26/9/2019, The Saker (de Unz Review, de The Saker Blog)
Funcionário iraniano anunciou que o navio-tanque Stena Impero que viaja sob bandeira do Reino Unido, estava livre para partir. Lembram-se do Stena Impero? É o navio-tanque que o Corpo de Guardas Revolucionários do Irã deteve, depois que o Império cometeu ato de pirataria em águas internacionais [ing. high seas] e abordou o navio-tanque iraniano Grace 1. Col Cassad postou bom resumo dessa infobatalha, golpe a golpe (aqui, a trad. automática ru.-port., revista):
· Grã-Bretanha, instigada pelos EUA, toma o navio-tanque iraniano Grace 1 e exige do Irã garantias de que não viaja para a Síria.
· Irã, em resposta, captura o navio-tanque britânico Stena Impero e diz que não se retira até que os britânicos devolvam o Grace 1. Navios britânicos que guardavam navios mercantes no Estreito de Ormuz foram alertados de que seriam destruídos se interferissem nas ações do Corpo de Guardas Revolucionários do Irã.
· Depois de dois meses, os britânicos libertam oficialmente o Grace 1, renomeado como Adrian Darya 1. O navio-tanque hasteou bandeira iraniana e trocou a tripulação.
· O governo britânico diz que o navio-tanque foi libertado sob promessa do Irã de que não descarregará a carga no porto sírio de Banias nem qualquer outro porto sírio. O Irã nega a promessa.
· Os EUA exigem oficialmente que Grã-Bretanha e Gibraltar apreendam o Adrian Darya 1 e não o deixem chegar à Síria, porque violaria o regime de sanções. Grã-Bretanha e Gibraltar recusaram-se a obedecer aos EUA.
· O [navio-tanque] Adrian Darya 1 chega à costa da Síria depois de poucos dias de aproximação de Banias, entregou a carga à Síria. Governo do Irã diz que não prometeu coisa alguma a quem fosse.
· Depois de o Adrian Darya 1 ter deixado a Síria, o Irã anunciou que já tinha condições de libertar o navio-tanque britânico. O objetivo havia sido alcançado.
Aí está uma série de passos, realmente interessante!
EUA são a hiperpotência marítima sem quem a desafie, não só por causa da imensa frota, mas porque a rede norte-americana de bases em todo o planeta (700-1.000, conforme se contem as bases) e, possivelmente ainda mais importante que isso, uma rede de chamados “aliados”, “amigos”, “parceiros” e “membros da coalizão de vontades” (também conhecidos como colônias de facto dos EUA) em todo o mundo. Em comparação, o Irã é anão, pelo menos em termos marítimos. Mas, como se diz nos EUA, “não é o tamanho do cachorro na briga, mas o tamanho da briga no cachorro” que decide o resultado.
E há também o resultado (provisório) do ataque dos Houthis contra as instalações sauditas de petróleo. Os sauditas pareciam estar forçando uma guerra contra o Irã, como fez Pompeo, mas parece que Trump decidiu noutra direção [vídeo].
Alguns focaram o fato de Trump ter dito que seria “fácil” atacar o Irã. Outros ridicularizaram Trump por se vangloriar de tudo que os EUA fariam-e-aconteceriam, apesar do escandaloso fracasso dos dois ataques de mísseis cruzadores dos EUA (contra a Síria) e dos mísseis Patriots (no ataque ao Reino da Arábia Saudita). Toda a conversa fiada de Trump é simplesmente resposta-padrão dos EUA a demandas de todos os políticos.
Para mim, a parte-chave dos comentários de Trump aparece quando diz que simplesmente atacar seria “fácil” (para ele, pelo menos, sim, seria), mas que simplesmente atacar não mostraria força. Também observei que Trump referiu-se aos que previram que ele iniciaria uma guerra; disse que erraram sobre ele. E Trump também reconheceu que muita gente está feliz por elenão ter atacado (claro que outros lastimam muito, a começar por toda a mídia norte-americana pseudoliberal e pseudoesquerdista e pelos políticos). A única exceção foi, mais uma vez, Tulsi Gabbard que postou [o vídeo] seguinte, depois que Trump declarou que os EUA estavam [com a arma] “engatilhada e carregada”.
Seja qual for o caso, Trump, mais uma vez, parece ter tomado decisão de último instante para fazer gorar o ataque com o qual os neoconservadores sonham há décadas.
Acho que já dei minha opinião sobre Trump, bem claramente. Mesmo assim, tenho de repetir que esses “sobe-e-desce” que Trump opera são, considerados por eles mesmos, razão suficientemente boa para justificar o voto em Trump. Dito simplesmente: desde que Trump assumiu o governo, vimos muito húbris,* nonsense, muita ignorância e muita estupidez. Mas NÃO vimos guerra alguma, sobretudo não vimos qualquer grande guerra. Jamais poderei provar, mas creio firmemente que, se Hillary tivesse sido eleita, o Oriente Médio já teria explodido (possivelmente depois de os EUA tentarem impor uma zona aérea de exclusão sobre a Síria).
