Mudança de paradigma na Palestina – Parte 4

Thierry Meyssan (Rede Voltaire) – 31 de outubro de 2023 – [Gentilmente revisado e enviado por ZT]

A manutenção do domínio ocidental sobrepõe-se agora à vida dos Palestinos

Estamos assistindo, impotentes, ao massacre da população de Gaza. Já são 8.000 mortos! As potências ocidentais abandonaram os civis à própria sorte. Tudo o que lhes interessa agora é manter seu domínio sobre o mundo. O que está em jogo em Gaza não é mais a questão palestina, mas a ordem internacional. Após a derrota da OTAN na Ucrânia, a derrota de Israel em Gaza marcaria o fim de um mundo.
Nunca, nos últimos três quartos de século, estivemos tão perto de um confronto geral.

Em 25 de Outubro, o Presidente russo, Vladimir Putin, presidiu a um grande exercício de guerra nuclear desde o seu bunker.

O massacre

A Força Aérea Israelense continua a bombardear a cidade de Gaza em retaliação pelo ataque da Resistência palestina unida (salvo a Fatah) de 7 de Outubro. As bombas caem sobre toda a cidade matando os habitantes aos milhares. Segundo uma sondagem [1] realizada em Junho de 2022 pelo Palestinian Center for Policy and Survey Research, apenas 34% dos Palestinos votariam pelo Hamas contra 31% pela Fatah se tivessem lugar eleições legislativas. Quase dois terços das vítimas dos bombardeios israelenses são pois hostis ao Hamas. Em simultâneo, são 71% a apoiar a luta armada contra a ocupação israelense. Deste ponto de vista, há 56% a preferir Ismail Haniyeh (Hamas) a Mahmud Abbas (Fatah).

Portanto, Israel não pode pretender que desta maneira visa erradicar o Hamas, mas sim eliminar a população de Gaza que lhe resiste.

A expulsão dos habitantes de Gaza

Três quartos do Exército israelense continuam estacionados em frente do Muro de Separação, esperando a ordem de o atravessar para acabar com os sobreviventes dos bombardeios. Oficialmente, os Estados Unidos esperam evitar um genocídio incitando Israel à moderação. Na realidade, Washington sabe que esta operação não era inicialmente dirigida contra o Hamas, mas visava resolver a questão palestina expulsando toda a sua população. Assim, o Departamento de Estado propôs ao Egito anular toda a sua dívida externa (135 mil milhões de dólares) se ele abrigasse e naturalizasse os 2,2 milhões de Gazenses.

De momento, o Marechal Al-Sissi recusa. O Cairo atém-se à Resolução da Liga Árabe que, após a Guerra dos Seis Dias, afirmou que deslocar os Palestinos e naturalizá-los não era nada mais do que uma manobra, falsamente compassiva, para liquidar a causa palestina.

Leia: “A Nota do Ministério de Inteligência Israelense recomendando a expulsão da população de Gaza para o Egito, Rede Voltaire, 1 de Novembro de 2023.

Durante a sua audição pelo Knesset, o General Yitzhak Brik traçou um balanço catastrófico das capacidades do Exército israelense.

A fraqueza do Exército israelense

Desde o começo desta guerra, ou melhor, deste episódio de uma longa guerra, os israelenses percebem a atual fraqueza das suas Forças Armadas. Desde 2015, a imprensa especializada evoca a decadência do Tsahal (FDI-ndT), mas só em 2018 é que a classe política tomou consciência disso. À época, o Knesset (Parlamento) ouviu o General Yitzhak Brik. Ele explicou aos atordoados deputados que os soldados tinham perdido a ideia de defender o país, que os oficiais não hesitavam em mentir para se protegerem em caso de problemas e que os generais faziam carreiras políticas e não militares. Cinco anos mais tarde, não apenas nada mudou, como tudo piorou.
A imprensa israelense volta por estes dias às declarações do General Yitzhak Brik segundo quem os israelenses seriam forçados a defender-se por si próprios, sem poder esperar socorro das suas tropas, quando de uma próxima guerra. Foi precisamente o que aconteceu em 7 de Outubro.
O Primeiro-Ministro foi consultar o General, em 22 de Outubro, mas nenhum comunicado, nem declaração, permite saber o que os dois homens conversaram. No máximo sabe-se que o General Brik exigiu a demissão do Diretor da Inteligência Militar (Aman) e do Chefe do Comando Sul.

E não é tudo. Pela primeira vez, os adversários da colonização dispõem de armas eficazes. O estudo dos vídeos do Hamas é claro. A organização dispõe de lança-mísseis antitanque FGM-148 Javelin (fabricados nos EUA), NLAW (de fabricação sueca) e de lança-foguetes AT4 (de fabricação sueca ou estadunidense). Quanto ao Hezbollah libanês, ele dispõe de um estoque impressionante de mísseis de médio alcance que, com o treino dos seus homens, faz dele um poder militar eficiente muito superior ao dos Estados árabes.

As armas do Hamas são norte-americanas ou suecas. Elas foram comprados na Ucrânia através de oficiais corruptos. As do Hezbollah provêm do Irão, via Iraque e Síria. Ninguém sabe quanto é que o Hamas possui.

O Secretário-Geral do Hezbolla, Hassan Nasrallah, recebeu o numero dois do Hamas, Saleh el-Arouri, e o chefe da Jihad islâmica, Ziad el-Nakhala.

