Mohammed Alloush (The Cradle) – 11 de agosto de 2023
Riad está redefinindo seu papel como mediadora confiável e força diplomática na arena internacional, usando suas relações estratégicas com o leste e o oeste para alcançar essas ambições.
A reunião do fim de semana passado em Jeddah de mais de quarenta nações apontou um marco significativo no cenário político da Arábia Saudita. O evento, ostensivamente para promover as ‘conversações de paz’ na Ucrânia, forneceu uma plataforma para o reino revelar sua visão diplomática no cenário global e redefinir seu papel na formação do mundo multipolar.
Para Riad, hospedar esta cúpula sobre a questão contenciosa da guerra na Ucrânia teve um profundo simbolismo. O príncipe herdeiro Mohammed bin Salman (MbS), governante de fato da Arábia Saudita, há muito enfrenta o isolamento internacional após o assassinato sancionado pelo Estado do jornalista dissidente saudita Jamal Khashoggi em 2018.
Entretanto, este capítulo foi encerrado: de braços abertos, o Ocidente coletivo embarcou em uma jornada para restabelecer os laços políticos e econômicos com Riad.
Uma reportagem do New York Times na semana passada destacou como as discussões sobre a Ucrânia em Jeddah não apenas colocaram a Arábia Saudita na grande mesa sobre uma questão global crítica, mas também ofereceram a MbS “outra chance de tentar se posicionar como um líder mundial com influência bem além de sua região e como um mediador que pode trazer nações poderosas para a mesa, mesmo enquanto luta para acabar com o envolvimento de seu próprio país em uma guerra devastadora no Iêmen.”
Triunfos diplomáticos sauditas
Esta não é a primeira vez que a Arábia Saudita assume um papel fundamental na resolução de disputas regionais. Embora a conferência internacional em Jeddah possa ser a última de uma série de feitos diplomáticos, Riad, em conjunto com a Turquia, já havia assumido a tarefa de facilitar a troca de prisioneiros entre a Rússia e a Ucrânia. Em uma demonstração de notável diplomacia, as autoridades sauditas desempenharam um papel fundamental ao garantir a libertação de dez prisioneiros de guerra mantidos pela Rússia, marcando um passo significativo em direção à desescalada.
O presidente Volodymyr Zelensky da Ucrânia, convidado da cúpula em Jeddah, implorou veementemente aos líderes da Ásia Ocidental que se unissem contra a Rússia. Em uma demonstração de solidariedade, a Arábia Saudita prometeu assistência financeira substancial para apoiar a causa de Kiev. Isso ecoa a história do Reino de intensificar-se como mediador em várias crises regionais, seja a guerra civil libanesa, o conflito árabe-israelense ou a turbulência mais recente no Sudão.
Uma conquista notável foi a reunião de 1989 em Taif, organizada pela Arábia Saudita, que catalisou o fim do conflito libanês de 15 anos. Em 2002, o Reino introduziu a Iniciativa de Paz Árabe, oferecendo a Israel um caminho para a normalização com os Estados árabes em troca de um Estado palestino viável, juntamente com a retirada de Israel dos territórios ocupados em 1967.
O papel da Arábia Saudita na normalização das relações entre a Etiópia e a Eritreia em 2018 é mais um marco em suas conquistas diplomáticas, promovendo a harmonia entre Estados que estavam em desacordo.
A visão de MbS na redefinição da diplomacia
O conceito de “inevitabilidade do renascimento do Sul Global” parece ter atraído a atenção de MbS. Este jovem líder visionário e fervoroso, impulsionado por uma crença inabalável no potencial de mudança transformadora, embarcou em um caminho diferente de seus predecessores na Casa de Saud.
Ele assumiu uma postura ousada no envolvimento direto em questões regionais, do Iêmen à Líbia, Líbano e Egito. Por sua vez, ele se moveu em direção a uma nova estratégia diplomática semelhante a uma mudança revolucionária de paradigma ao lidar com assuntos externos.
MbS compreende as desvantagens dos conflitos regionais, exemplificados pela guerra do Iêmen, e as limitações das manobras diplomáticas tradicionais ao lidar com os principais atores regionais, como o Irã. Isso levou a uma mudança dramática de táticas de confronto ou intervenções militares em direção a uma estratégia diplomática caracterizada por tato e sutileza.
Um momento crucial nessa trajetória foi a cúpula Al-Ula dos líderes do Conselho de Cooperação do Golfo (GCC) em janeiro de 2021, que marcou a retomada de relações totalmente normalizadas entre a Arábia Saudita e o Catar – uma prova do poder da diplomacia branda.
À medida que o cenário global passa por profundas transformações, com a ascensão da China e da Índia, a postura resoluta da Rússia em relação à expansão europeia da OTAN, a vacilação da influência dos EUA na região e a ascendência de potências regionais como Turquia e Irã, os contornos da política mundial ainda estão evoluindo.
A Arábia Saudita faz parte da multipolaridade
A Arábia Saudita adotou o conceito de “multipolaridade emergente”, uma perspectiva que prevê uma nova ordem mundial livre da hegemonia ocidental. Essa mudança de paradigma foi perceptível quando a Arábia Saudita sediou a histórica cúpula China-Árabe em dezembro de 2022, com a presença do presidente chinês Xi Jinping.
