Na lúcida contramão do hype sobre a usina nuclear de Zaporizhia

Lady Bhārani  – 06 de julho de 2023

Em mais uma análise madura e comedida, Andrei Martyanov – corroborando algo que Quantum Bird já nos havia comentado – afirma que sim, seria possível, mas muito pouco provável a iminente false flag ucraniana na maior usina nuclear da Europa, em Zaporizhia. 

A Operação Militar Especial (OME) russa na antiga Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro do ano passado, já alterou e continua alterando de forma significativa as peças do tabuleiro geopolítico internacional. É bom lembrar que a antiga Ucrânia luta agora, em sua tão alardeada e inócua contraofensiva[1], valendo-se de seu quinto “exército”[2], tendo sido todos os anteriores (formados às pencas inclusive por mercenários de várias nacionalidades) praticamente dizimados pela Rússia.

A essa altura, fica cada vez mais claro que tanto atentados terroristas ambientais – como a destruição dos Nord Stream 1 e 2, o bombardeamento do gasoduto de amônia (fertilizante) russo-ucraniano e o rompimento da barragem da hidrelétrica de Khakovka – bem como a vigência do 11º pacote de sanções da UE contra a Federação Russa, o envio de armamentos bélicos via OTAN – sejam HIMARs, javelins ou tanques Leopards, sejam mísseis Storm Shadow ou Patriots, sejam caças F-16s – enfim, nenhuma dessas promessas belicistas de facto imprimiu alguma mudança significativa ou sequer desafiou a supremacia da artilharia na linha de contato e no controle do espaço aéreo russos na extensa linha do front.

Ao contrário, um após o outro, gradualmente, todos esses armamentos subscreveram a si mesmos seu atestado de defasagem tecnológica (até vergonhosa, em vários casos) frente ao aparato mais avançado empregado pelos russos. Essa estratégia persistente escolhida pela OTAN, portanto, de tentar armar a antiga Ucrânia até os dentes tampouco causou fissuras na economia e sociedade russas. E muito menos acionou conflitos civis internos, como os que temos visto na França.

Nesse sentido, ao longo de toda a OME, os EUA e a UE já “enviaram” para a “antiga Ucrânia” mais de 80 bilhões de dólares. E, novamente, apesar do envio dessa copiosa quantia, um pífio resultado de avanços factuais, efetivos, das forças ucranianas no campo de batalha tem se repetido constatemente. No entanto, felizmente, parece que alguns setores da sociedade europeia iniciam uma tímida demonstração de estarem fartos da guerra. Após a aprovação por parte da EU sobre uma ajuda para a antiga Ucrânia de mais 50 bilhões de euros, entre 2024-27, o Primeiro-Ministro húngaro, Viktor Orban, há pouco disse que seu país só enviará mais subsídios para o conflito se a antiga Ucrânia provar para onde destinou todos os cerca de 70 bilhões de euros em fundos já recebidos da comunidade europeia.

Então, devido a essas e outras razões, tanto os governos dos EUA quanto da UE e antiga Ucrânia encontram-se nesse momento em uma bela saia justa, cerzida de próprio cunho. Em outras palavras, todos eles precisam rapidamente justificar para o mundo algum tipo de avanço, em alguma frente, dentro do campo da OME russa. Por ora, sem terem para onde mais recorrer, todas as apostas voltam-se para a criação de novas false flags (bandeiras falsas), dando prosseguimento ao covil de atrocidades e crimes contra a humanidade ou atentados terroristas à população civil e os atribuindo ao governo russo, à luz daqueles citados ao início do texto.

Em meio a esse contexto, a mídia e os canais de Telegram têm sinalizado uma possível bandeira falsa a respeito da usina nuclear de Zaporizhia, envolvendo um derramamento de contaminação radioativa, provavelmente engatilhada de hoje até à próxima cúpula da OTAN, em Vilnius, entre 11 e 12 de julho.

