De democrata a ditador a diplomata: as mudanças de narrativa da mídia ocidental sobre Erdogan

Por Mohamad Hasan Sweidan em 24 de maio de 2023

Ao longo de 20 anos de governo de Erdogan, a narrativa da mídia ocidental mudou de chamá-lo de “reformador” para rotulá-lo de “ditador”. Agora, com o inesperado retorno eleitoral do presidente turco, o tom da mídia ocidental suavizou mais uma vez. 

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Crédito da foto: The Cradle

"A remoção de Erdogan sem dúvida seria recebida com o som de rolhas de champanhe estalando todo o caminho de Berlim a Washington.” -Olho do Oriente Médio 
"À medida que o Erdogan polarizador se tornou cada vez mais autoritário, Kilicdaroglu construiu uma reputação como construtor de pontes e promete restaurar a democracia.”– Associated Press
"No entanto, após 10 anos de crescente governo autoritário, o apetite por mudanças é forte.” – The Guardian 
"Especialistas dizem que a eleição de domingo vai determinar se a Turquia pode voltar ao regime democrático ou vai continuar o seu caminho em direção a uma autocracia." - NPR 
"As apostas dificilmente poderiam ser maiores, em primeiro lugar para os próprios turcos, que poderiam se preocupar justificadamente que o autoritarismo cederia à ditadura se Erdogan ganhasse outro mandato." – Washington Post 

Após o primeiro turno das eleições de 14 de maio na Turquia, o discurso ocidental de repente sofreu uma mudança notável. Antes das eleições presidenciais, muitos meios de comunicação ocidentais criticavam duramente o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, caracterizando-o como um ditador responsável pela erosão da democracia em seu país.

Por outro lado, eles retrataram coletivamente seu principal oponente a candidatura presidencial, Kemal Kilicdaroglu, como um líder que restauraria a democracia na Turquia. Mas essa situação mudou depois que a rodada inicial de votação foi inconclusiva, sem nenhum vencedor claro obtendo o limite de 50% de votos.

A gênese do interesse da mídia ocidental em Erdogan

O envolvimento da mídia ocidental com Erdogan começou em 2003, quando ele assumiu o papel de primeiro-ministro turco. Inicialmente, a imprensa estrangeira foi cautelosa em sua abordagem a Erdogan, já que a ascensão de um “líder islâmico” na Turquia moderna foi um desenvolvimento totalmente sem precedentes; em vez disso, eles viram isso como um “experimento” a ser observado.

Mas, paralelamente à visão em evolução de seus respectivos governos, o apoio da mídia ocidental a Erdogan começou a crescer nos anos que se seguiram, e seu Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) foi muitas vezes saudado como o “modelo de partido democrático-muçulmano”.

O elogio do ex-presidente dos EUA George W. Bush a Erdogan em 2004 encorajou ainda mais a mídia ocidental a apoiar o líder turco. Na época, Bush se referiu ao país como um “modelo” para a governança islâmica e exortou outras nações muçulmanas a seguir seu exemplo.

O ideal ocidental de um Estado islâmico é, em última análise, medido por sua adesão à ordem baseada em regras ocidentais, e assim Erdogan foi carinhosamente descrito como “um homem profundamente religioso com um talento para a rudeza e desordem da política democrática”. Um reformador piedoso, por assim dizer, que visava modernizar a Turquia e promover uma integração mais estreita com o mundo ocidental.

Mudando percepções

A narrativa ocidental sobre Erdogan começou a mudar por volta de 2009, após sua retirada da conferência de Davos por causa de um confronto com o então presidente israelense Shimon Peres. Durante o toma-lá-dá-cá verbal, Erdogan atacou Peres, dizendo: “Você mata pessoas, eu me lembro das crianças que morreram nas praias”.

Inicialmente, a mídia ocidental respondeu às ações de Erdogan em Davos com críticas cautelosas, pois acreditavam que isso poderia prejudicar a reputação internacional da Turquia como membro da OTAN. Mas o foco negativo da mídia sobre Erdogan se intensificou depois que a Turquia enviou uma flotilha humanitária para a Faixa de Gaza sitiada em 2010. A flotilha turca – cujo objetivo era quebrar o bloqueio a Gaza – consistia em navios que transportavam cerca de 750 ativistas de direitos humanos e políticos, bem como representantes da mídia internacional, materiais de socorro e ajuda humanitária.

Os comandos navais israelenses posteriormente invadiram os navios da flotilha, resultando em fatalidades e ferimentos. Foi neste ponto que a imprensa ocidental começou a destacar uma série de preocupações sobre Erdogan, promovendo um crescente sentimento de angústia sobre seus comportamentos.

Intensificar a ofensiva mediática

A adoção da retórica afiada e ofensiva do Ocidente em relação a Erdogan – desde a eclosão da chamada Primavera Árabe até as eleições de maio de 2023 – pode ser atribuída a três eventos principais.

Primeiro foi a resposta da Turquia à Primavera Árabe no início de 2011. Ancara começou a tomar decisões que foram percebidas como contrárias aos interesses geopolíticos ocidentais. Por exemplo, apesar do esquema turco-ocidental para derrubar o presidente sírio Bashar al-Assad, a Turquia entrou em confronto com as forças curdas apoiadas pelos EUA e apoiou vários grupos de oposição jihadistas alinhados com as ambições territoriais de Ancara no norte da Síria.

As relações ainda mais tensas com o Ocidente foram o apoio de Erdogan à Irmandade Muçulmana no Egito e sua forte oposição ao golpe de 2013 que derrubou o ex-presidente egípcio Mohamed Morsi e instalou o general Abdel Fattah al-Sisi em seu lugar.

