Houthis abrem a caixa de Pandora e põem em xeque o imperialismo e o sionismo

Eduardo Vasco (*) para o Saker Latinoamérica – 19 de dezembro de 2023

Os houthis conseguiram fazer o que Israel e Estados Unidos tentaram evitar a todo o custo até agora: transformar o genocídio em Gaza numa crise mundial. Atingiram o calcanhar de Aquiles do inimigo: a economia, ao bloquear o trânsito pelo Mar Vermelho de qualquer embarcação israelense ou com destino a Israel.

Pelo lado de Israel, os prejuízos à sua economia já contam bilhões de dólares. O jornalista libanês Khalil Harb destacou, em artigo no The Cradle, que Israel importa e exporta “quase 99% das mercadorias por via fluvial e marítima” e que mais de ⅓ do seu PIB depende do comércio de mercadorias, segundo o Banco Mundial. Esse é um duro golpe e compromete diretamente a continuidade da matança desenvolvida pelas forças sionistas em Gaza, que já custaram a vida de 20 mil pessoas.

Mas a ação houthi não é espetacular somente porque atinge a coluna vertebral da máquina genocida de Israel, e sim, sobretudo, porque está paralisando a economia mundial – isto é, o próprio funcionamento do regime capitalista, que está na raiz do problema da guerra de agressão no Oriente Médio. E quem admite isso é nada menos que o principal órgão de imprensa dos banqueiros internacionais, The Economist: “uma nova crise de Suez ameaça a economia mundial.” Um artigo em tom preocupante do veículo destaca que o bloqueio naval imposto pelos houthis tem o potencial tanto de escalar a guerra e expandi-la para o restante da região como também prejudicar radicalmente o comércio global. A principal alternativa para Israel e EUA seria atacar militarmente o território do Iêmen que é governado pelos houthis, mas estes poderiam retaliar não apenas com ataques a Israel, como também aos aliados árabes dos EUA, como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos (EAU) e Jordânia, principalmente contra seus campos petrolíferos, o que elevaria brutalmente a crise econômica com uma crise do petróleo (que já se iniciou). Por isso mesmo, enquanto os EAU querem uma ação contundente contra os houthis, os sauditas estão receosos. Mas isso não impede que Riad participe, junto com o Egito, de ações marítimas lideradas por Washington para tentar conter os ataques houthis, contra quem a Casa de Saud tem guerreado há quase dez anos, devastando o Iêmen e tornando o país, que já era o mais pobre do Oriente Médio, numa terra onde ocorre a maior catástrofe humanitária dos últimos cem anos, segundo os próprios organismos das Nações Unidas.

Para se ter uma ideia do estrago que os houthis estão fazendo, basta observar alguns dados. Cerca de 12% do comércio mundial anual depende da rota que passa pelo Canal de Suez e o Estreito de Bab al-Mandab. É por ali que chegam à Europa e à América as embarcações que vêm da Ásia, e vice-versa. A rota Cingapura-Roterdã tem duas alternativas: a passagem pelo Canal do Panamá ou pelo Cabo da Boa Esperança, na África do Sul. Mas elas são 40% mais longas (pelo menos 10 dias a mais de viagem), o que eleva dramaticamente os custos das viagens, acarretando o aumento das tarifas e dos preços dos materiais transportados, que são transferidos para os consumidores do mundo todo. Além disso, o Canal do Panamá está secando, o que obrigou a reduzir quase pela metade o número de navios que passam por ali a cada dia. Assim, os preços de todas as mercadorias que passariam pelo Mar Vermelho e agora deverão passar pelo Cabo da Boa Esperança aumentarão significativamente, atingindo todos os países do mundo. Existe uma terceira alternativa: o Mar do Norte, cuja rota entre Ásia e Europa é mais curta que pelo Suez. A grande ironia é que o país com maior controle sobre essa rota é a… Rússia. Os neocons devem infartar!

