido envenenado com o agente nervoso Novichok. Como reagiria a uma punhalada nas costas – é a reação mais branda que me vem à cabeça”.
Trenin escreve: “Trinta anos atrás, a reunificação alemã parecia ser não só reconciliação histórica, mas também garantia de relações de amizade futuras e cooperação estreita entre dois povos e Estados. Agora, também isso já é passado (…). A Rússia também está embarcando em um novo capítulo. A situação está, portanto, tornando-se mais simples e mais cheia de riscos: o Kremlin provavelmente não tomará nenhuma ação drástica imediata, mas a partir de agora verá a Alemanha como controlada pelos Estados Unidos. [E] quanto aos Estados Unidos, a Rússia há muito está ali engajada numa guerra híbrida de soma zero, na qual, a cada dia que passa, são menos os fatores inibidores restantes”.
Os políticos alemães da geração de Merkel são ferrenhamente ‘atlanticistas’, mas só ‘à moda liberal’– como a própria Merkel. Ou seja, estão empenhados em defender o ‘sistema de valores liberal universal’. Isso põe Merkel, é claro, em desacordo com Trump. Mas também, paradoxalmente, torna a liderança alemã muito mais suscetível à manipulação pelos EUA, contra China e Rússia (que já são hoje questões totalmente bipartidarizadas em Washington). Afinal, como observou Samuel Huntington, “o universalismo é a ideologia [útil] do Ocidente para enfrentar outras culturas”. Sombras de 1914, quando a Áustria-Hungria estava envolvida, de forma semelhante, em luta maior contra a Rússia!
Não é difícil ver a conclusão a que chegaram as elites alemãs: contam com uma vitória de Biden. Norbert Röttgen, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Bundestag e candidato à liderança da União Democrata Cristã, pôs as coisas nos seguintes termos “Se Joe Biden vencer, espero que seu governo volte a uma parceria baseada no pensamento racional e na cooperação”. Quer dizer: as euroelites contam com a volta ao ‘business de sempre’. Mas não acontecerá: o ‘velho normal’ está muito longe de nós.
O Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, falou essa semana sobre como a UE pode alcançar ‘autonomia estratégica’:
A UE “quer ser mais forte, mais autônoma e mais firme”. A UE, continuou Michel, está prestes a desenvolver um “modelo aberto com maior consciência da nossa força, com mais realismo, e talvez com menos ingenuidade. Temos fé nas virtudes de uma economia livre e aberta, nunca no protecionismo (…). Mas a partir de agora, vamos fazer cumprir melhor as condições de concorrência, num mercado aberto a quem respeite seus padrões”.
É?! É mesmo?! OK, pode até parecer ótimo para estados-peixe-pequeno serem tratados como vassalos em busca de uma abertura, pela graça Império, para seus industriais. Mas não funcionará para a tecnologia, a Nova Economia, os EUA ou o eixo China-Rússia. (Não importam a hipocrisia, a mentira segundo a qual ‘igualdade de condições’ não seria modalidade de protecionismo pró-UE).
Os EUA estão puxando para si os patamares de comando da tecnologia, e seus padrões estão levando a tecnologia “de volta para casa”. A China continuará a ser expulsa da esfera digital ocidental – para o mais longe que os EUA consigam.
Wolfgang Munchau informa que a coalizão alemã acaba de aprovar a proibição de facto da Huawei. Seu objetivo é matar a Huawei pela aplicação com força total da burocracia alemã. E a Rússia está-se desligando da Europa, para trabalhar mais estreitamente com a China (graças a Merkel e seus companheiros).
Mas … Não pode ser. A Europa não tem substituto para a Huawei. As redes 5G representam efetivamente o sistema nervoso que conecta as dimensões política, estratégica, militar, informativa, econômica, financeira, industrial e de infraestrutura em nível pessoal, local, nacional, internacional e transnacional. As redes 5G, junto com os avanços exponenciais em poder de computação e avanços em IA, são a força transformadora da Nova Economia.
