26/7/2021, Pepe Escobar, Asia Times
A corrida já está em preparação para construir e ampliar a esfacelada infraestrutura no Afeganistão, com potências rivais promovendo iniciativas que competem entre elas
Há mais de uma semana, retomaram-se as desesperadoramente lentas negociações de paz de Doha entre o governo de Cabul e os Talibã; e depois se arrastaram por dois dias, observadas por enviados da UE, dos EUA e da ONU.
Nada aconteceu. Não conseguiram concordar sequer quanto a um cessar-fogo durante o Eid al-Adha. Pior, não há mapa do caminho que leve ao modo como as negociações podem ser retomadas em agosto. O líder supremo dos Talibã, Haibatullah Akhundzada, corretamente, distribuiu declaração clara: os Talibã “favorecem firmemente um acordo político.”
Mas… como? Permanecem diferenças irreconciliáveis. A Realpolitik determina que de modo algum os Talibã abraçarão a democracia ocidental liberal: querem a restauração de um emirado islâmico.
O presidente Ashraf Ghani do Afeganistão, por sua vez, é mercadoria defeituosa até para os círculos diplomáticos de Cabul, que o ridicularizam como muito teimoso, e como incapaz de corresponder ao que a ocasião exige. A única solução possível no curto prazo parece ser um governo provisório.
Mas não se vê qualquer líder com apelo nacional – nada que se assemelhe à figura do Comandante Massoud. Todos os senhores-da-guerra são regionais – suas milícias protegem interesses locais, não a distante Cabul.
“Representantes dos EUA, Uzbequistão, Afeganistão e Paquistão concordaram, em princípio, em estabelecer uma nova plataforma diplomática quadrilateral focada no aumento da conectividade regional. As partes consideram a paz e a estabilidade a longo prazo no Afeganistão fundamentais para a conectividade regional e concordam que a paz e a conectividade regional reforçam-se mutuamente”.
EUA estariam tentando fazer uma sua ‘Cinturão e Estrada’ bem ali, no quintal da China? ‘Tuíto’ do Departamento de Estado confirma. Podem considerar como um caso de “se não consegue derrotá-los, una-se a eles”.
Ora, essa é talvez a única questão em relação à qual concordam virtualmente todos os atores no tabuleiro de xadrez afegão no Afeganistão: um Afeganistão estável super turbinará o fluxo de cargas num dos nodos vitais da integração da Eurásia.
Suhail Shaheen, porta-voz dos Talibã foi muito consistente: os Talibã veem a China como “amiga” do Afeganistão e anseiam por ver Pequim investir no trabalho de reconstrução, “o mais rapidamente possível.”
A questão é o que Washington visa a conseguir com esse novo Quad – pelo momento, só existente no papel. Simples: jogar uma cunha monstro nos trabalhos da OCX, liderada por Rússia-China, e principal fórum do qual pode sair alguma solução prestável para o drama afegão.
Nesse sentido, a competição EUA vs Rússia-China no teatro afegão encaixa-se perfeitamente no gambito “Reconstruir o Mundo Melhor” (ing. Build Back Better World, B3W), que visa – pelo menos em tese – a oferecer plano de infraestrutura alternativo à Iniciativa Cinturão e Estrada e forçá-lo sobre nações do Caribe e África ao Pacífico Asiático.
O que não discute é que um Afeganistão estável é essencial, em termos de estabelecer plena conectividade ferroviária da Ásia Central, rica em recursos, até os portos paquistaneses de Karachi e Gwadar, e dali aos mercados globais.
Para o Paquistão, trata-se de ganha-ganha geoeconômico garantido, seja via o Corredor Econômico China-Paquistão (CECP), nave madrinha do projeto Cinturão e Estrada, ou via o novo Quad, ainda incipiente.
A China financiará a rodovia Peshawar-Cabul, altamente estratégica. Peshawar já está ligado ao CECP. A conclusão da rodovia selará simbolicamente o Afeganistão, como parte do CECP.
E então, há o acordo trilateral conhecido pela simpática sigla Pakafuz – acordo Paquistão, Afeganistão e Uzbequistão para construir uma ferrovia – conexão fundamentalmente estratégica entre a Ásia Central e o Sul da Ásia.
Plena conectividade entre Ásia Central e Sul da Ásia também é pilar chave da principal estratégia russa – a Parceira da Eurásia Ampliada – que interage de vários modos com a Iniciativa Cinturão e Estrada.
Lavrov dedicou-se longamente, na cúpula Ásia Central-Sul da Ásia em Tashkent a explicar a integração da Parceria Eurásia Ampliada com a OCX e a União Econômica Eurasiana (UEE).
Lavrov também se referiu à proposta uzbeque de “alinhar a Ferrovia Transiberiana e o corredor Europa-China Ocidental com os novos projetos regionais”. Tudo está interligado, olhe-se como for.
Atenção ao fluxo geoeconômico
O novo Quad está, de fato, chegando atrasado, em termos da rápida transmutação geopolítica da Terra Central. Todo o processo está sendo conduzido por China e Rússia, que cuidam juntas dos assuntos da Ásia Central.
Já no início de junho, uma muito importante declaração conjunta de China-Paquistão-Afeganistão destacou o modo como Cabul será beneficiada pelo comércio via o porto de Gwadar, do CECP.
E, claro, há também o Oleogasodutostão.
Dia 16/7, Islamabad e Moscou assinaram um mega-acordo para a construção de um gasoduto de $3 bilhões de dólares, 1.100 km, entre o porto Qasim em Karachi e Lahore, a ser concluído ao final de 2023.
O gasoduto transportará Gás Natural Liquefeito (GNL) do Qatar, até o terminal para GNL em Karachi. É o Projeto Gasoduto Pakstream [ing. Pakstream Gas Pipeline Project] – conhecido localmente como projeto Gás Norte-Sul [ing. North-South Gas Project].
A interminável guerra no Oleogasodutostão entre IPI (Índia-Paquistão-Irã) e TAPI (Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia) – que acompanhei em detalhes durante anos – parece ter terminado com um terceiro vencedor.
Assim como o governo de Cabul, os Talibã parecem estar dando muita atenção a toda a geoeconomia e a como o Afeganistão está no coração mesmo de um inevitável boom econômico.
É possível que os dois lados estejam dando muita atenção a alguém como Zoon Ahmed Khan, jornalista paquistanesa extremamente inteligente, pesquisadora associada do Instituto Iniciativa Cinturão e Estrada [ing. One Belt-One Road Strategy Institute] na Universidade Tsinghua.
Zoon Ahmed Khan observa que “uma das significativas contribuições que a China faz mediante a Iniciativa Cinturão e Estrada é destacar o fato de que países em desenvolvimento como o Paquistão têm de encontrar via própria de desenvolvimento, em vez de seguirem qualquer modelo ocidental de governança.”
E acrescenta que “A melhor coisa que o Paquistão pode aprender do modelo chinês é alcançar seu próprio modelo. A China não visa a impor a outros países a própria jornada e a própria experiência, o que é muito importante.”
Afirma que a Iniciativa Cinturão e Estrada “está beneficiando região muito maior que o Paquistão., o que a China tenta fazer mediante a Iniciativa é mostrar aos países parceiros a própria experiência e o que a ICE pode oferecer.”
Tudo isso sem dúvida aplica-se ao Afeganistão – e sua complicada mas inevitável inserção no processo em andamento de integração da Eurásia.*******
* “Quad”, ou QSD, ing. “Quadrilateral Security Dialogue”, é um grupo de diálogo estratégico formado de EUA, Japão, Austrália e Índia [NTs, com informações de Wikipedia]
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