Acerca disso, o analista independente Andrei Martyanov[3] é categórico ao afirmar que:

Eles [os meios de comunicação] falam sobre a possibilidade de uma provocação ucraniana contra esta usina nuclear [de Zaporizhia]. É possível? É sim, possível. No entanto, novamente, as pessoas não entendem: mesmo que produzam algum tipo de bandeira falsa, com a CIA e o MI6 envolvidos nisso, a OTAN não possui forças.

[A OTAN] Não tem recursos para fazer nada sobre [absolutamente] nada e realmente como você vai lutar contra o Exército que agora escreve o novo livro sobre a Guerra [do século XXI] e possui cerca de 500.000 pessoas na reserva, ficando atrás das linhas, sendo já treinadas e armadas ao máximo com os melhores sistemas de armas do mundo?

E a Rússia pode imediatamente, se necessário for, mobilizar outros dois milhões e meio de pessoas? Apenas isso já diz muito sobre essa situação, não diz?[4]

Em outras palavras, o que Martyanov tenta nos dizer, – corroborando inclusive nosso editor Quantum Bird em conversa particular, no início dessa semana – é que a Federação Russa domina o campo de batalha devido à sua superioridade tática, estratégica e tecnológica. Isso se traduz, entre outras coisas, em um aparato de aquisição de inteligência competente, que tem conseguido identificar e desmobilizar bandeiras falsas. Infelizmente não todas, mas muito provavelmente esta também.

Ainda segundo a análise de Quantum Bird, outro provável indício de que esta provocação ucraniana já foi debelada pela inteligência russa pode ser encontrado nas recentes declarações do Vice-presidente do Conselho de Segurança russo, Dmitry Medvedev:

Vou observar uma coisa que políticos de todos os tipos não gostam de admitir: um apocalipse nuclear não é apenas possível, mas também bastante provável.

Por quê?

Há pelo menos duas razões.

Primeira. O mundo está [hoje] em um confronto muito pior do que durante a crise do Caribe [dos mísseis de Cuba, em 1962] porque nossos oponentes decidiram derrotar a maior potência nuclear de todas – a Rússia. Eles são, sem dúvida, completos idiotas, mas é assim que as coisas são.

E a segunda razão é bastante prosaica – armas nucleares já foram usadas, e todo mundo sabe por quem e onde, o que significa que não existe tabu!

Medvedev aponta, portanto, para a ignorância e falta de lucidez das elites governantes atlanticistas, sobretudo a norte-americana, que já lançou duas bombas atômicas em solo japonês porque optou por valorizar infinitamente mais se mostrar ao mundo em sua superioridade belicista – do que em considerar os milhões de vidas ceifadas e as gerações japonesas futuras que herdaram as consequências diretas e indiretas de tal decisão. Para Quantum Bird, declarações dentro desse script e timing, vindas do alto escalão russo, não são fortuitas: seria como se os russos, após desmobilizada a bandeira falsa, agora deixassem na mídia um registro lastreado do fato.

Contudo, como Andrei Martyanov nos explica ad nauseam: bem longe lá se vai a supremacia norte-americana no campo das guerras, da economia e tecnologia, para citar apenas algumas áreas hoje em defasagem ou com problemas muito sérios. Em quase todos os seus vídeos, Martyanov, além de ter escrito três livros a respeito, com o quarto a caminho, reforça sobre a absoluta incompetência cognitiva que assola as elites, o governo e as forças armadas norte-americanas. Segundo o analista, elas não possuem a mínima noção do que seja uma guerra real no atual campo de batalha de uma guerra no século XXI, enfatizando que, para os russos, o atual conflito ainda não se trata de uma guerra, mas de uma operação militar, em escala consideravelmente inferior.

