Ricardo Teixeira da Costa* — 1 de maio de 2022 — [Publicado originalmente no geopol.pt, e reproduzido aqui com a permissão do autor]
É claro que da actual contenta na Ucrânia sairá um mundo novo, mas isso já se sabia desde que o sistema anglo-saxónico saído de Bretton Woods foi declarado falido há uns bons três anos. Portanto, não acredito que hajam grandes concessões nesta fase do jogo de nenhuma parte, nem da Rússia, nem dos anglo-saxões, que se digladiam no leste-europeu. Nem os peões ucranianos, nem as peças menores da UE, nem mesmo as torres francesa e alemã têm voz nisto; serão usadas pelo casal real, pois a dama está comprometida em defender o rei e disposta a sacrificar tudo por ele.
América chama aliados a sua casa
Convocada pelo secretário de Defesa dos EUA Lloyd Austin, e sob mando do chefe de Estado-Maior Conjunto norte-americano general Mark Milley, reuniram-se na passada terça-feira representantes de 40 países na Base Aérea de Ramstein, território norte-americano no oeste da Alemanha, para dar início ao chamado Grupo Consultivo de Defesa da Ucrânia, que tem previsto reunir-se mensalmente a partir de agora. O objectivo é claro, assegurar o seu controle a qualquer custo e estender a sua influência ao longo das fronteiras ocidentais da Rússia .
Marcaram presença os representantes dos 30 países da NATO, o ministro da Defesa da Ucrânia, os parceiros do Pacífico (Coreia do Sul, Japão, Austrália e Nova Zelândia), os africanos da Tunísia, Libéria, Marrocos e Quénia e ainda a Jordânia, o Qatar e Israel a representar o Médio Oriente. Porquê tantos convidados aparentemente escolhidos de forma aleatória fica no domínio da especulação.
Austin acabava de chegar de Kiev, onde negociara a entrega de novas remessas de armas a Zelensky, entre as quais certamente mais do que um punhado de mísseis Javelin e Stinger, fabricados pela Raytheon Technologies, da qual faz parte do Conselho de Administração e se fez milionário. Austin também fez saber que o tempo é essencial para prover ainda mais assistência militar, mas que a aposta “estende-se para além da Ucrânia – e mesmo para além da Europa”. Do you see the whole picture?
Já Milley advertiu que “o tempo não está do lado da Ucrânia”, pelo que teme que a operação russa em curso seja “potencialmente decisiva no leste”, prevendo assim que as próximas semanas venham a ser “críticas”.
Mais tarde, o comandante disse à CNN que “se a Rússia sair impune”, então “a chamada ordem internacional também se vai perder”. Lá se vai a ‘ordem internacional baseada em regras’ tão ao gosto de Washington, não restando mais do que um necessário redesenho da arquitectura de Defesa acorde com o novo balanço de poderes. Uma chatice para todo o complexo que suga aos contribuintes americanos mais de 800 mil milhões de dólares por ano e para os seus soldados que deixarão assim de poder campear impunemente pelo mundo, como ele mesmo o fez no Panamá, Haiti, Jugoslávia, Iraque e Afeganistão.
E ainda aproveitou a torrente de desinformação para distorcer as palavras de Serguei Lavrov sobre “o perigo é sério, é real, não se pode subestimar” da ameaça de uma terceira guerra mundial, acusando o ministro russo de ser “completamente irresponsável” e de “fazer ameaças nucleares”. É desta forma descarada que se criam as “verdades” para a grande massa incauta hoje em dia.
Do outro lado do Canal
Por seu lado, no dia seguinte, em Londres, em território não-britânico, a ministra dos Negócios Estrangeiros Liz Truss, reuniu na Mansion House da City uma requintada representação dessa rede que tanto gosta de conjurar em redor dos destinos do nosso continente.
Entre as pérolas que lançou a mandatária, devemos reter e tomar a sério pelo menos estas:
– “A Grã-Bretanha sempre resistiu aos valentões”. A icebreaking joke do protocolo.
– “Temos de duplicar o nosso apoio à Ucrânia”.
– “A guerra na Ucrânia é a nossa guerra (…) é um imperativo estratégico para todos nós. Armas pesadas, tanques, aviões – cavando fundo nos nossos inventários, aumentando a produção. Precisamos de fazer tudo isto”.
– “O Reino Unido enviou armas e treinou tropas ucranianas muito antes de a guerra ter começado”.
– “Rejeitamos igualmente a falsa escolha entre a segurança euro-atlântica e a segurança indo-pacífico. No mundo moderno, precisamos de ambas”.
– “Tudo isto exigirá recursos”. Disso ninguém duvida, afinal os contribuintes sabem que sempre acabam por pagar as guerras maquinadas pelas elites britânicas, com o seu sangue, suor ou lágrimas. Aqui não há nada de novo.
E num súbito arrebato de preocupação com os interesses dos continentais, Truss ainda acusou a China de estar “a construir rapidamente um exército capaz de projectar poder profundamente em áreas de interesse estratégico europeu”, estendo agora a mão a Bruxelas naquilo que descreve ser uma “Rede da Liberdade” contra os interesses iliberais da Rússia e China. Saem da Europa e acusam agora quem nela investe… Porquê?
Desta forma, a responsável do FCO pediu um reforço de todas as alianças, da NATO aos 5 Olhos, passando pela AUKUS e a Força Expedicionária Conjunta, reconhecendo que “precisamos de uma NATO global”, que seja capaz de “prevenir ameaças no Indo-Pacífico” e, entre outras coisas, assegurar “que democracias como Taiwan sejam capazes de se defenderem”. The whole picture, again.
Para quem tenha dúvidas do que estava falando, concluiu com um “Excelências, senhoras e senhores, a geopolítica está de volta”. É assim que fala um império falido e nós sabemos o que isso quer dizer. A única questão que fica no ar é: Quem é a dama e quem é o rei?
Ricardo Teixeira da Costa é editor do website https://geopol.pt, dedicado à história, teoria e actualidade geopolíticas.
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