O descontentamento da Índia com a SCO

MK Bhadrakumar – 6 de julho de 2023

A reunião de cúpula virtual da Organização de Cooperação de Xangai em 4 de julho deu as boas-vindas ao Irã como seu décimo membro

Estar fora de sincronia com a vida contemporânea em qualquer lugar e a qualquer momento torna-se de fato uma situação desesperadora. Essa foi a trágica situação do escritor austríaco do período entre guerras, Stefan Zweig, que certa vez escreveu: “É preciso estar convencido para convencer, ter entusiasmo para estimular os outros” — aludindo à crescente onda do fascismo na Europa nas décadas de 20 e 30 que culminaram na 2ª Guerra Mundial.

Zweig não conseguiu conciliar sua contradição interior, que acabou por levá-lo a tirar a própria vida no longínquo Brasil, escapando por pouco da caçada nazista à burguesia judaica em Viena à qual pertencia sua rica família, após entregar ao editor suas grandes memórias O mundo de ontem, que é considerado até hoje como o livro mais evocativo sobre o Império Habsburgo.

A tragédia de Zweig não deveria ser o destino da Índia, que foge das complexidades da atual situação mundial. É por isso que a importância da reunião de cúpula virtual da Organização de Cooperação de Xangai [SCO], sob a coordenação da Índia, na terça-feira, torna-se altamente perturbadora. Para onde está indo a política de SCO da Índia?

O discurso de abertura pelo primeiro-ministro Narendra Modi no evento da SCO não conseguiu convencer, muito menos estimular os outros países membros – especialmente a Rússia e a China que inventaram o “espírito de Xangai” há quase três décadas, que se tornou cinco anos depois, em 2001, a diretriz para a cooperação da SCO.

A parte mais triste é que Modi parece desconhecer o espírito de Xangai, embora seu governo tenha vindo fortuitamente para colher a iniciativa de política externa do governo anterior de Manmohan Singh de buscar a adesão à SCO para a Índia. Os discursos de Modi nas plataformas multilaterais já adquiriram uma característica familiar – direcionamento farpas por meio de insinuações ao Paquistão e à China. Eles encantam os lobbies anti-muçulmanos e sinofóbicos na Índia, mas não terão utilidade para o coletivo SCO.

A moralidade é um tema complexo no mundo da diplomacia, mas é preciso lidar com suas nuances. Bons julgamentos morais realmente envolvem discernir quando exceções precisam ser feitas em consideração a um resultado duradouro mais amplo. A insistência da Índia sobre o terrorismo “em todas as suas manifestações” afetou o entendimento da comunidade mundial sobre a disputa da Caxemira, conforme refletido nas declarações da OIC [Organização da cooperação islâmica – nota do tradutor], ou na articulação ocasional de funcionários da ONU?

A Iniciativa do Cinturão e Rota da China parou devido à questão de soberania egoísta que a Índia usa como metáfora para embelezar sua narrativa sobre a disputa de fronteira no Himalaia? A resposta é um retumbante “não”, novamente. De fato, os países membros da SCO estão adotando grandes projetos de conectividade que contornam a Índia devido às suas intratáveis ​​diferenças e disputas com a China e o Paquistão.

SCO e a ordem mundial

A cúpula da SCO 2023 ocorreu no contexto de acontecimentos importantes na segurança internacional. Indiscutivelmente, a historicidade da cúpula da SCO deste ano se deve em grande parte aos desenvolvimentos de época que se desenrolam hoje e que determinarão em grande parte a natureza da ordem mundial no século XXI. Os presidentes da Rússia e da China, em seus discursos, focalizaram esse leitmotiv da situação internacional contemporânea e analisaram o papel da SCO em um mundo em transição.

Para citar o presidente russo Discurso de Vladimir Putin,

“Acreditamos que é importante que todos os membros da associação [SCO] compartilhem suas abordagens para a situação na política global, segurança, esferas sociais e econômicas. Ao mesmo tempo, nossa organização está fortemente empenhada em criar uma ordem mundial verdadeiramente justa e multipolar, uma ordem baseada no direito internacional e em princípios comuns de cooperação mutuamente respeitosa entre Estados soberanos com o papel central e coordenador das Nações Unidas. Mais importante ainda, esta é a base construtiva subjacente à atividade prática do SCO…”

Em seu discurso, o presidente chinês Xi Jinping também chamou a oposição ao hegemonismo e política de poder, tornando o sistema de governança global mais justo e equitativo e promovendo a modernização da sociedade humana por meio de esforços conjuntos e constantes para promover direitos iguais, oportunidades iguais e regras justas para todos. Afirmando que a tendência histórica de paz, desenvolvimento e cooperação ganha-ganha é imparável, Xi pediu esforços para manter a paz regional e salvaguardar a segurança comum e lembrou à sua audiência que manter a paz e a segurança na região da SCO é uma responsabilidade comum.