Desse modo, em um recorte aproximado dos últimos 30 anos, a Federação Russa soergueu-se dos escombros legados pela dissolução da União Soviética, e, graças, entre outros motivos, às constantes sanções ocidentais, prosseguiu e despontou como uma das maiores potências autárquias do mundo. Ou seja, a Rússia foi galgando uma economia cada vez mais independente e autossuficiente em seus principais setores, o de tecnologia militar, inclusive criando os imbatíveis mísseis hiperssônicos. Enquanto no mesmo período, os EUA optaram por acelerar a desindustrialização e a financeirização de sua economia, tornando-se uma nação majoritariamente de prestação de serviços. Ainda à luz desse viés, o analista norte-americano Larry Johnson endossa o atual estado de colapso – que podemos já, infelizmente, considerar civilizacional – que gradualmente tem se instalado e assola vários setores da nação norte-americana, ao comentar que:

Hoje, os Estados Unidos são o único país existente no mundo com um histórico de quarenta anos de desventuras militares imperiais e o desperdício de trilhões de dólares. Em vez de tornar o mundo mais seguro, os Estados Unidos semearam o caos. Os Estados Unidos têm mais prisioneiros políticos definhando na prisão do que a Rússia e a liberdade de expressão, especialmente para os cristãos, é atacada com crescente ferocidade por uma mídia corporativa ansiosa e cúmplice do governo dos EUA. A inteligência dos EUA e as organizações militares são uma bagunça total e identitária. Os líderes militares dos EUA estão empenhados em promover a degeneração transgênera, falhando rotineiramente em cumprir as metas de recrutamento e destruindo a base da “uniformidade” que é uma característica essencial de exércitos bem-sucedidos.[5]

Nesse sentido, ainda também para Martyanov, a principal diferença entre os Estados Unidos e a Rússia reside no fato de que o primeiro, ao longo de toda a sua história contemporânea, nunca lutou pela sobrevivência de si mesmo, defendendo a pátria em solo estado-unidense. Algo que os russos recorrentemente foram forçados a fazer, desde antes de Bonaparte, passando por Hitler e, agora, contra a OTAN.

Em suma, mediante o exposto, novas bandeiras falsas, ou as tentativas de, infelizmente, continuarão a fazer parte do repertório ucraniano, abalizado pelas elites atlanticistas, dentro do teatro da OME russa. Uma dica sólida para que consigamos manter o mínimo de sanidade ao acompanharmos e testemunharmos o conflito europeu, que vem galgando e assegurando cada vez mais espaço para um novo mundo multipolar pode ser encontrada em boas análises de analistas independentes como ponto de partida para as nossas próprias. Nem sempre será fácil e, como tudo o que importa na vida, devemos fazer nosso dever de casa, mas esse é o tipo de conhecimento que não apenas liberta, como também traz alento. Boas reflexões[6]!

  1. A contraofensiva ucraniana iniciou-se em 04 de junho de 2023. Andrei Martyanov nos lembra que uma contraofensiva necessita atingir seus resultados dentro dos primeiros quinze dias de seu lançamento, caso contrário, ela é qualificada como fracassada.

  2. Essa informação nos foi confirmada por Pepe Escobar, em sua palestra Como está nascendo o Mundo Multipolar, no último 25 de junho, em Porto Alegre, durante sua passagem pelo Brasil.

  3. Essa transcrição de Andrei Martyanov encontra-se a partir da minutagem 31’ em seu vídeo Radakin Delusions, Nato copes, de 05 de julho de 2023.

  4. Segue a transcrição original mencionada da análise de Andrei Martyanov: “they talk about the possibility of Ukrainian provocation against this nuclear power plant. Is it possible? Certainly possible, but, again, those people do not understand even if they produce some kind of false flag, which is false like it’s CIA and MI6 will be involved in this. NATO has no forces. It has no resources to do anything about anything and, really, how you’re gonna fight against the Army right now, which writes the new book on Warfare, and it has about 500 000 people in reserve standing, staying behind the lines, being already trained and armed to the hilt with the best weapon systems in the world. Try that and of course, Russia can all immediately, if need be, mobilise another two and a half million people, so that speaks volumes, doesn’t it?”

  5. Este artigo de Larry Johnson: A descida de Burns, chefe da CIA, ao delírio, de 04 de julho, foi traduzido por nossa comunidade.

  6. Muito obrigada Andrei Martyanov, Larry Johnson e Quantum Bird!

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