Pelo Mar Arábico (entre a Índia e a Península Arábica) passa ⅓ do suprimento de petróleo marítimo e o bloqueio do Mar Vermelho, mesmo que os houthis tenham garantido que só vale para navios relacionados com Israel, na verdade faz com que todas as empresas temam ser atingidas, causando o aumento do preço do petróleo devido ao desvio de rota – a British Petroleum já anunciou que não passa mais por ali. Mais de 60% das linhas de navegação internacionais já suspenderam o transporte para Israel pelo Mar Vermelho e as empresas que decidiram mudar de caminho (como Maersk, MSC, CMA CGM e Hapag-Lloyd) representam mais da metade do transporte global de contêineres.

A hora da verdade para os regimes árabes

A ação houthi representa um divisor de águas não apenas para a guerra de agressão israelense contra os palestinos, mas também para a correlação de forças no Oriente Médio. Mohammed Abdul-Salam, porta-voz do movimento Ansar Allah (o nome oficial da organização houthi), indicou qual é o caráter da operação: “a causa palestina não está aberta para negociação e nós não podemos aceitar o que está acontecendo com o povo de Gaza.” Trata-se de uma ação inteiramente solidária e internacionalista, motivada pelos mais nobres sentimentos de irmandade com os palestinos. Os houthis, neste momento, são a expressão máxima do sentimento de todos os muçulmanos do mundo inteiro – e de milhões de não muçulmanos humanistas, progressistas, democráticos e socialistas. Sendo assim, têm um respaldo moral inabalável e inatingível.

Todas as palavras que os demais países de maioria muçulmana têm emitido demagogicamente nos últimos dois meses estão sendo confrontadas pela ação concreta e extremamente corajosa dos houthis, que sequer controlam todo o território do pequeno e miserável Iêmen. E, embora os houthis tenham a vantagem de não dever justificativas a nenhum outro governo, exatamente pelo seu caráter excepcional de ser um governo paralelo que já está em guerra, portanto não têm nenhum rabo preso, isso não significa que não haja consequências para suas ações. A primeira delas já está valendo e passou despercebida: no início do mês, o Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas anunciou a suspensão do fornecimento de ajuda alimentar para as zonas controladas pelos houthis, o que significa uma sentença de morte pela fome para mais de 13 milhões de iemenitas que dependem dessa ajuda. Foi uma clara retaliação dos EUA e de Israel ao bloqueio naval no Mar Vermelho, com a marca do imperialismo, ou seja, a vingança contra os civis e os mais vulneráveis.

Agora os Estados Unidos vão patrulhar o Mar Vermelho para tentar impedir as confiscações de navios e os ataques vindos dos houthis. O secretário da Defesa americano, Lloyd Austin, anunciou, após chegar a Tel Aviv, que a operação “Guardião da Prosperidade” vai contar com a participação do Reino Unido, França, Canadá, Itália, Holanda, Espanha, Noruega, Bahrein e Seychelles. O porta-aviões nuclear Dwight D. Eisenhower já está no Golfo de Áden.

Muhamed al-Bajiti, membro do Conselho Político Supremo do governo houthi, chamou a coalizão de a “aliança mais suja da história”, que será combatida na “batalha mais honrosa da história”. A Jihad Islâmica Palestina, por sua vez, declarou: “as declarações de Austin são uma descarada bênção estadunidense para o inimigo sionista, permitindo a continuidade de seus crimes bárbaros e nazistas contra nosso povo palestino. A incitação de Austin contra o irmão Iêmen é uma tradução descarada da arrogância estadunidense. É uma vergonha para os regimes árabes e os povos de nossa nação que não tomem medidas para responder à agressão estadunidense e sua inclinação a continuar a guerra de extermínio.”

A participação do Bahrein revela que os regimes subservientes ao imperialismo no Mundo Árabe não apenas não tomam medidas contra EUA e Israel, mas que são seus cúmplices ativos no genocídio do povo palestino e na opressão contra todos os povos árabes. Bahrein, Jordânia, Emirados Árabes Unidos e Egito (o quinto maior fornecedor de petróleo para Israel) são grandes parceiros comerciais do regime de Tel Aviv. Diante do bloqueio do Mar Vermelho, Arábia Saudita, EAU, Bahrein e Jordânia já começaram a operar conjuntamente para transportar as mercadorias por caminhão, do Mar Arábico para Israel, através de seu território. Eles participam, na prática, da coalizão imperialista anti-houthis, mas pela via terrestre. Afinal de contas, a demagogia pró-Palestina desses regimes é só perfumaria para encobrir o fétido apoio ao massacre, um apoio obrigatório, porque, não sendo assim, esses regimes desaparecerão, pois quase absolutamente sustentados pelos EUA e seus aliados europeus. O fechamento do Canal de Suez vai acabar com a já combalida economia egípcia e Abdel Fatah al-Sisi, para se manter na posição de poder que lhe foi entregue pelo imperialismo, tem de se mexer para romper o bloqueio, unindo-se abertamente a Israel, que já controla o regime egípcio há 50 anos. O mesmo vale para os estados artificiais do Golfo Pérsico.

