Interpretações errôneas dos acontecimentos nos Estados Unidos (1/2)

Thierry Meyssan – Rede Voltaire – 28 de janeiro de 2025

Podemos ver que a chegada de Donald Trump à Casa Branca está abalando as regras do jogo internacional. No entanto, muitas vezes interpretamos mal suas ações: desconhecemos os costumes e hábitos de seu país e projetamos nele nossos próprios debates políticos. Estamos ainda mais perdidos porque, nos últimos anos, aderimos mais ou menos à ideologia que está na moda em Washington. Nós a consideramos o dogma estadunidense, embora tenha sido apenas um momento em sua história, e nos esquecemos de suas muitas escolas de pensamento.

Todos nós ficamos surpresos com o fato de o presidente Trump ter assinado decretos em rápida sucessão imediatamente após sua posse. A imprensa europeia o viu como um autocrata afirmando seu poder. De forma alguma! Muitos desses documentos limitam o poder do estado federal para o benefício dos estados federados. Erros de interpretação desse tipo são agora uma realidade entre os Estados Unidos e a Europa.

A chegada de Donald Trump à Casa Branca está embaralhando todas as cartas ideológicas, geopolíticas, econômicas e até mesmo militares. Pela primeira vez em quase dois séculos, um Jacksoniano está novamente no poder nos Estados Unidos. Havíamos nos esquecido desse modo de pensar (exceto nos filmes de faroeste) e não somos mais capazes de antecipá-lo. No entanto, Trump já esteve no poder por quatro anos, mas na época ele foi amplamente impedido de implementar suas políticas por seus próprios aliados republicanos, enquanto a imprensa democrata nos assegurava que ele era um doente mental ou um fascista.

Estranhamente, os influenciadores das redes sociais que defendem seu ponto de vista só nos falam sobre sua luta ideológica contra o wokismo, nunca sobre sua concepção de relações internacionais e menos ainda sobre suas ambições políticas. Isso é ainda mais estranho se considerarmos que, desde a eleição de 5 de novembro, a equipe de Donald Trump tem procurado um grande número de influenciadores na União Europeia e no Reino Unido e tem pago a eles generosamente.

Há várias maneiras de ver essa contradição. Ou Donald Trump pretende enganar os europeus sobre suas verdadeiras intenções ou acredita que eles só conseguem entender uma coisa de cada vez. De nossa parte, continuaremos nosso trabalho descrevendo as diferentes facetas desse personagem sem ignorar nenhuma delas.

A luta contra a ideologia woke

O wokismo é geralmente apresentado como uma reação à escravidão e à segregação racial. Os colonizadores europeus, agora cientes dos horrores que haviam cometido, estavam tentando fazer reparações.

Essa não é a minha opinião. Na minha visão, o wokismo não tem nada a ver com esses crimes. Se adotarmos uma visão antropológica, temos de reconhecer que fenômenos idênticos existem em todas as principais religiões. No cristianismo, ele foi sintetizado por Orígenes, o pai da Igreja do século III que se castrou para evitar pecar, ou mais recentemente por João Calvino, famoso por ter aplicado os mesmos métodos da Inquisição Espanhola na República Teocrática de Genebra.

Os Estados Unidos surgiram da colônia puritana de Plymouth (Nova Inglaterra, ou mais precisamente Massachusetts). Eles eram puritanos, ou seja, calvinistas. O Lorde Protetor, Oliver Cromwell, os enviou como missionários, não tanto para converter os índios, mas os europeus do muito católico Rei da Espanha. Em suas colônias, as mulheres tinham de usar véu e a oração era obrigatória. Os homossexuais eram chicoteados, e assim por diante. Esses fanáticos são conhecidos como “Pilgrim Fathers” (não confundir com os “Founding Fathers”, que são juristas). Eles são celebrados todos os anos no feriado de Ação de Graças. Foram eles que importaram a ideia de que a política deveria ser “pura” e que as estátuas dos hereges deveriam ser destruídas.

