30/11/2020, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation
O que é uma ‘Cortina de Ferro digital’? É quando as Big Digitals – como o Professor Michael Rectenwald denomina esses Golias Tech digitais – convertem-se em ‘governamentalidades’ servindo-se de termo cunhado por Michel Foucault para se referir aos meios pelos quais os ‘governados’ (i.e. ‘nós o povo’) assimilam e refletem de volta para o mundo uma atitude mental desejada pelas elites: “Pode-se indicar o mascaramento e o distanciamento social como instâncias do que Foucault tinha em mente em sua noção de governamentalidade”, sugere Rectenwald. E o que ‘deseja’ a tal ‘mentalidade’ desejada? Deseja que o planeta abrace a transfiguração da identidade e do modo-de-vida dos EUA e da Europa. O suposto presidente eleito dos EUA, as elites europeias e sobretudo as elites ‘ilustradas’, estão publicamente comprometidas com a tal “transformação”: “Agora tomamos a Geórgia, depois mudamos o mundo” (declarou Chuck Schumer, Líder da Minoria no Senado, celebrando a ‘vitória’ de Joe Biden); “a derrota de Trump pode ser o começo do fim do triunfo dos populismos de extrema direita também na Europa”, festejou Donald Tusk, ex-presidente do Conselho Europeu. Em resumo, a ‘Cortina de Ferro’ desce quando empresas supostas privadas (as Big Digital) interpenetram-se com o Estado e, em seguida, fazem-se de donas do Estado: já não é necessário persuadir o não crente de que a metamorfose aproxima-se. O não crente pode ser obrigado a se metamorfosear. Valores regressivos aderidos a identidades, raça e gênero rapidamente deslizaram para baixo do rótulo de ‘heresia’. E como militantes de “Vidas negras são importantes” não se cansam de repetir: “Silêncio não é opção. Silêncio é cumplicidade”. Com o advento da ideologia do Vale do Silício, de que teria ‘alcance’ onipresente, o diktat pode ser imposto se se converte a ‘verdade’ em arma, via a Inteligência Artificial, para que se alcance uma ‘justa igualdade de aprendizagem maquínica’ que só reflete os valores da próxima revolução. E pelo ‘aprendizado’ da Inteligência Artificial, aquela versão de ‘verdade’ binária superior e contra alguma ‘não-verdade’ que se oponha a ela (em oposição polar). Como aconteceu tal interpenetração? Graças a um mix de dinheiro da CIA para financiamento precoce de start-ups; conexões e contratos com agências do Estado, sobretudo com agências relacionadas à Defesa; e apoiando campanhas de propaganda a serviço de narrativas ‘governamentalistas’. Essas plataformas de Techs norte-americanas estiveram por algum tempo efetivamente fundidas no ‘Estado Democrata’ [orig. Blue State] – particularmente nos campos de Inteligência e de Defesa – a ponto de esses CEOs já não se verem, eles mesmos, como ‘parceiros’ ou ‘contratados’ do Estado, mas, sim, como alguma espécie de elite superior de líderes, competentes para modelar e dirigir com precisão o futuro dos EUA. Mas o objetivo deles é avançar para além da ‘esfera’ norte-americana, para uma noção de que tal elite oligárquica logo chegaria a dirigir uma futura ‘governança planetária’. Para essa ‘governança planetária’, uma das ferramentas com que poderiam contar, de IA, Análise de Dados, robótica e máquinas ‘que aprendem’ seria como o andaime matemático e digital em torno do qual o globo seria administrado em todas suas dimensões. Já não haveria política – só análise de dados e dados analisados. A flagrante tentativa das Big Techs e suas plataformas, e dos meios de comunicação de massa, para escrever, elas mesmas, a narrativa de Facebook e Twitter, para a Eleição de 2020 nos EUA – combinada com a campanha dos mesmos agentes, sempre a repetir e repetir que opiniões diversas só existiriam por intrusão da desinformação inimiga, de ‘mentiras’ emitidas pelo presidente dos EUA, ou simples e reles bosta ‘noticiosa’ – é apenas o primeiro passo para redefinir qualquer ‘oposição’ como riscos de segurança e inimigos do bem público. As referências a ‘heresia e desinformação’, além do mais, também cumprem a função de desviar a atenção para bem longe da cratera de desigualdades que ajudam a manter bem distanciadas as elites e grandes