Da Periferia à Prioridade: A África como uma Arena Fundamental para as Ambições da Rússia

Mohamad Hasan Sweidan – 2 agosto 2023 – [Publicado originalmente no The Cradle. Gentilmente traduzido e enviado por Enlil (Frente Oriental: https://t.me/frenteoriental) ]

A cúpula Rússia-África da semana passada destacou o interesse comum de cooperar contra o domínio ocidental. Enquanto Moscou lidera a luta, os africanos estão ansiosos para desempenhar um papel na formação da nova ordem multipolar.

Desde o início deste ano, a Rússia tem demonstrado um compromisso notável com a África, com o Ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, fazendo três visitas ao continente. Esses esforços diplomáticos ressaltam a importância crescente que Moscou atribui à cooperação com os países africanos.

Isso foi expresso pelo presidente russo Vladimir Putin em seu recente artigo publicado no site do Kremlin em 24 de julho sob o título “Rússia e África: Unindo esforços para a paz, o progresso e um futuro de sucesso”, onde ele afirmou:

“Valorizamos muito o capital de amizade e cooperação honestamente conquistado, as tradições de confiança e o apoio mútuo que a Rússia e os países africanos compartilham. Estamos unidos por um desejo comum de moldar um sistema de relações baseado na prioridade do direito internacional, no respeito aos interesses nacionais, na indivisibilidade da segurança e no reconhecimento do papel central de coordenação das Nações Unidas.”

A resposta dos países africanos foi sem precedentes, particularmente evidente na segunda cúpula Rússia-África realizada em 27 e 28 de julho. Um número surpreendente de 49 das 54 nações africanas participou ativamente da cúpula, indicando um desenvolvimento significativo nas relações entre as duas partes.

Interesses Russos na África

Esse maior envolvimento ocorre apesar da guerra na Ucrânia, que remodelou o cenário geopolítico e enfatizou a importância de expandir a cooperação com a África em meio à competição global por posições e influência.

O Conceito de Política Externa da Rússia, publicado no final de março, reconheceu a importância de “fortalecer e aprofundar a cooperação russo-africana em várias esferas em uma base bilateral e multilateral”.

O que torna o alcance de Moscou particularmente digno de nota é que ele vai além dos países com interesses estratégicos imediatos ou recursos abundantes. Notavelmente, a Rússia entrou em contato com Estados africanos menores, como Eswatini [1], destacando sua intenção de fortalecer sua influência e construir uma imagem positiva em todo o continente.

A resposta africana aos apelos da Rússia por laços mais estreitos cresceu substancialmente. A Segunda Conferência Parlamentar Internacional “Rússia-África” teve uma participação de 40 delegações de países africanos em março de 2023, em comparação com 36 delegações na conferência anterior realizada em 2019.

Da mesma forma, a segunda cúpula Rússia-África contou com a participação de 49 nações africanas em julho, em comparação com 43 países na cúpula inaugural em 2019.

Esses acontecimentos são especialmente significativos, pois os países africanos enfrentam uma pressão crescente das potências ocidentais para cortar os laços com Moscou devido ao conflito na Ucrânia. De acordo com o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, os países ocidentais, especialmente os EUA e a França, estavam exercendo “pressão sem precedentes” sobre os países africanos antes da cúpula Rússia-África em São Petersburgo.

Ajuda e Comércio

O intercâmbio comercial entre a Rússia e a África aumentou entre 2020 e 2022, após a primeira cúpula Rússia-África, passando de US$ 14 bilhões para US$ 18 bilhões, e espera-se que dobre em 2030.

Embora o comércio da Rússia com a África continental ainda seja relativamente modesto, quatro países se destacam como parceiros cruciais: Argélia, Egito, Marrocos e África do Sul, que respondem por 70% do comércio total.

Os principais parceiros comerciais da África.

Apesar de estar no final da lista de parceiros comerciais da África e contribuir com apenas 1% dos investimentos estrangeiros diretos no continente, a política da Rússia para a África está evoluindo rapidamente. O Kremlin reconheceu a importância cada vez maior da África e buscou novas parcerias em nível global, aprofundando a cooperação existente em face das enormes sanções ocidentais.

Um esforço significativo da Rússia para fortalecer os laços com a África é seu compromisso com a educação. Em 2023, a Rússia ofereceu um recorde de 4.700 bolsas de estudo para estudantes africanos, um aumento considerável em relação às 1.900 bolsas concedidas em 2019.

Além disso, a Rússia surgiu como o principal fornecedor de armas para a África, respondendo por 44% das principais importações de armas para a região entre 2017 e 2021. Esse domínio supera outros importantes participantes como os EUA (17%), a China (10%) e a França (6,1%).

Presença russa na África.

Na recente cúpula Rússia-África, o Presidente Putin enfatizou o compromisso da Rússia com a cooperação técnico-militar, assinando acordos com mais de 40 países africanos e fornecendo a eles várias armas e equipamentos. Alguns desses acordos envolveram até mesmo o fornecimento de ajuda gratuita, demonstrando o compromisso da Rússia em apoiar as nações africanas em sua luta contra o terrorismo.

Libertação da Exploração Neocolonial

Nas rápidas transformações geopolíticas da atualidade, a África surgiu como uma arena para as principais potências concorrentes. Em meio a essa luta por influência, a Rússia e os países africanos encontraram pontos em comum em seu interesse compartilhado de cooperar contra o domínio ocidental.

