Fim da globalização, sangue africano e ouro branco dos Andes

Lady Bharani – 13 de novembro de 2022

Série Lady Bharani pergunta a Quantum Bird

Pergunta: Em um de seus artigos recentes, magistral por sinal, o professor e jornalista independente argentino Eduardo Jorge Vior, afirma que, assim que a China ultrapassou os índices de produtividade das potências ocidentais, as mesmas decidiram abandonar a globalização – fenômeno que entre as décadas de 1970 e 1990 foi, dentre outros fatores, sobretudo financiado pelo petróleo barato.

Em seguida, já em um contexto mais atual, essas mesmas potências ocidentais optaram por conscientemente romper com as cadeias produtivas e de suprimento globais, valendo-se da pandemia de Covid como desculpa para tal. Hoje a área sob domínio atlanticista fechou-se praticamente a qualquer competição eurasiana.

Ainda segundo Vior:

Ao se fechar, o Ocidente desenhou um novo mapa da economia atlântica determinado pelos componentes das novas fontes de energia. Nas baterias recarregáveis, são utilizados lítio, níquel, cobalto, grafite, manganês, alumina, estanho, tântalo, magnésio e vanádio, em várias proporções, dependendo da tecnologia aplicada. Com exceção do lítio, concentrado sobretudo no triângulo entre Argentina, Bolívia e Chile, o Brasil ocupa o terceiro e o quinto lugar no mundo em reservas dos demais minerais. Não obstante, a anarquia e o desgoverno causados por quase 30 anos de guerra ininterrupta tornam muito barato saquear as reservas da África Oriental. Sangue africano e ouro branco dos Andes são peças complementares da nova estratégia transatlântica de dominação na qual as mineradoras canadenses desempenham um papel central. (tradução minha.)

Nesse sentido, trago duas perguntas. Podemos entender, então, que estamos presenciando a formatação de um novo modelo de globalização? E com quais características?

E a segunda pergunta. Em uma matéria referenciada abaixo, a jornalista indiana Palki Sharma nos chama a atenção para o fato de que os carros elétricos, que usam baterias a base de lítio, cobalto e outros minerais raros, não podem se enquadrar na categoria de energia limpa, já que a exploração destes minerais, em sua maioria na modalidade artesã, é feita majoritariamente às custas de trabalho infantil escravo e vidas humanas, em condições subumanas de emprego. Tanto o artigo quanto a reportagem citam a dura realidade desse mercado na República Democrática do Congo, nação detentora de cerca de 70% das reservas mundiais de cobalto.

Em outras palavras, a gradual substituição das energias fósseis pelas fontes limpas e renováveis nem sempre menciona ao público o seu lado sujo, sangrento e explorador. Estima-se que apenas a indústria mundial de cobalto irá valer 13,63 bilhões de dólares em 2027, em grande parte propulsionada pela indústria de veículos elétricos inserida nesse mercado politicamente correto, mas falacioso da energia limpa. Qual seria a sua opinião e insights a esse respeito?

Quantum Bird: Olá Lady Bharani, muito obrigado por organizar esse bate-papo. Ótimas perguntas. Realmente pertinentes. Vou começar pela segunda questão que, no meu ponto de vista, em um certo sentido, é um exemplo específico dos aspectos que tocaremos respondendo a primeira questão. E gostaria de começar colocando para você e nossos leitores a seguinte questão:

As tecnologias que você mencionou fornecem energia limpa para quem?

Eu acredito que a resposta para essa simples questão seja crucial. Porque, veja bem, a cultura ocidental é dualista e excepcionalista, e moldou o ser humano ocidental médio a pensar de forma atômica e autocentrada. A atuação geopolítica dos regimes ocidentais são a representação cabal disto. Então, temos toda essa propaganda sobre tecnologias de geração e uso de energia limpa, e automaticamente imaginamos as grandes cidades ocidentais como Paris, São Paulo, Roma, Nova Iorque etc que hoje sofrem de poluição aguda de todo tipo, tornando-se oásis silenciosos com ar puro e água limpa a partir do uso dessas tecnologias. A propaganda não inclui o impacto ambiental e societário associado ao desenvolvimento e à produção dessas tecnologias. (grifo meu.)