Mais recentemente, em junho, durante a Conferência de Negócios Árabe-China em Riad, o ministro de investimentos saudita, Khalid al-Falih, disse à CNBC TV:
“Gostamos de acreditar, e acho que está provado, que o reino é uma parte significativa desse mundo multipolar que surgiu. E vamos fazer a nossa parte, não só no desenvolvimento da nossa própria economia, mas também no desenvolvimento da nossa região e na divulgação do que temos em termos de oportunidades de desenvolvimento, também para África, Ásia Central, o subcontinente indiano.”
Sem dúvida, uma faceta central da cúpula de Jeddah sobre a Ucrânia reside na participação de Estados que mantiveram uma postura neutra, tratando o conflito como um confronto entre a Rússia e o Ocidente.
Enquanto a narrativa ucraniana ressoa nos espaços ocidentais, a perspectiva de Moscou sobre as origens e dimensões do conflito conseguiu permear o Sul Global.
A iniciativa liderada pela Arábia Saudita reuniu magistralmente outros países – aqueles que hesitaram em se alinhar com os empreendimentos ocidentais – para reforçar o apoio à Ucrânia. Notavelmente, a China e a Índia, notáveis por sua ausência em uma cúpula anterior da Ucrânia em Copenhague, já fizeram sentir sua presença em Jeddah.
A decisão de participar está ancorada não apenas em seu desejo de cultivar relações positivas com a Arábia Saudita, mas também em sua abordagem pragmática de engajamento. Ao “participar e discutir”, esses Estados percebem um risco mínimo, abstendo-se de qualquer compromisso com o plano do presidente Zelensky que possa antagonizar a Rússia e seu presidente Vladimir Putin.
Sinergia saudita com Rússia e China
Lembrando o papel instrumental que Pequim desempenhou em facilitar a reconciliação iraniana-saudita, é evidente que existem múltiplas arenas nas quais os interesses chineses e sauditas se alinham. O principal deles é a apreensão compartilhada sobre a potencial turbulência econômica que as hostilidades desenfreadas poderiam criar nas margens de um de seus maiores mercados, a Europa.
A visão estratégica de Riad alinha-se a com outras nações do BRICS, como Índia e Brasil, que reconhecem que sua influência combinada, como um coletivo de potências intermediárias, pode hoje deixar uma marca indelével no cenário global.
A cúpula de Jeddah demonstrou a capacidade de Riad de mobilizar a participação internacional, particularmente dentro da influente estrutura do G20. Essa mudança marcante na abordagem ilustra o pivô da Arábia Saudita de terceirizar passivamente suas preocupações de segurança regional para assumir proativamente o gerenciamento direto de seus interesses estratégicos.
Em alguns aspectos, a guerra na Ucrânia foi um presente de boas-vindas para os sauditas, efetivamente obrigando uma visita do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, para consertar os laços bilaterais. Ao longo da crise, MbS habilmente manobrou as súplicas de Washington para aumentar a produção de petróleo, alinhando-se resolutamente com a Rússia para manter os preços do petróleo em níveis propícios para sustentar o orçamento de Riad e os ambiciosos empreendimentos de infraestrutura.
Com o envio do conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, para Jeddah, o governo Biden transmitiu inequivocamente seu desejo de consertar suas diferenças com o reino e agir com mais deferência em relação aos sauditas.
Enquanto as discussões de paz anteriores em Copenhague renderam resultados modestos, a Arábia Saudita está bem posicionada para sustentar o ímpeto diplomático necessário para arquitetar uma solução pacífica para o conflito, enquanto habilmente evita qualquer percepção de alinhamento indevido com a Rússia.
Pragmatismo geopolítico
A estratégia de MbS é marcada por uma abordagem sutil às diretrizes dos EUA, o que significa uma inclinação para apoiá-las seletivamente, ao mesmo tempo em que forja colaborações robustas e estratégicas com potências rivais. Esse sentimento crescente na Arábia Saudita ressalta uma mudança perceptível de ver o Ocidente como o único determinante dos assuntos globais.
Nesse sentido, a Arábia Saudita, sob a liderança de fato de MbS, esforça-se para fortalecer os laços com as potências orientais e ocidentais. A motivação por trás dessa diplomacia multifacetada está enraizada no desejo do reino de se posicionar como um intermediário imparcial capaz de facilitar diálogos construtivos entre lados em conflito. Esse papel aumenta a estatura de Riad no cenário global.
A liderança saudita reconhece habilmente que o Ocidente está inclinado a um viés pronunciado e aberto em favor da Ucrânia no conflito em andamento. Em resposta, os sauditas estão promovendo seu potencial para desempenhar o papel central de um mediador confiável, especialmente com a Rússia.
Os interesses compartilhados de Riad com Moscou – especialmente no campo da produção de petróleo como membros da OPEP + – catalisaram o cultivo de relações bilaterais nos últimos anos. Essa abordagem pragmática reflete o reconhecimento do reino de que o excesso de confiança em Washington, particularmente em questões de segurança, pode não ser o curso de ação mais sensato.
Embora a guerra na Ucrânia e suas muitas repercussões negativas tenham afetado a psique das populações ocidentais – sobretudo europeias –, o diálogo em torno de sua resolução expandiu-se para abranger uma perspectiva global.
Ao se oferecer como um intermediário imparcial que pode fazer a ponte entre o leste e o oeste, a Arábia Saudita está agora se posicionando para impactar a resolução de conflitos fora da Ásia Ocidental, priorizando o diálogo, a estabilidade e a cooperação – os temas centrais da multipolaridade.
Fonte: https://new.thecradle.co/articles/from-pariah-to-peacemaker-jeddah-summit-reimagines-saudi-diplomacy
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