Moscou se posiciona como líder da resistência antiocidental, enquanto os Estados africanos veem uma oportunidade de se libertar dos grilhões do colonialismo ocidental e fazer valer suas vozes na formação da nova ordem multipolar.

Para entender a dinâmica do atual relacionamento russo-africano, o contexto histórico é essencial. O legado das políticas coloniais ocidentais continua sendo um elemento fundamental na cooperação entre Moscou e os países africanos.

Muitos países africanos se identificam com a visão russa de um mundo multipolar, buscando uma presença mais equitativa nos assuntos globais. A Rússia capitaliza habilmente esse sentimento anticolonial, apresentando-se como um parceiro atraente e alinhado com os interesses do Sul Global, especialmente da África.

As recentes cúpulas Rússia-África forneceram uma plataforma para Moscou e seus parceiros africanos criticarem abertamente o Ocidente. Líderes como Brahim Traoré, de Burkina Faso, usaram uma forte retórica anticolonial para enfatizar a necessidade de se libertar da exploração neocolonial e da extração de recursos.

Além da retórica, a Rússia apoia suas palavras com ações. Na cúpula, o Presidente Putin cancelou US$ 23 bilhões da dívida africana e prometeu aumentar o investimento russo no continente. Moscou também destacou seu compromisso com a segurança alimentar africana, contrastando com as práticas ocidentais que priorizam os países desenvolvidos em detrimento dos países em desenvolvimento.

Dados da ONU mostram que 45% das exportações de alimentos da Ucrânia, exportados sob a Iniciativa de Grãos do Mar Negro assinada entre a Rússia, a Ucrânia, a ONU e a Turquia, foram para países desenvolvidos, em comparação com 49% para países em desenvolvimento.

Apenas 6% dessas exportações foram para os países menos desenvolvidos, incluindo os países africanos, o equivalente a aproximadamente 1,4 milhão de toneladas. No ano passado, a Rússia exportou 11,5 milhões de toneladas de cereais para a África, e quase outros 10 milhões de toneladas foram entregues no primeiro semestre de 2023.

Busca de Parcerias Colaborativas

O relatório da Conferência de Segurança de Munique, em fevereiro, destacou uma tendência preocupante para o Ocidente:

“Muitos países da África, da Ásia e da América Latina perderam a fé na legitimidade e na justiça de um sistema internacional que não lhes concedeu uma voz adequada nos assuntos globais, nem abordou suficientemente suas principais preocupações. Para muitos Estados, esses fracassos estão profundamente ligados ao Ocidente. Eles acham que a ordem liderada pelo Ocidente tem se caracterizado pela dominação pós-colonial, padrões duplos e negligência em relação às preocupações dos países em desenvolvimento.”

Como resultado, os países da região estão buscando novos parceiros que abordem o relacionamento como uma colaboração e não como um jogo de soma zero. Eles encontraram uma alternativa atraente no engajamento da Rússia, especialmente na retórica do Presidente Putin, que defende uma representação justa dos países africanos em fóruns internacionais como o Conselho de Segurança da ONU e o G20. Além disso, o compromisso de Moscou de reformar as instituições financeiras e comerciais globais para melhor atender aos interesses africanos repercutiu entre essas nações, preparando o terreno para uma cooperação mais profunda.

O crescente descontentamento com o sistema liderado pelo Ocidente e o fascínio de parcerias alternativas ajudaram a forjar laços mais estreitos entre o Kremlin e muitos dos líderes da África. Isso pode explicar os recentes acontecimentos no Níger e, antes disso, no Mali, onde golpes militares redirecionaram a política externa para longe do Ocidente e, em particular, do antigo governante colonial, a França.

Ganhando Terreno no Sul Global

O apoio de alguns países africanos, como Burkina Faso, Mali e Guiné, ao golpe no Níger, pode ser visto como uma mensagem de apoio à expulsão da influência e da presença francesas de longa data no país.

No pensamento geopolítico russo, a África se tornou uma região de maior importância e oportunidade, exigindo uma cooperação mais forte e relações multifacetadas. A abordagem de Moscou em relação ao continente africano baseia-se em três pilares principais: aumentar a influência por meio da cooperação, enfatizar sua posição de liderança entre os países antiocidentais e investir nos abundantes recursos da região.

A Rússia reconhece que o sentimento antiocidental predominante na África oferece uma oportunidade única para construir alianças e promover a causa da libertação dos legados coloniais. O conflito em curso entre a Rússia e o Ocidente vai além dos limites da Ucrânia e agora está se desenrolando em várias regiões, inclusive na África.

O Presidente Putin se posicionou habilmente como líder da resistência contra a influência ocidental, repercutindo efetivamente em muitos países do Sul Global, inclusive na África. Ao se alinhar com o desejo da África de se libertar do domínio histórico ocidental e das influências coloniais, a Rússia ganhou um terreno significativo.


Nota:

[1]. Eswatini: Oficialmente Reino de Eswatini, anteriormente denominada Suazilândia.

Enlil: Editor do canal público Frente Oriental no Telegram (https://t.me/frenteoriental), dedicado a História, Geopolítica e Defesa, com foco em China, Irã, Rússia e conflitos no Oriente Médio (sobretudo envolvendo as forças do “Eixo da Resistência” do Irã-Iraque-Síria-Líbano e Iêmen), na África e outras regiões da Ásia (sobretudo Central).

Fonte: https://new.thecradle.co/articles/from-periphery-to-priority-africa-as-a-key-arena-for-russias-ambitions

Be First to Comment

Leave a Reply

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.