Após a Primavera Árabe, a mídia ocidental intensificou suas críticas a Erdogan, com alegações de que ele estava perdendo o controle sobre a Turquia e que o governo do AKP logo chegaria ao fim. Questões de corrupção relacionadas a Erdogan começaram a proliferar na mídia, enquanto continuavam a reconhecer a contragosto sua popularidade em casa. O ataque da mídia a Erdogan aumentou após os protestos de 2013 na Turquia, levando a pedidos para reavaliar o relacionamento de Washington com Ancara.

A segunda motivação para a retórica ofensiva da mídia ocidental foi o referendo turco de 2017, que mudou a governança do país de um sistema parlamentar para presidencial. O sucesso de Erdogan na consolidação do poder eliminou quaisquer barreiras remanescentes entre ele e a mídia ocidental. O referendo ocorreu logo após uma tentativa de golpe fracassada, supostamente apoiada pelos EUA, após o qual Erdogan marginalizou aqueles que eram vistos como desleais a ele, solidificando seu controle sobre o estado.

Durante este período, o aumento do controle de Erdogan e a crescente independência e assertividade da Turquia não se encaixaram bem com os interesses ocidentais. Suas decisões “dissidentes” de comprar mísseis russos S-400, assinar um acordo de fronteira marítima com a Líbia, apesar das fortes objeções gregas e egípcias, consolidar as relações com o Irã e desafiar as sanções ocidentais contra a Rússia tensionaram ainda mais o relacionamento.

Assim, 2017 marcou uma mudança significativa na percepção da mídia ocidental da Turquia de Erdogan, passando de um país de maioria muçulmana “modelo” para “uma ditadura disfarçada de democracia da OTAN”.

A terceira motivação foi a eleição presidencial de 2023 na Turquia. Com o controle indiscutível de Erdogan sobre o Estado, a única possibilidade de mudança era através das urnas. A mídia ocidental viu esta eleição como uma oportunidade para apoiar um presidente que seria mais complacente em servir os interesses de seus respectivos países.

Como uma ferramenta poderosa para moldar a opinião pública, a mídia ocidental intensificou sua campanha pré-eleitoral contra Erdogan, na qual ele foi frequentemente caracterizado como servidor dos interesses da Rússia. Os meios de comunicação estrangeiros não apenas criticaram Erdogan; eles apoiaram ativamente seus rivais na tentativa de influenciar os eleitores turcos. A Turquia, de acordo com comentaristas ocidentais, estava em uma encruzilhada entre um retorno à democracia ou mais repressão sob o governo de Erdogan.

Discurso ocidental após as eleições

Após a primeira rodada de votação, no entanto, houve uma mudança notável no discurso da mídia ocidental, que começou a relatar eventos que se desenrolavam sem oferecer opiniões fortes. Surpreendentemente, alguns meios de comunicação começaram a defender Erdogan, com artigos sugerindo que ele não deveria mais ser rotulado de ditador, uma vez que havia claramente superado uma derrota definitiva nas eleições democráticas.

Esse retrocesso narrativo foi interessante por si só. O Ocidente e seus meios de comunicação claramente tinham grandes expectativas da derrota de Erdogan no primeiro turno das eleições presidenciais. A maioria das pesquisas de opinião favoreceu a derrota de Erdogan. Alguns observadores turcos sugerem que Erdogan deliberadamente permitiu que essas pesquisas favorecessem seus oponentes, com até mesmo alguns think tanks pró-Erdogan prevendo uma vitória da oposição. Essa estratégia pode ter sido destinada a aumentar a confiança da oposição e motivar os partidários de Erdogan a participar ativamente, já que Erdogan enfrentava uma ameaça real de perder.

Novo engajamento com Erdogan

O sucesso de Erdogan em garantir uma maioria parlamentar e potencialmente vencer a eleição presidencial pareceu silenciar seus críticos ocidentais. Em vez de manchetes atacando Erdogan, artigos começaram a surgir sobre como o Ocidente deveria aprender a viver com ele.

A mudança no tom da mídia ocidental se materializou mesmo antes do segundo turno das eleições (previsto para 28 de maio), que sugerem um abrandamento das críticas para mitigar o impacto sobre os candidatos que têm uma boa chance de ganhar nas eleições de domingo.

Ao observar essa mudança no discurso ocidental – que invariavelmente reflete as táticas e posições das autoridades atlantistas – pode-se argumentar que o Ocidente coletivo agora espera que Erdogan permaneça no poder. Ao atenuar os ataques, os governos ocidentais recuaram para o realismo pós-eleitoral, sinalizando sua intenção de se envolver com outro governo liderado por Erdogan – apesar de seu foco em manter relações equilibradas com atlantistas e eurasianistas.

O resultado das eleições de 14 de maio representou uma mudança significativa no tom da cobertura da mídia ocidental, que agora passou para uma abordagem de apaziguamento e uma cautelosa expectativa até o segundo turno das eleições presidenciais turcas neste fim de semana.

Curiosamente, a oposição, que até algumas semanas atrás era vista como crucial para “defender a democracia” na Turquia, agora está visivelmente ausente do discurso da mídia estrangeira. O político que foi rotulado de “ditador” em 13 de maio foi subitamente, apenas dois dias depois, não mais caracterizado dessa maneira. O establishment da mídia ocidental, ao que parece, tem sugestões diretas de suas capitais ocidentais.


Fonte: https://thecradle.co/article-view/25180/from-democrat-to-dictator-to-diplomat-western-medias-shifting-narratives-on-erdogan


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