Desde 2014, a expressão “woke” tem sido usada para designar pessoas conscientes das consequências sociais da escravidão e da discriminação racial, e até mesmo, à medida que as lutas convergem, da orientação sexual e até mesmo do gênero. Esse movimento busca a “pureza”, no sentido religioso do termo, e estabeleceu “boas práticas” para combater a discriminação racial, explícita ou “sistêmica”. Na prática, o movimento pressiona por uma “discriminação positiva” em favor de todas as minorias.

É evidente que a escravidão foi uma realidade nos Estados Unidos e que essa realidade passada condiciona o comportamento atual. Mas é duvidoso que a destruição de qualquer coisa que nos lembre essa época resolva os problemas de nosso tempo, e é ainda mais duvidoso que o favorecimento de candidatos negros permita que eles se libertem da condição de seus antepassados. Todos percebem instintivamente que os remédios são piores do que os problemas que eles pretendem combater. Pelo menos foi isso que os moradores wokes de Los Angeles pensaram quando suas casas foram devastadas por um incêndio. Eles refletiram sobre a ineficiência dos bombeiros contratados com base na discriminação positiva e não na competência. Esse movimento perdeu popularidade nos Estados Unidos nos anos anteriores, conforme demonstrado pela expressão get woke, go broke! (“torne-se woke e vá à falencia!”).

O wokismo é uma adaptação moderna do puritanismo dos “Pais Peregrinos”. Mas os Estados Unidos são um país complexo no qual várias culturas se mesclaram.

Assim como o Partido Republicano, absorvido pelos trumpistas, tornou-se jacksoniano, o Partido Democrata, absorvido por Obama e Biden, tornou-se wokeista. Isso provocou muitos mal-entendidos, pois Washington como um todo abandonou ideologicamente seu comportamento tradicional, ao qual está retornando agora.

Durante a campanha eleitoral presidencial, dois jovens influenciadores denunciaram longamente o wokismo. A jornalista negra Candace Owens (que agora está atacando o casal Macron [1]) descreveu o Black Lives Matter como “um grupo de crianças choronas que fingem ser oprimidas para chamar a atenção”. Já o homossexual Milo Yiannopoulos (casado com outro homem) ganhou fama com suas paródias do feminismo lésbico e do movimento LGBTQIA+. Esses dois influenciadores levaram muitos negros e gays a não votar no Partido Democrata, como seus antecessores, mas em Donald Trump.

Em seu discurso de posse, Donald Trump anunciou o fim das políticas de ação positiva e declarou que, de agora em diante, o estado federal reconheceria apenas dois sexos. Isso é espetacular, mas ocorre em um momento em que a grande maioria dos eleitores dos EUA já está convencida disso. [2]

Excepcionalismo estadunidense

Donald Trump é a favor do “excepcionalismo estadunidense” [3]. Uma doutrina segundo a qual os Estados Unidos são “a luz na colina”, enviada por Deus para iluminar o mundo.

Essa doutrina, que também se origina diretamente do exemplo dos “pais peregrinos”, afirma que sua jornada foi comparável à dos antigos hebreus. Ela os transformou em um “povo escolhido” porque fugiram do Faraó (a monarquia britânica que acabara de ser derrubada por Lord Cromwell), atravessaram o Mar Vermelho (o Oceano Atlântico) e descobriram uma terra prometida (a América do Norte). Cada um dos 47 presidentes dos Estados Unidos, sem exceção, reivindicou essa mitologia. Essa mitologia sustenta tanto sua rejeição aos princípios do direito internacional quanto seu apoio ao Estado de Israel.

Do ponto de vista estadunidense (isso não tem nada a ver com Donald Trump), Washington nunca aceitará prestar contas a ninguém, muito menos às Nações Unidas ou suas agências. É certo que eles reciclaram muitos criminosos nazistas durante a Guerra Fria, é claro, massacraram os coreanos, os vietnamitas, os afegãos, os iraquianos, os líbios, os palestinos, os sírios etc.. mas nenhum de seus presidentes deverá ser indiciado por qualquer tribunal internacional.