Tanto Putin quanto Xi se alongaram bastante sobre o assunto. Eles parecem habitar o mesmo planeta, o Planeta Terra. Em contraste, a declaração indiana descartou esse tópico de maneira bastante superficial e concisa em duas sentenças. Modi disse:

“Os tempos atuais marcam uma fase crucial nos assuntos globais. Em um mundo cercado por conflitos, tensões e pandemias; crises de alimentos, combustíveis e fertilizantes é um desafio significativo para todas as nações”. Ponto!

É simples assim! A Índia tem alguma opinião sobre essa “fase crucial nos assuntos globais”? Em vez disso, o discurso de Modi fez um desvio, vagando sem rumo por Vênus e Marte – Startups e Inovação; Medicina tradicional; Empoderamento Juvenil; Inclusão Digital; Herança Budista Compartilhada; Combustíveis Emergentes; Descarbonização no Sector dos Transportes; Infraestrutura pública digital e assim por diante – o que, ironicamente, teria sido o negócio da moribunda SAARC.

Isso está se tornando hilário, pois a Índia finge que nem sabe que o SCO é essencialmente uma plataforma de segurança. Na realidade, Delhi parece estar cada vez mais frustrada com o fato de que mais e mais países do sul da Ásia (por exemplo, Maldivas, Bangladesh, Nepal, Paquistão) estão descobrindo que a SCO é uma alternativa à SAARC [Associação do Sul da Ásia para a Cooperação Regional – nota do tradutor], que a Índia está sujeitando a uma morte lenta.

Da mesma forma, os países da Ásia Ocidental (Bahrein, Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Catar, Egito e Türkiye, etc.) estão se reunindo ansiosamente na SCO em busca de alguma ou qualquer forma de garantia com o agrupamento. Delhi não pode interromper esses processos e, ao mesmo tempo, também está angustiada com o fato de a China ser a beneficiária e não tem certeza de como a recém-descoberta seriedade no multilateralismo na extensa vizinhança da Índia pode realmente corroer sua autoprojeção, com incentivo ocidental, como o potência regional número um em sua região e ao redor.

Fundamentalmente, a Índia está correndo com a lebre e caçando com os cães. É, claro, um jogo arriscado e perigoso que só pode agravar o isolamento regional da Índia. Certamente, é escolha do próprio governo de Modi colocar todos os ovos na cesta americana quando se trata da segurança da região do Oceano Índico. Por outro lado, a Índia também deve saber que esta é uma tendência contrária na política regional, quando os estados regionais estão se movendo de forma esmagadora para a órbita da SCO e até mesmo os aliados mais próximos dos EUA na região do Golfo estão sacudindo o papel hegemônico do Ocidente na segurança regional e buscando abrigo naquele condomínio russo-chinês único.

Na verdade, este é um trauma autoprovocado para a Índia, uma vez que deve ser atribuído exclusivamente à agenda incompreensível do governo Modi de amarrar o país ao estábulo americano, totalmente contrário à tendência mundial do Sul Global se livrar do jugo ocidental finalmente e decisivamente.

No final das contas, portanto, não haverá quem aceite as questões retóricas levantadas na declaração do primeiro-ministro indiano na cúpula da SCO:

  • “Devemos ponderar coletivamente se somos capazes, como organização, de atender às aspirações e expectativas de nosso povo?”
  • “Estamos preparados para enfrentar os desafios modernos?”
  • “A SCO está evoluindo para uma organização totalmente preparada para o futuro?”

É uma conclusão precipitada que nenhum dos países membros da SCO – ou aspirantes a estados regionais – estará minimamente interessado em seguir o exemplo da Índia.

SCO reúne o Sul Global

O descontentamento da Índia com a SCO não pode mais ser escondido. De olho no presidente Biden, esta é uma consequência natural da guinada do governo Modi em direção ao campo americano. No entanto, a parte mais lamentável é que a abordagem indiferente da Índia em relação à SCO coincide com os planos dos EUA de inserir a OTAN como o fornecedor número um de segurança na Ásia. Involuntariamente ou não, a conduta da Índia efetivamente enfraquece a solidariedade da SCO quando ela é mais necessária e, por sua vez, de fato subserve a chamada estratégia Indo-Pacífico dos EUA.

