Lições da Guerra da Coreia

MK Bhadrakumar- 30 de julho de 2023

O submarino de ataque rápido da classe Los Angeles USS Springfield em Busan para uma visita ao porto, Coreia do Sul, 22 de julho de 2023

A psicologia do esquecimento e o que faz memória falhar são tópicos tentadores na vida de indivíduos ou nações. A psicologia cognitiva gerou muitas teorias sobre isso. A teoria principal, a teoria do esquecimento motivado, é a mais encantadora porque é fácil de se relacionar com ela: as pessoas esquecem as coisas no fluxo impiedoso da vida porque ou não querem lembrar, ou então porque memórias dolorosas e perturbadoras são, assim, feitas inconscientes e muito difíceis de recuperar, embora ainda permaneçam armazenados no sótão da mente.

Os Estados Unidos e a Guerra da Coréia (25 de junho de 1950 – 27 de julho de 1953) são um exemplo disso. Dito de forma sucinta, a guerra terminou em um momento em que um “impasse” prevaleceu, o que na realidade significava que a derrota estava diante das forças da ONU – como aconteceu no Afeganistão. Na crônica das guerras americanas, a Guerra da Coréia, portanto, tornou-se a “guerra esquecida”, sujeita ao esquecimento e guardada no sótão da consciência coletiva.

No entanto, tochas estão sendo mantidas no sótão, já que o 70º aniversário da assinatura do Acordo de Armistício Coreano se aproximou furtivamente na última quinta-feira (29 de julho de 2023). Uma razão principal para a curiosidade deve ser a relevância contemporânea da Guerra da Coréia, que também foi uma guerra por procuração da Guerra Fria, como a guerra em curso dos EUA na Ucrânia contra a Rússia, que também está em um impasse na medida em que a OTAN não conseguiu vencer a guerra, e outra derrota humilhante, mas muito pior do que no Afeganistão, provavelmente está reservada.

É a China que tem o maior interesse em ressuscitar as verdadeiras lições da Guerra da Coréia. O que perturba Pequim não é apenas que a elite de Washington não apenas extraiu algumas lições erradas, mas também “todas relativas à China, referindo-se especificamente à questão de Taiwan”.

A teoria revisionista mais notável foi avançada por ninguém menos que Mike Gallagher, o ex-oficial de inteligência da Marinha dos EUA de 40 anos que atualmente é o presidente do Comitê Seleto da Câmara sobre a Competição Estratégica entre os Estados Unidos e o Partido Comunista Chinês, e é um crítico incisivo das políticas da China na Colina [Washington DC – nota do tradutor] e também um político ambicioso que já é uma voz importante do partido republicano em todos os setores – que já buscou uma legislação para proibir agências federais, como os departamentos de Saúde e Serviços Humanos, Assuntos de Veteranos e Defesa contra a compra de drogas fabricadas na China; e, atualmente defende que o presidente Biden dê caças F-16 à Ucrânia.

A dura verdade sobre as guerras nucleares

O que surpreendeu a China, talvez, foi que na última quarta-feira, às vésperas do 70º aniversário do armistício coreano, a revista Foreign Affairs publicou um artigo de Gallagher postulando três “lições” que a Guerra da Coreia ensinou aos EUA – primeiro, “Washington não deve negligenciar a dissuasão e a prontidão” e deve estar sempre preparado para lutar e aumentar as capacidades militares; segundo, “política e combate estão profundamente interligados”; e, em terceiro lugar, uma vez que os combates irrompam em qualquer lugar com envolvimento dos EUA, “autocontrole excessivo pode convidar a novas agressões”.

Sem dúvida, essas “lições” aprendidas no Beltway são manifestamente direcionadas à China, e o momento do ensaio de Gallagher em um importante órgão de diplomacia pública do círculo de política externa dos EUA não é coincidência.

De fato, a China é hoje muito mais capaz de infligir dor e danos a adversários que pisoteiam seus interesses de segurança e soberania nacional. O fato é que os EUA pagaram um alto preço por sua intervenção em uma guerra por procuração na Península Coreana, baseada em premissas falhas – para começar, interpretando erroneamente o conflito como o primeiro passo em um plano soviético sob Stalin para usar forças militares para alcançar o domínio global. (Cerca de 36.000 militares dos EUA foram mortos na Coréia, de um total de cerca de 40.000 mortes para as forças da ONU combinadas.)

Da mesma forma, os EUA fizeram o exagero catastrófico de ignorar os avisos de Pequim como blefe e estimaram alegremente que a China não interviria se as forças dos EUA cruzassem o paralelo 38. O general Douglas MacArthur, comandante dos EUA, garantiu ao presidente Harry Truman que a China não entraria na guerra. (Mas Mao já havia decidido intervir depois de concluir que Pequim não toleraria os desafios dos EUA à sua credibilidade regional!)

Da mesma forma, invadir a Coreia do Norte foi um erro incrível que transformou uma guerra de três meses em uma de três anos.

No entanto, um detalhe historicamente controverso ainda permanece sem conclusão definitiva – que os EUA brincaram com a ideia de usar armas atômicas contra a Coréia do Norte (e possivelmente a China também) com o objetivo de mudar o equilíbrio militar geral a seu favor e forçá-los à mesa de negociações. De fato, tanto o presidente Truman quanto seu sucessor Dwight Eisenhower continuaram a postular que tal opção estava sobre a mesa, pois já havia surgido no final do verão de 1950 que os mocinhos perderiam a guerra.