Também temos muita sorte porque, pelo menos nesse caso, a eleição presidencial nos EUA que sempre chega rapidamente, a cada quatro anos, contribui para manter Trump (e seus patrões neoconservadores) sob rédea curta: Trump provavelmente já viu que bloquear a Venezuela ou, ainda mais, atacar o Irã, comprometeria gravemente suas chances de ser reeleito, sobretudo porque nenhum desses dois teatros deixa aos EUA qualquer estratégia de retirada.
Ainda assim, depois daquelas duas derrotas tão embaraçosas, Trump e seus conselheiros tiveram de inventar alguma coisa “de homem” (que eles sempre confundem com “coisa de macho”) e puseram-se a berrar declarações sobre enviar mais tropas para o Golfo Persa e aumentar as defesas aéreas sauditas. Nada disso mudará coisa alguma. O Irã já é o país mais supersancionado do planeta, e todos já viram o que a defesa aérea dos EUA pode e o que não pode fazer. Verdade seja dita: trata-se só de tentar salvar as aparências, e um pouco de salvar imbecilidades para salvar as aparências absolutamente não me incomoda, se ajudar a evitar guerra real e bombas reais.
Ainda assim, quanto mais se aproxima a eleição presidencial, mais Trump deve não só filtrar atentamente tudo que diz, como bem fará se também der instruções claras e estritas a todo o governo sobre o que podem e o que não podem ‘declarar’ ou simplesmente ‘dizer’. Claro que no caso de um megalomaníaco pervertido como Pompeo, não basta uma lista do que “nunca dizer”: Trump precisa demitir esse psicopata o mais rapidamente possível, e indicar um diplomata de verdade para a Secretaria de Estado. Afinal, Pompeo pode usar a mesma cela de Bolton, de paredes almofadadas.
Se se examina a situação do ponto de vista do Irã, ainda é mais interessante. Primeiro, para conhecer o contexto, recomendo os seguintes artigos postados no blog por analistas iranianos, especialmente os seguintes:
· “War Gaming the Persian Gulf Conflict” de Black Archer Williams
· “Karbala, The Path of Most Resistance” de Mansoureh Tadjik
· “Resistance report: Syrian Army takes the initiative in Idlib while Washington blames its failures on Iran again” de Aram Mirzaei
· Também recomendo a entrevista que fiz recentemente com o Professor Marandi.
Recomendo a leitura dessas vozes iranianas porque são absolutamente ausentes das discussões políticas sobre o Oriente Médio, pelo menos na mídia ocidental. Williams, Tadjik, Mirzaei e Marandi são pessoas muito diversas, têm pontos de vista e focam interesses diversos, mas ao ler o que escrevem logo se percebe o quanto os iranianos são confiantes e determinados. Tenho contato com iranianos fora e dentro do Irã, e todos eles, sem exceção, partilham a mesma calma e igual determinação. Parece que, exatamente como os russos, os iranianos com certeza não querem guerra, mas com certeza estão prontos para a guerra.
A estratégia preferida dos iranianos também é clara: assim como o Hezbollah mantém Israel em xeque-mate, assim os Houthis manterão em xeque-mate o Reino da Arábia Saudita. Os Houthis, que estão agora em posição muito forte para negociar, propuseram parar de atacar o Reino da Arábia Saudita, se os sauditas suspenderem os ataques ao Iêmen.
Caso é que os sauditas, exatamente como os israelenses, são fracos demais para aceitar qualquer oferecimento desse tipo, o que é paradoxal, mas verdadeiro: se os sauditas aceitassem oficialmente o acordo, estariam “selando” a própria derrota aos olhos da opinião pública saudita. Isso posto, não acredito que os sauditas acreditem nas próprias mentiras e propaganda sobre guerra contra o Irã. Não importa o quanto os líderes sauditas sejam delirantes e arrogantes, com certeza veem o que uma guerra contra o Irã significaria para a Casa de Saud (agora que reli o que escrevi, já não tenho tanta certeza de que vejam…)! Uma coisa é matar xiitas indefesos na Arábia Saudita, no Bahrain ou no Iêmen. Outra coisa, bem diferente, é atacar “o país que treinou o Hezbollah”.