No entanto, o duplo discurso indiano está fadado ao fracasso. A escrita já está na parede com os principais estados da Ásia Ocidental se movendo em conjunto na mesma direção que o Irã tomou. Assim, quer a Índia goste ou não, a atração gravitacional dentro da SCO já está voltada para o uso mais amplo de moedas nacionais para acordos mútuos e implementação do roteiro da SCO para a transição para moedas nacionais no comércio mútuo; medidas coordenadas para remover barreiras regulatórias; estabelecimento da infra-estrutura de pagamento necessária; e o objetivo final de criar um sistema financeiro independente.

Mais importante, apesar da atitude morna da Índia, os países da SCO priorizarão a consideração de todo o portfólio substancial de solicitações de outros estados que desejam cooperar com eles no formato regional de uma forma ou de outra. Mais uma vez, enquanto a Índia minimiza a proposta russa de “transformar a estrutura antiterrorista regional da SCO em um centro universal que seria responsável por responder a toda a gama de ameaças à segurança” – dada a obsessão de Delhi em colocar o Paquistão entre parênteses com o terrorismo. Mas Putin destacou que o assunto “requer a abordagem mais atenta e construtiva”.

Putin quer dizer isso. Isso coloca a Índia em um dilema. Pois a paixão da Índia pela luta contra o terrorismo começa e termina com o Paquistão. O governo Modi não está nem um pouco interessado nos usos inovadores do terrorismo como ferramenta geopolítica em várias partes do mundo – o último caso sendo os ataques de drones no Dia da Independência dos EUA em Moscou e na região de Moscou, que, de acordo com o Ministério das Relações Exteriores da Rússia,

“teria sido impossível sem o apoio fornecido ao regime de Kiev pelos Estados Unidos e seus aliados da OTAN, que continuam a despejar armas na Ucrânia, incluindo drones, treinar operadores de drones e fornecer informações de inteligência necessárias para tais crimes, incluindo imagens de satélite civis e militares.”

A Rússia e a China têm uma preocupação especial em aumentar a resiliência da SCO para combater a estratégia de contenção dos EUA contra eles. É de se prever, portanto, que na arena internacional, a SCO e os BRICS estão preparados para serem os dois principais veículos para promover as aspirações do Sul Global.

Obviamente, a China e a Rússia assumirão papéis de liderança na forja da unidade do Sul Global. Veja as iniciativas de paz e reconciliação da China na Ásia Ocidental ou os esforços russos na África e na América Latina ou no trabalho da OPEP+. O ponto é que a China e a Rússia não estão historicamente manchadas como potências coloniais. Por outro lado, ao agarrar-se às caudas americanas, a Índia está apenas enfraquecendo suas próprias pretensões como líder autoproclamado do Sul Global. Quanto mais cedo a Índia aceitar essa realidade geopolítica, melhor.

Enquanto a Índia permanecer como membro da SCO, é provável que a tendência seja a resistência de outros países membros em reduzir o órgão regional para ventilar suas garras contra o Paquistão e a China e viciar o funcionamento da organização. Assim, quando se trata do núcleo do território da SCO, a Ásia Central, foi criado recentemente um novo formato China-Ásia Central no nível dos chefes de estado (com apoio da Rússia), que se reunirá semestralmente – a região é altamente vulnerável às revoluções coloridas patrocinadas pelos EUA e à agenda de mudança de regime. É improvável que Moscou ou Pequim tenham confiado em Delhi nesse importante desenvolvimento da geopolítica da Eurásia.

Novamente, uma tendência semelhante pode ser esperada em relação à aceleração da BRI no cenário da SCO, com a decisão de estender o Corredor Econômico China-Paquistão ao Afeganistão, que na próxima etapa conectará a Ásia Central. Da mesma forma, é inteiramente concebível que a nova aliança de gás da Ásia Central em formação por iniciativa da Rússia acabe conectando o Paquistão também, por gasoduto, aos enormes campos de gás russos.

Parece estar ganhando força nas capitais da SCO a ideia de que a Índia receberá em algum momento a mensagem de que não vale a pena ser o cachorro na manjedoura. A SCO está determinada a não enfrentar o trágico destino da SAARC.


Fonte: https://www.indianpunchline.com/indias-discontent-with-the-sco/

2 Comments

  1. Gilmar Mendes said:

    Sugiro que “Xangai” se escreva “Shangai” para que exista consonância com a sigla SCO.

    16 July, 2023
    Reply
  2. Ersim said:

    India tiene una mentalidad muy eurocentrista colonial. Se cree dueño del planeta Tierra. Es un reflejo de su pasado colonial bajo el anglosajón. Fue hace poco, relativamente, 1947, que se hizo independiente, después de alrededor de 2 siglos de colonialismo anglosajón. Le falta muchísimo para descolonizar la mentalidad hindú.

    8 July, 2023
    Reply

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