grupos de cidadãos comuns céticos. As elites podem ser muito bem conhecidas, elas mesmas, sim, pela corrupção e pelo enriquecimento ilícito. Mas, como cavaleiros sem medo, à frente dos seus fiéis no campo de batalha, as mesmas elites podem, sim, voltar a ser objetos de veneração da ‘mídia’ e do público em geral. Como heróis que podem convocar os fiéis “para avançar contra o mal”, numa ‘neoguerra civil’ contra a heresia… O passo seguinte já está sendo preparado – como Whitney Webb observa: Uma nova ciberofensiva foi lançada na 2ª-feira pela agência de inteligência de sinais do Reino Unido (ing. Government Communications Headquarters, GCHQ), que visa a atacar websites que publiquem conteúdo considerado “propaganda” [e que] levantem suspeitas contra o desenvolvimento da vacina contra Covid-19 patrocinada pelo estado – e as corporações multinacionais da indústria farmacêutica envolvidas. Esforços similares estão em andamento nos EUA, com os militares já financiando uma empresa apoiada pela CIA (…) para desenvolver um algoritmo de IA especificamente para detectar novos websites que promovam desinformação “suspeita” relacionada à crise do Covid-19 e ao esforço de vacinação conduzido pelos militares norte-americanos conhecido como Operation Warp Speed (Operação Velocidade Warp)[1]… O Times noticiou que o GCHQ “lançou uma operação de ciberofensiva para abortar a propaganda antivacina que está sendo distribuída por estados hostis” e “usa uma caixa de ferramentas desenvolvida para enfrentar a desinformação e o recrutamento material promovido pelo Estado Islâmico” para tal finalidade (…) a ciberguerra do GCHQ não derrubará só a “propaganda antivacina”; também visa a “derrubar as operações dos ciberatores responsáveis por aquela propaganda, inclusive com encriptação de seus dados de modo a que não tenham acesso aos próprios dados; e com bloqueio das comunicações entre eles.” O Times garantiu que “o governo considera o problema de informação falsa sobre inoculação como prioridade cada dia mais decisiva, conforme se aproxima a viabilidade de uma vacina confiável contra o coronavírus”, sugerindo que os esforços se tornarão cada dia mais incisivos, conforme se aproxime a aprovação de vacina viável. Esse movimento mais amplo de pivô na direção de definir supostos ‘antivacinistas’ [ing. “anti-vaxxers”] como “ameaças à segurança nacional” já vem crescendo ao longo de grande parte do ano, puxado em grande parte por Imran Ahmed, CEO do Centro para Combate ao Ódio Digital com base no Reino Unido [ing. UK-based Center for Countering Digital Hate] membro do Comitê Diretor de Combate ao Extremismo [ing Steering Committee on Countering Extremism] da Força-Tarefa Piloto do governo do Reino Unido. Ahmed declarou ao jornal The Independent do Reino Unido, em julho que “irei além de apenas considerar os ‘antivacinistas’ como divulgadores de teorias da conspiração. Para mim, são grupo extremista que configura risco à segurança nacional”. Na sequência, disse que “depois que alguém é exposto a algum tipo de conspiração, é fácil levá-lo a abraçar visões de mundo mais radicais, que podem levar ao extremismo violento (…) Assim também, um think tank ligado à inteligência dos EUA argumentou, em documento de pesquisa publicado poucos meses antes de instalada a crise do Covid-19 que “o movimento dos ‘antivacinistas’ nos EUA é ameaça à segurança nacional, no evento de uma ‘pandemia com organismo desconhecido’.” Só para esclarecer: não é apenas a Comunidade de Inteligência dos ‘Cinco Olhos’ em ação. YouTube, a plataforma de vídeo dominante, pertencente à empresa Google, decidiu essa semana remover um vídeo do Instituto Ludwig von Mises, com mais de 1,5 milhão de visitas, porque contestava aspectos da política dos EUA para o Coronavírus. O que, afinal, está acontecendo?! O Instituto Mises foi declarado ‘extremista’ ou veículo para divulgação de desinformação a serviço do inimigo dos EUA?! (E, claro, há incontáveis outros exemplos.) OK, a conclusão é que… é a ‘China’. Talvez seja o medo de que a China ultrapasse os EUA, em termos econômicos e de Tech e, isso, sem demora. Não é segredo que EUA, Reino Unido e