Por falar de comportamento delirante, os europeus afinal obedeceram aos seus patrões anglo-sionistas, e concordaram com culpar o Irã pelo ataque, seguindo o modelo do que chamo “leis Skripal sobre provas”, também conhecidas como “lei do altamente provável“. Acho que quanto mais as coisas mudam, mais permanecem as mesmas…
Está bem claro que os estados que constituem o Eixo da Gentileza (EUA, Arábia Saudita, Israel) enfrentam problemas profundos no front interno: Trump está ocupado com o escândalo “Zelensky vs Biden”, especialmente agora que os Democratas estão iniciando um processo de impeachment; eleições recentes não deram o resultado com que Bibi contava; e, quanto aos sauditas, têm agora de se preparar para mais sanções e mais radares – que ninguém chamaria de combinação vencedora.
Os sauditas são fracos demais, sem-noção demais e gordos demais (fisicamente e mentalmente), para conseguir fazer seja o que for, eles mesmos. Mas EUA e Israel precisam agora desesperadamente exibir algum tipo de “vitória”, qualquer “vitória” sobre… seja lá quem for! Qualquer vitória serve. Assim sendo, os EUA acabam de negar vistos de entrada a dez membros da delegação russa à ONU (o que viola mais um dos deveres dos EUA nos termos da lei internacional, mas os EUA pouca bola dão a trivialidades desimportantes, como alguma lei internacional); e só para mostrar o quão poderosíssimo é o Império, a delegação iraniana à ONU também recebeu o mesmo tratamento de “meninos malcomportados”: que triunfo! Digno de superpotência! Ah! Atualização desse momento: EUA agora inventaram de revogar vistos para estudantes iranianos e de negar a entrada a diplomatas venezuelanos.
Essa “guerra de vistos” é o equivalente nos EUA da “guerra de estátuas” que ucranianos, bálticos e poloneses fazem hoje, para tentar distrair a atenção da população, para que ninguém veja as políticas de entreguismo comprador dos respectivos governos.
Quanto aos israelenses, é provável que os israelenses bombardeiem algum prédio desocupado na Síria (ou mesmo em Gaza!).
Conclusão: fatos e lógica já não fazem qualquer diferença
Há dez anos, Chris Hedges escreveu livro intitulado Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle [Império da Ilusão: fim da alfabetização (mais precisamente “letramento”)] e, uma década depois, esse título é diagnóstico extremamente acurado. O que Hedges polidamente chama de “fim do letramento” pode ser hoje constatado em todas as facetas, se se ouve o que dizem líderes políticos e militares nos EUA [no Brasil, então, nem se fala!!!! (NTs)]. Por mais que a maioria deles sejam, de fato, gente moralmente falida, muitos dos quais psicopatas, o que mais impressiona é o alto nível de ignorância e a baixa capacitação profissional e técnica. O russos começaram falando de “parceiros” “não confiáveis para acordos”. Logo porém Putin já dizia que é difícil trabalhar com “gente que confunde Áustria e Austrália”. Tudo isso, vale lembrar, aplica-se igualmente ao governo Obama e ao governo Trump: nos dois casos, sem qualquer mudança, a palavra de ordem poderia perfeitamente ser “mentiras über alles” [al. no original: “mentiras em primeiro lugar”; ing. “mentiras first”] ou coisa parecida.
Quando uma cultura política afunda completamente no reino das ilusões e das mentiras o fim está próximo, porque nenhum problema do mundo real pode ser jamais enfrentado: o máximo que o ‘poder’ consegue, nesses casos, é empurrar os problemas para o fim da fila, de onde rapidamente voltam à urgência total, negar problemas que todos veem, por mais que os governos ampliem o tom triunfalista pirado, os tapinhas nas costas cenográficos e o autoelogio, dentre outras modalidades de autolouvação.
Post scriptum: EUA enlouqueceram, sim, mas fato é que Trump pode sobreviver
Então, os Democratas decidiram tentar o impeachment de Trump. Por mais que eu sempre tivesse esperado que os neoconservadores tratariam Trump como “presidente descartável”; que o usassem para fazer tudo que não quisessem carregar diretamente a culpa por terem feito, para em seguida descartá-lo, tão logo o tivessem sugado para extrair tudo que Trump pudesse dar-lhes, ainda assim muito me surpreendeu a temeridade, a arrogância e a absoluta desonestidade dos neoconservadores Democratas (aqui, o que escrevi quando estava realmente furioso.
Meu palpite é que Trump talvez vença mais essa, pela mesma razão pela qual venceu na primeira vez: porque o outro lado é ainda pior (exceto, claro, Tulsi Gabbard).
Claro, um ataque ao Irã seria bem-vinda distração tipo “rabo que abana cachorro” e Trump pode ser tentado. Resta esperar que os Democratas se autodetonem tão depressa, que Trump nem tenha de considerar qualquer medida na mesma direção.
[assina] The Saker
* Aviso aos apressadinhos ‘corretores’ de domingo, que o substantivo “húbris” é masculino, assim definido no VOLP [NTs]
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