Para já, o conflito está circunscrito à Faixa de Gaza. Os Palestinos da Cisjordânia e de Israel não se revoltaram. Os refugiados da Jordânia e do Líbano também não. O Hezbollah está constrangido pela Resolução 1701 que os seus ministros assinaram no fim da guerra israelo-libanesa de 2006 [2]. Ele não pode atravessar o rio Litani e entrar no território israelense sem violar a sua palavra, o que, ao contrário dos Ocidentais, conta para ele. Este compromisso não se manterá se Israel atacar o Líbano. Por enquanto, portanto, o Hezbollah mantêm-se de prontidão e destruiu uma a uma as câmaras de vigilância e os radares israelenses ao longo da fronteira. Desta maneira, ele poderá apanhar o Exército israelense de surpresa se decidir entrar na guerra.

Os Ocidentais escolheram sacrificar os habitantes de Gaza

Como não ficar estupefato que os Estados Unidos, a França e o Reino Unido tenham vetado uma proposta de cessar-fogo humanitário imediato? Como não interpretar isto como um desejo de prolongar o conflito, iniciado há já 76 anos? Deste ponto de vista, a análise do Presidente Recep Tayyip Erdoğan é válida. Perante o seu grupo parlamentar, ele declarou : “Aqueles que causam o problema, é claro, não querem uma solução”, fazendo alusão à maneira como o Império Francês e o Império Britânico criaram a questão palestina sem solução. “Quanto mais a crise se agrava, mais ela se enraiza, melhor é para os seus interesses (…) Eles querem que a questão israelo-palestina se agrave… Eles querem que a paz e a estabilidade nunca cheguem a esta região… Eles querem que a sombra da guerra nunca largue o Mediterrâneo Oriental… Eles querem que os povos que aí vivem desde há milhares de anos não beneficiem dos recursos destas terras… Eles querem que o seu sistema de exploração baseado no sangue, na perseguição e nas lágrimas continue… É a isso que nós nos opomos. Nós rejeitamos este sistema de exploração pelo qual todas os povos da região, muçulmanos, cristãos e judeus, pagam o preço”.

A Primeira-Ministro francesa defendeu, em 23 de Outubro, uma posição equilibrada sobre o conflito israelo-palestiniano. No entanto, ela tentou mascarar o veto francês à proposta de cessar-fogo humanitário imediato. Ao fazê-lo, ela mostrou que já não tinha mão na situação. A sequência dos acontecimentos escapa ao seu governo.

É vergonhoso que a Primeira-Ministra francesa, Élisabeth Borne, falando na tribuna da Assembleia Nacional, acusasse a propaganda russa de imputar “erroneamente” à França a oposição de um veto a uma proposta [russa] para um cessar-fogo humanitário imediato… citando a proposta brasileira, que ela [pelo contrário] votou. Com efeito, houve duas propostas diferentes : a russa, limitando-se à estrita neutralidade que impõe a ação humanitária, apresentada durante uma sessão à porta fechada no dia 17 de Outubro, e a brasileira, condenando o Hamas pelos seus atos de barbárie, apresentada durante uma sessão pública em 25 de Outubro.

A França não utilizava o seu veto desde 1976 (para prosseguir a sua colonização de Mayotte), mas desta vez utilizou-o tal como reconheceu o seu representante permanente no Conselho de Segurança, Nicolas de Rivière. A resolução brasileira era inaplicável porque condenava uma das partes. A França sabia bem disso ao votá-la.

O fim do Ocidente

Mas há outra explicação. Primeiro, os Estados Unidos pediram a Israel que demonstrasse moderação. Em seguida, enviaram duas forças-tarefa navais a Israel e montaram uma ponte aérea com 97 aeronaves de transporte para entregar uma grande quantidade de munições a Israel (mas também à Jordânia e ao Chipre). Por fim, bombardearam milícias pró-iranianas no Iraque e na Síria. Washington tem avaliado as possíveis consequências de uma derrota israelense em Gaza após a derrota da OTAN na Ucrânia. O Ocidente não será mais temido. Todas as regras impostas fora do Direito Internacional seriam imediatamente questionadas. Todos os povos que o Ocidente manteve na pobreza por séculos, e até mesmo explorou descaradamente, se revoltariam. Seria uma mudança completa de paradigma.

O ressentimento acumulado ao longo de décadas sugere que a selvageria dessa revolta, assim como a do Hamas, será incontrolável. As principais potências ocidentais decidiram, portanto, fechar os olhos para o massacre em andamento. Elas estão cientes de que estão permitindo e facilitando o genocídio, mas têm ainda mais medo de serem responsabilizadas por seus crimes passados e presentes.

Portanto, o que está em jogo em Gaza não é mais a questão palestina, mas a supremacia ocidental, o domínio das regras ocidentais e os benefícios indevidos que os ocidentais obtêm delas.

As tensões nunca estiveram tão altas desde a Segunda Guerra Mundial. A Rússia está ciente disso e está se preparando para uma possível guerra nuclear. Desde o início da guerra em Gaza, ela realizou dois exercícios militares de grande escala, incluindo o disparo de mísseis balísticos intercontinentais. Isso não é mais um jogo. O país simulou a morte de um terço de sua própria população e a transformação de parte de seu território em uma zona proibida como resultado de explosões atômicas.


[1] « Public Opinion Poll No (88) », Palestinian Center for Policy and Survey Research, June, 2022.

[2] L’Effroyable imposture 2. Manipulations et Fake News, Thierry Meyssan, Demi-Lune (2007). L’ouvrage est entièrement consacré à la guerre de 2006.

Original em https://www.voltairenet.org/article219922.html

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