A reportagem que você citou faz um trabalho excelente expondo o rastro de destruição que a indústria de mineração do cobalto deixa no Congo. Uma reportagem similar pode ser produzida sobre o lítio, na Bolívia, o ouro e o urânio em outros pontos da África etc. Outro aspecto frequentemente ignorado pelo público, e ausente na propaganda, é que a mineração desses elementos requer o uso de máquinas pesadas, rodando em motores potentes convencionais, ou seja, movidos a derivados de petróleo. Assim, podemos concluir que esse papo sobre energia limpa é puro ar frito.

O que de fato está em jogo aqui é um modelo de produção e uso de energia que permite poluir nas “colônias”, e rodar limpo na metrópole. A hipocrisia de tudo isto é de dimensões extra-galáticas. Vou repetir em outras palavras, para ficar mais claro. O cidadão eco-consciente ocidental queima o petróleo e polui o solo e as águas na África, América Latina e Ásia, para extrair – mais provavelmente, pilhar – os recursos para construir patinete, carro elétrico, painel solar, lâmpada led etc para manter sua metrópole limpinha, silenciosa e cheirosa. Sacou? Pois é… Simples assim. O jardim do Sr Borell precisa ficar sempre arrumadinho… Ademais, todos sabemos como os imperialistas e capitalistas ocidentais agem contra os países quando precisam de seus recursos. Lembra daquele tweet de Elon Musk sugerindo mudança de regime na Bolívia para garantir o suprimento de lítio para as baterias de seus carrinhos de brinquedo elétricos?

Como tudo isto se relaciona com a sua primeira questão? Bem, o que eu acabei de explicar é um típico exemplo do modelo de negócios que floresceu durante a era da globalização predatória imposta pelo capitalismo central ao Sul Global. A China sofreu bastante sob esse paradigma, mas conseguiu metabolizá-lo de modo a se tornar soberana econômica e tecnologicamente. E agora, as potências ocidentais que não podem mais competir e vencer dentro das regras do jogo que eles mesmo criaram estão demolindo tudo.

O paradigma alternativo, proposto pela China, Rússia, Irã e outras nações do Sul Global, baseia-se em uma globalização não predatória, dirigida pela multipolaridade, ou seja, acordos ganha-ganha, respeito à cultura e soberania dos Estados e desenvolvimento mútuo. A globalização ocidentalista era um jogo de soma-zero, onde o bem-estar na Europa e EUA, ou seja, de 25% da população mundial, implicava em miséria generalizada para os 75% restantes. A fúria predatória do capitalismo central está agora gradativamente se refletindo nos próprios centros do imperialismo ocidental, com os EUA canibalizando a Europa, o Japão e a Inglaterra. A etapa seguinte será os EUA se autocanibalizando. O que os povos da África e América Latina precisam entender é que não existe futuro digno para eles ao lado dos europeus e estadunidenses. Digo isto, coletiva e individualmente. A oportunidade de resgatar a própria dignidade é agora, uma chance como esta acontece uma vez a cada século como mencionou nosso amigo S. Glazyev. (grifo meu)

O lado negro dos veículos elétricos por Palki Sharma.

“Vamos dar um golpe em quem quisermos.” – Elon Musk


Fontes:
El saqueo anglosajón une a África con Sudamérica, por Eduardo Jorge Vior – 07 de novembro de 2022.

A pilhagem anglo-saxã une a África à América Latina, por Eduardo Jorge Vior – 07 de novembro de 2022.

The Dark Side of Electric Vehicles, por Gravitas Plus, matéria de Palki Sharma – 10 de abril de 2022.

Eventos como esses acontecem apenas uma vez a cada século por Sergey Glazyev – 27 de março de 2022.

Greta Tumberg: “Você roubou meus sonhos e minha infância!” A criança responde: “Escavando o cobalto para os seus carros elétricos o mais rápido que posso, Greta.”




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