É claro que, no evento, um ataque atômico dos EUA nunca se materializou, apesar do fato de que as capacidades atômicas soviéticas ainda eram extremamente limitadas em comparação com as americanas; o monopólio nuclear de Washington estava praticamente intacto e os EUA continuavam sendo a única nação capaz de entregar uma bomba atômica para um alvo distante.

Olhando para trás no final do dia, embora tenham sido tomadas medidas para garantir que uma opção atômica estivesse disponível – por meio de uma série de ameaças, fintas e até mesmo treinos – permanece discutível o quão séria era a liderança americana.

O ponto principal é que, na Guerra da Coréia, os EUA enfrentaram a dura verdade de que a ameaça de um ataque nuclear não seria suficiente para vencer a guerra. E a guerra nuclear da Coréia simplesmente desapareceu. Essa é uma verdade histórica que dificilmente será esquecida hoje como uma “lição” quando os EUA enfrentarem não uma, mas três potências nucleares no nordeste da Ásia e todas as três com capacidade de dissuasão.

É por isso que a visita de um submarino nuclear americano com mísseis balísticos a Busan, na Coreia do Sul, em 22 de julho, a primeira visita de um submarino americano desde 1981, que alguns congressistas dos EUA interpretam não apenas como um alerta à Coreia do Norte, mas também como um impedimento contra China, só pode ser vista como bravata vazia.

Diante de um cenário histórico tão complexo, um Editorial do Global Times rebateu na quarta-feira: “A China decidiu resistir à agressão dos EUA e ajudar a Coréia do Norte durante a Guerra da Coréia, e repetidamente enviou avisos severos de que, se as forças dos EUA cruzassem o paralelo 38, a China não ficaria inativa. No entanto, os EUA não levaram a sério, pensando que a China estava apenas fazendo ameaças vazias e não agiria. Como resultado, eles foram pegos de surpresa quando encontraram o Exército de Voluntários do Povo Chinês no campo de batalha. Hoje, um grande equívoco semelhante em relação à China está ocorrendo em Washington. A maior diferença entre agora e a era da Guerra da Coréia é que a força da China aumentou muito. As consequências de infringir os interesses de segurança e a soberania nacional da China serão, sem dúvida, muito mais severas… No entanto, deve ficar claro que, se houver outro erro de julgamento estratégico desta vez, o preço que será pagocertamente será muito maior do que há 70 anos”.

O aforismo frequentemente atribuído a Mark Twain vem à mente — ‘A história não se repete, mas muitas vezes rima’. Certamente, a história da Guerra da Coréia rima com a guerra na Ucrânia. Embora os detalhes, circunstâncias ou configurações possam ter mudado, eventos semelhantes foram essencialmente reciclados.

Ucrânia rima com Guerra da Coreia

A diferença fundamental é que, embora nem mesmo os piores detratores dos EUA alegassem que Washington precipitou a guerra da Coréia, quando se trata da Ucrânia, mesmo os melhores apologistas da narrativa ocidental encontam um prazer vicário que os EUA montaram uma armadilha para ursos ao sua obstinação em não negociar as legítimas preocupações de segurança da Rússia e brilhantemente transformaram a Ucrânia em um estado anti-russo. Com efeito, os EUA criaram o cenário para uma guerra por procuração – ao contrário da Coréia, onde sua intervenção direta no conflito intercoreano e a escalada beligerante de MacArthur a transformaram em uma guerra prolongada que durou 3 anos.

A grande questão é se foi a chantagem nuclear dos EUA que estimulou as negociações de paz que resultaram no armistício de julho de 1953. Deixe os fatos falarem por si. Durante a primavera de 1953, Eisenhower desenvolveu planos para ataques nucleares à China e os transmitiu aos comunistas para intimidá-los a aceitar termos favoráveis ​​para um armistício. Mao se sentiu intimidado?

A China (e a Rússia) não saberiam que os temerosos aliados dos EUA na Europa Ocidental haviam registrado forte oposição ao uso de armas nucleares na Coréia – e, além disso, que as preocupações com a retirada dos aliados do teatro coreano, deixando os americanos em um limbo tornaram difícil bombardear a China e a Coreia do Norte? A saliência é que em qualquer guerra futura, uma potência nuclear estaria mais propensa a usar a bomba atômica do que uma querendo manter o apoio dos aliados. Os russos não saberiam disso na Ucrânia? (Ver Chantagem Nuclear e o Fim da Guerra da Coreia por Edward Friedman, Modern China, janeiro de 1975)

De qualquer forma, houve uma mudança de paradigma hoje. A Rússia hoje tem superioridade nuclear sobre os EUA e seus aliados. Ao contrário da Guerra da Coréia, a Coréia do Norte e a China agora possuem armas nucleares e mísseis para lançá-los. Mas uma diferença fundamental nessa mudança de paradigma também é que nem Pyongyang nem Pequim desenvolveram capacidades de armas nucleares como parte de planos para iniciar uma guerra, mas, em vez disso, para impedir uma tentativa dos EUA de destruí-los. O mesmo vale para a Rússia na Ucrânia.


Fonte: https://www.indianpunchline.com/lessons-from-the-korean-war/

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