Europa em termos mais gerais, saíram-se muito mal na luta contra o Covid, e podem estar à beira de recessão e crise financeira graves. A China e em termos mais gerais, a Ásia, mostraram-se capazes de controlar muito mais efetivamente a pandemia. A China, na verdade, talvez se prove o único estado a mostrar crescimento econômico ao longo do ano que vem. Aqui está o xis da questão: a pandemia persiste. Os governos ocidentais evitaram lockdowns completos, na esperança de manter a economia aberta só com períodos de parcial distanciamento social – alternando entre ligar-desligar botões de um lado ou de outro. Mas simplesmente não estão conseguindo nada, de lado algum: a pandemia não está controlada e a economia está em cacos. A única saída que as elites conseguem entrever, nessa confusão, é vacinar toda a população, o mais rapidamente possível, de modo a conseguirem pôr toda a população a trabalhar, reaquecer a economia – e, com isso, impedir que a China empreenda sua grande marcha sobre o Ocidente. Mas 40%-50% dos norte-americanos dizem que recusarão vacinas. Estão preocupados com a segurança de longo prazo para a vida humana da nova técnica de mRNA[2] – preocupações as quais, tudo indica, estão destinadas a ser completamente desmoralizadas e expulsas das plataformas de mídia, para dar lugar a “necessária” saturação de mensagens e ‘notícias’ pró-vacina em toda a paisagem midiática de língua inglesa (também no Brasil, sem dúvida, por efeito de tão tradicional quanto ridícula macaqueação [NTs]). Absolutamente não há prova, até agora, de que qualquer dessas duas vacinas experimentais, seja a dos laboratórios Moderna seja a dos laboratórios Pfizer tenha evitado qualquer hospitalização ou qualquer morte. Se aconteceu, o público não ficou sabendo. Tampouco há informação sobre a duração de qualquer proteção que alguma das vacinas garantiria. Não se falou até agora sobre segurança. Não surpreende portanto a cautela com que a opinião pública espera resultados mais firmes. Essa cautela é, precisamente, o que GCHQ e as empresas Big Digital planejam pulverizar. A Cortina de Ferro Digital não tem a ver só com os EUA. Algoritmos e mídias sociais norte-americanos também saturam a Europa. E a Europa tem seus ‘populistas’ e seus estados ‘deploráveis’ (atualmente, Hungria e Polônia), sobre os quais Bruxelas muito apreciaria ver descer a ‘Cortina’ de desqualificação e ostracismo político. Esse mês, Hungria e Polônia vetaram o orçamento de 1,8 trilhão de euros da União Europeia, incluído o pacote de recuperação, como retaliação contra o plano de Bruxelas de multar os dois países por terem violado princípios da União Europeia como ‘estado de direito’. Como o Telegraph nota, “muitas empresas europeias dependem do dinheiro e, com a ‘segunda onda’ do coronavírus atingindo o continente, Bruxelas teme que aliados do Grupo de Visegrád (República Tcheca, Hungria, Polônia, Eslováquia)” usem um boicote à recuperação econômica, para dar mais peso às objeções que tenham contra ‘multas’ que a EU impôs e eles, todas baseadas no ‘estado de direito’ europeu). Afinal, do que estamos falando? Bem… O ministro da Justiça de Orbán introduziu uma série de mudanças constitucionais. Cada uma delas dispara um conjunto de demandas judiciais, sempre nos termos da lei da União Europeia. A emenda que gerou mais revolta é uma emenda anti-LGBT, que declara explicitamente que a mãe é mulher, o pai é homem. Ainda haverá mais restrições contra adoção de crianças por casais solteiros e homoafetivos, a transição de gênero será limitada a adultos. O veto de Orbán é ainda mais uma evidência de que uma nova Cortina de Ferro desce pela espinha dorsal da Europa contemporânea. Novamente a ‘Cortina’ é cultural e nada tem a ver com legalidade e ‘lei’. Bruxelas não esconde seu desagrado por muitos países-membros, da Europa Central e do Leste ainda não terem subscrito valores ‘recém-despertos’ (i.e. woke values[3]). Na raiz desse desagrado está a tensão criada porque “enquanto a Europa Ocidental vai-se des-cristianizando, estados da Europa Central e do Leste vão-se re-cristianizando. – A fé, que sempre foi “dos principais pontos de