Muhamed al-Bajiti levantou o grande X da questão para os países árabes: “como serão vistos os países que correram para formar uma coalizão internacional contra o Iêmen para proteger os perpetradores do genocídio israelense? E como será visto o Iêmen, que atuou com vontade oficial e popular para deter o genocídio israelense contra o povo palestino?”

Os houthis já tinham uma grande popularidade no Iêmen, sendo apoiados pela maior parte de seu povo, o que foi o fator determinante para manterem uma guerra de resistência à agressão saudita (com todo o imperialismo mundial por trás) durante dez anos. Seu posicionamento firme, como representante de um dos povos que mais têm realizado manifestações multitudinárias em defesa da Palestina, os coloca definitivamente no Eixo da Resistência ao imperialismo no Oriente Médio com um destaque monstruoso. Assim como o heroico Hamas, demonstra aos milhões de árabes e ao bilhão e meio de muçulmanos (mais de 20% da população mundial) que somente um posicionamento radical e o levantamento armado das massas podem fazer frente à esmagadora opressão que sofrem das potências imperialistas. O governo fantoche que controla a outra parte do Iêmen, apoiado pelos sauditas e americanos, se recusou publicamente a tomar parte da coalizão marítima contra os houthis, com medo de precipitar a sua queda pela rebelião popular no território onde ainda governa.

De fato, muitos iemenitas têm se voluntariado para combater ao lado da Resistência Palestina em Gaza. Se Israel e os EUA temiam que a guerra se expandisse, isso parece ser inevitável. Confrontos com o Hezbollah são diários na frente norte, enquanto as bases militares ilegais dos EUA na Síria e no Iraque já sofreram dezenas de ataques nos últimos dois meses. Além da já mencionada possibilidade de ataque dos houthis contra a Arábia Saudita, a Jordânia e os EAU. Já o Irã, que tem atuado como um enxadrista na atual situação, indiretamente apoiando o Hamas, o Hezbollah e o Ansar Allah, também pode ser compelido a se envolver diretamente no conflito: um agente do Mossad foi preso e executado por se infiltrar no país e, na semana passada, Teerã sofreu ataques hackers a partir de Israel. A “guerra fria” entre a nação persa e o estado judeu artificial pode se transformar em uma guerra aberta com a coalizão imperialista ameaçando a segurança nacional do Irã e escalando a guerra Israel-Gaza/Oriente Médio/comercial.

A abertura de uma crise revolucionária

“As Forças Armadas do Iêmen vão tornar o Mar Vermelho um cemitério para a coalizão dos EUA se a aliança decidir tomar qualquer ação contra o Iêmen”, disse o ministro da Defesa do Ansar Allah, major general Mohammad al-Atifi. Segundo a revista Newsweek, os houthis detêm grande estoque de mísseis antiblindagem e podem atacar mais barcos do que a Armada dos EUA pode defender. Se as forças imperialistas fracassarem em liberar o Mar Vermelho, isso será uma derrota monumental e evidenciará a sua fragilidade, fortalecendo ainda mais o Eixo da Resistência e elevando o nível da crise não apenas no Oriente Médio, mas mundial.