O ponto aqui é a latência: a capacidade para integrar diferentes fluxos de dados ao mesmo tempo e praticamente sem atraso. É a chave não apenas para o estilo de vida cotidiano, mas também para os sistemas de defesa.
Aprendizagem Maquínica [Máquinas que Aprendem] (ing. Machine Learning) é subconjunto específico de Inteligência Artificial (AI), para treinar máquinas. Serve para treinar a IA para aprender e adaptar-se. E, sem a latência das decisões humanas, a eficiência pode aparecer na vanguarda. Visão Maquínica [Máquinas que Veem]: de carros autônomos e drones a robôs e muitas outras das tecnologias de ponta de hoje, todos elas compartilham uma dependência da visão de máquina. Significa que essas máquinas devem ser capazes de “ver” para realizar suas tarefas no mundo físico.
Em todos esses processos, 5G é tecnologia indispensável para reduzir a latência. Os EUA não têm 5G. A China lidera. EUA lideram em Big Data e AI. Sim, EUA lideram em semicondutores ou chips, mas… até quando?
A China simplesmente não se deixará expulsar do mercado global de semicondutores. Especialistas em TI, da Rússia, dos países da ASEAN e da Huawei estão explicando, como relata Pepe Escobar, que o que se poderia descrever como uma limitação da física quântica ainda impede que o avanço continue, de chips de 5nm (bilionésimo de um metro) para chips de 3nm.
Significa que as próximas descobertas podem vir de outros materiais e técnicas de semicondutores. Assim sendo, a China, nesse aspecto, está praticamente no mesmo nível de pesquisa de Taiwan, Coréia do Sul e Japão. Os avanços da China envolveram a mudança crucial, do silício para o carbono. A pesquisa chinesa está totalmente investida nessa mudança e está quase pronta para transpor seu trabalho de laboratório, para a produção industrial.
E em direção a quem, então, volta-se a China, para a cooperação tecnológica? Não em direção da Alemanha.
Como observa David Goldman do Asia Times,
“o impacto cumulativo de séries de sanções sobre ela empurrou a Rússia para uma aliança estratégica com a China, incluindo estreita cooperação em telecomunicações por 5G e P&D de semicondutores. A economia da Rússia pode ser do tamanho da Itália, mas tem cérebro muito maior que o corpo: a Rússia forma mais engenheiros por ano, que os EUA, e muito bem treinados”.
E então, de volta ao nosso ‘momento Sarajevo’: Pompeo puxou o gatilho contra o arquiduque. A dinâmica foi posta em movimento. Ainda assim, continuamos presos no interregno, à espera dos EUA – enquanto os líderes europeus contam com a vitória de Biden… e com a “normalidade” restaurada.
No início do século XX, a tentativa da Grã-Bretanha de destruir as linhas de abastecimento global (para preservar as próprias); e de negar à Alemanha suas ligações externas, efetivamente canalizou as ressurgentes ambições alemãs para o leste, pela planície europeia e, em última instância, para uma investida contra a Rússia. Tudo terminou com guerra e depressão econômica.
Hoje, os EUA exigem que a Europa separe-se de Rússia e China, mas os EUA entraram em crise interna – e nem no melhor dos mundo poderia substituir o eixo asiático, na maioria das esferas de tecnologia.
É húbris, arrogância dos europeus, imaginar que possam construir uma Nova Economia em posição de rivalidade tecnológica com as Duas Grandes, sem cooperação e sem estratégia diplomática.
Quanto à Europa, nada há de promissor em tentar ficar de fora da presente ‘guerra por procuração’, como um Grand Panjandrum, esperando que pretendentes-tech cheguem a ela. Isso não é estratégia: isso é receita de Depressão.
Não é uma grande perspectiva para os povos europeus lutar contra quimeras do império europeu, penosamente obrigados a administrar a própria vida em tempos difíceis de coronavírus.
Impossível não ver que a política europeia em nível nacional é toda doméstica, quase de bairro (abertura de escolas, restrições ao contato físico e economias que só encolhem), enquanto a distante Bruxelas fantasia sobre a construção de um ‘império’ europeu mais forte e autônomo.*******
* Epígrafe acrescentada pelos tradutores.
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