convergência contra o comunismo”, serve agora como mola propulsora para o ressurgimento da identidade nacional pós-Guerra Fria, dessas nações. (Não é muito diferente de alguns grupos de eleitores dos EUA Republicanos conservadores que também estão voltando às suas raízes cristãs, ante a polarização da política nos EUA.) Esses eventos combinados apontam para um ponto chave da inflexão que se vê na política ocidental: uma constelação de aparatos de Estado e Estado-ampliado abertamente declararam guerra à opinião divergente (‘não verdadeira’), à ‘desinformação’ (o que venha de fora do país) e a opinião que não venha acompanhada de sua própria ‘verificação para confirmação dos fatos’. O fenômeno assume forma concreta na sanção silenciosa imposta pelas Big Digital e no policiamento punitivo pelas plataformas online, disfarçado como se fosse ‘controle de abusos’; nos programas de reeducação e programas de treinamento obrigatórios, em teoria social crítica e antirracismo em escolas e locais de trabalho; pela indução de comportamento de obediência passiva na opinião pública, mediante ações como apresentar como extremistas quem se oponha a vacinas, ou como risco à segurança nacional; e, finalmente, pela montagem de séries de espetáculos públicos e teatrais que ‘denunciam’ e ridicularizam os soberanistas e opiniões declaradas ‘atrasadas’ do ponto de vista cultural, que mereceriam ser ‘canceladas’. Por sua vez, promove-se um cânone completo de progressismo cujas raízes estão nos estudos da teoria social crítica, do antirracismo e de gênero. Há também a própria história revisionista (narrativas como a do Projeto 1619, do New York Times) jurisprudência progressiva para traduzir todo o cânone em lei concreta. Mas… e se metade dos EUA rejeitam o próximo presidente? E se Bruxelas insiste em impor seu próprio cânone progressista exclusivo? Nesse caso, a Cortina de Ferro descerá com estridência de metal jogado sobre pedras. Por quê? Precisamente porque os que aderem à missão de Bruxelas ‘para transformar’ veem que ‘denunciar’ transgressores pode ser sua trilha até o poder – um estado no qual a opinião divergente e a heresia cultural podem ser enfrentadas com violência (o que Bruxelas conhece pela expressão eufemística de ‘estado de direito’). O plano é manter os dissidentes em permanente passividade, e na defensiva, sempre temendo ser rotulados de ‘extremista’, e apavorar os que vivem em cima do muro, para que tudo aceitem. Manter uma política ocidental unificada pode já não ser possível sob essas condições. Quem sabe se, com os perdedores nessa luta (sejam quais sejam), encurralados pelo medo de serem culturalmente superados por forças que veem o modo de ser deles como heresia a ser purgada, possamos assistir a uma potente virada no rumo da autodeterminação política. Quando as divergências políticas tornam-se inconciliáveis, é possível que a única alternativa (não violenta) só apareça se se aprofundar a fissura na unidade política.[4] ******* [1] No universo ficcional de Star Trek, a dobra espacial (warp, em inglês) seria uma forma de propulsão que alcançaria velocidades superiores à da luz para viagens espaciais. Desse modo, tornar-se-ia possível para os personagens alcançarem galáxias em qualquer parte daquele universo fantasiado [NTs].[2] “No momento há duas candidatas a vacina cujos resultados dos testes de Fase 3 mostram-se promissores: uma dos laboratórios Pfizer & BioNTech, outra dos laboratórios Moderna. Essas duas vacinas, além dos resultados muito promissores, ambas são feitas com um “RNA mensageiro” [ing. mRNA]” (mais, aqui, ing.) [NTs].[3] São slogans de denúncia de “racismo antibrancos”, de “preconceito contra heterossexuais” e outras pirações desse tipo, declaradas ‘reação dos normais’ contra ideias declaradas ‘politicamente corretas’. Lê-se exposição razoavelmente compreensível (ing.) aqui. (NTs).[4] Orig. “When political differences become irreconcilable, the only (non-violent) alternative might come to be seen to lie with the fissuring of political union.” Tradução difícil. Correções e sugestões são bem-vindas. [NTs] |
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