A situação econômica da Europa se tornou extremamente difícil após o início da Operação Militar Especial da Rússia na Ucrânia, com as grandes massas europeias sofrendo a inflação, o desabastecimento, o encarecimento das tarifas de energia e saindo às ruas em enormes manifestações nas principais capitais. Ninguém mais aguenta a guerra fomentada pelos EUA e a União Europeia contra a Rússia e esse sentimento, que no fundo é um sentimento anti-imperialista, se aprofundou diante das imagens de crianças sendo mortas como baratas pelas tropas israelenses em Gaza. As manifestações foram retomadas, em solidariedade aos palestinos e contra o apoio dos governos europeus ao genocídio. Agora as reivindicações econômicas serão amplificadas, devido à crise do comércio global derivada do bloqueio ao Mar Vermelho.

Não é mais segredo para toda essa massa populacional que a culpa pela crise no Oriente Médio, que se tornou uma crise mundial, é de Israel e, sobretudo, de seu patrão americano. De acordo com uma análise realizada pela empresa Mig AI, 83% das publicações na Internet sobre a situação na Palestina são contrárias a Israel, sendo também negativos para o regime sionista 28% dos mais de 370 mil artigos publicados em sites com mais de um milhão de visitas mensais. Ainda que os grandes conglomerados monopolísticos da imprensa internacional mantenham uma linha editorial pró-Israel, a realidade se impôs às manipulações. A pressão da opinião pública é um dos dois fatores (o outro é a crise com o bloqueio do Mar Vermelho) que obrigaram os governos imperialistas a buscar uma solução para a carnificina executada por Israel, criticando Tel Aviv após lhe ajudar no massacre.

A França entrou em um conflito diplomático com Israel após um funcionário de seu Ministério das Relações Exteriores ter sido morto por um ataque israelense em Rafah e a Itália e o Vaticano também entraram em contradição com Tel Aviv por um ataque mortal a uma igreja católica em Gaza. O Reino Unido e os EUA manifestaram preocupação com o morticínio desenfreado de civis e outros países europeus vão sancionar colonos israelitas. A China possivelmente será obrigada a tomar uma posição mais ativa na busca pelo fim do genocídio, porque é um dos países mais afetados pelo bloqueio naval. Enquanto que dentro de Israel a execução de três reféns do Hamas pelas mãos das próprias “Forças de Defesa de Israel” gerou um clima insustentável para Benjamin Netanyahu. Soma-se a isso a resistência imposta pelo Hamas e as demais forças em Gaza, que tornou a Faixa em um atoleiro para os soldados israelenses.

Israel havia sinalizado que não haveria mais um cessar-fogo com o Hamas. Agora, declarações oficiais já indicam que essa posição mudou e Israel possivelmente vai implorar um cessar-fogo ao Hamas. Essa seria mais uma vitória monumental e estratégica da Resistência. Mais do que tudo, no entanto, seria uma afirmação de que os imperialistas e sionistas foram jogados para as cordas. Ou aceitam a derrota em sua investida contra Gaza, com um cessar-fogo que pode resultar no fim da incursão atual, para liberar o Mar Vermelho, ou mantêm o genocídio arcando com as catastróficas consequências econômicas. De qualquer forma, sairia perdendo e essa demonstração de fraqueza pode ser vista como a oportunidade da vida de todo o Eixo da Resistência para pôr um fim em mais de 70 anos de ocupação israelense da Palestina. Não pode ser descartado um ataque coordenado em todas as frentes contra Israel.

As contradições políticas afetarão sobretudo os países do Oriente Médio, onde os governos terão de romper ao menos parcialmente com seus amos imperialistas para garantir sua manutenção ou cairão pela indignação das massas contra a traição à causa palestina. Já na Europa e nos Estados Unidos, o principal fator de desestabilização são as contradições econômicas, com a acentuação da queda brutal na qualidade de vida da maioria da população pelas consequências da insistência de seus governos em manter as guerras de agressão imperialistas.

Com um simples bloqueio marítimo, uma organização de rebeldes esfarrapados e esfomeados conseguiu sacudir os pilares de todo o sistema capitalista mundial, expondo claramente a sua extrema fragilidade. O grande barril de pólvora mundial – o Oriente Médio – está começando a explodir e a demolir todo o sistema em sua volta.


(*) Eduardo Vasco é jornalista especializado em política internacional, correspondente de guerra e autor dos livros-reportagem “O povo esquecido: uma história de genocídio e resistência no Donbass” e “Bloqueio: a guerra silenciosa contra Cuba”

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