Em um artigo de opinião publicado em 2013 pelo The New York Times , o presidente russo, Vladimir Putin, enfatizou que é “extremamente perigoso incentivar as pessoas a se considerar excepcionais, qualquer que seja a motivação” [4]. Essa doutrina de fato induz uma diferença e uma hierarquia entre os homens, como quando o conceito teológico de “povo escolhido” é aplicado a uma realidade política.

Ao longo de sua história, Washington nunca concordou em prestar contas à estrangeiros. Atribuímos erroneamente algumas de suas decisões recentes de acordo com as ideologias atuais, quando, elas teriam sido tomadas. De qualquer modo. Por exemplo, pensamos erroneamente que Donald Trump se afastou dos Acordos de Paris sobre o combate ao aquecimento global porque os considera tolos. É certo que ele não acredita que o IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Chance – Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – NT)seja uma academia de ciências. Mas, em qualquer caso, os Estados Unidos não poderiam concordar em assinar acordos que os submetiam ao julgamento de outros. Obama e Biden se posicionaram contra a tradição de seu país pela ideologia, Trump se posicionou, de acordo com sua própria tradição, que também corresponde à sua própria ideologia.

A versão ocidental da liberdade

Quando os Estados Unidos foram fundados em 1776, 13 anos antes da Revolução Francesa, os pais fundadores discordavam sobre seu conceito de liberdade e direitos humanos. Ao contrário dos voltairianos franceses, eles não pensavam nessas questões de um ponto de vista individual e coletivo. Para eles, liberdade significava simplesmente poder fazer o que quisesse em casa. É por isso que, por exemplo, eles são alérgicos ao princípio das contribuições obrigatórias para a seguridade social.

Essa forma de pensar tem suas desvantagens. Por exemplo, o conceito deles de “direitos humanos” está completamente em desacordo com o conceito francês de “droits de l’homme et du citoyen”. Do ponto de vista anglo-saxão (referindo-se à tradição britânica), é simplesmente uma questão de se proteger da raison d’Etat. Do ponto de vista dos revolucionários franceses, por outro lado, era menos uma questão de não ser torturado em uma delegacia de polícia do que de participar da elaboração de leis [5].

O debate sobre a liberdade de expressão é distorcido pela sobreposição de grades de leitura. O governo Biden considerou, de um ponto de vista lúcido, que tinha a responsabilidade de informar o público sobre os perigos da COVID e salvá-lo da doença. Portanto, proibiu todo debate científico e censurou todas as opiniões divergentes. De acordo com a tradição dos “pais fundadores”, o estado federal não tinha nada que interferir nas trocas de ideias nas redes sociais. De acordo com a tradição voltairiana, o Estado não tinha o direito de não proibir nada, mas de fazer com que os tribunais proibissem mensagens que enganassem os usuários da Internet e prejudicassem sua saúde (nesse caso, eram mensagens sobre a compra compulsória universal de certos medicamentos que deveriam ter sido abordadas).

[1] “Depois do Reino Unido, Alemanha e Dinamarca, a equipe Trump está preparando uma operação para a França“, Voltaire Network, 16 de janeiro de 2025.

[2] Donald Trump não procurou negar que alguns membros raros da espécie humana não tenham as características cromossômicas dos homens, nem as das mulheres. Ele atacou o fato de que o Estado Federal havia imposto à empresa que se organizasse como se essas exceções fossem a regra.

[3] Leia absolutamente os atos da conferência organizada pelo Centro de Política de Direitos Humanos: estadunidense Excepcionalismo e Direitos Humanos , Michael Ignatieff, Princeton University Press (2005).

[4] “Um apelo à prudência“, de Vladimir Putin, New York Times (Estados Unidos), Voltaire Network , 12 de setembro de 2013.

[5] O Britânico Thomas Paine, que desencadeou a Guerra da Independência dos Estados Unidos, foi eleito deputado de Pas-de-Callais para a Convenção Nacional Francesa de 1792. Ele se recusou a votar a morte do rei porque, segundo ele , Ter injustiça a um único homem terminaria o processo de transformação da sociedade. Ele escreveu um livro sobre as duas concepções antinômicas dos direitos humanos. Foi o livro mais lido durante a Revolução Francesa.


Fonte: https://www.voltairenet.org/article221744.html

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