Conversa na Redação

Lady Bharani e Dakini – 09 de dezembro de 2022.



Lady Bharani e Dakini perguntam a Quantum Bird BRICS no cenário atual

A já conhecida série de perguntas conta agora com mais uma entusiasmada leitora e ávida observadora das questões do mundo em busca de coerência. Bem-vinda Dakini! Em ritmo de Copa do Mundo, vamos aqui fazer um curto bate-bola com Quantum Bird pautando algumas questões atuais que estão rolando nos campos geopolíticos da América Latina.

Pergunta 01: Como temos visto, a Operação Militar Especial (SMO) russa tem reconfigurado muito mais do que apenas o mapa geopolítico e socioeconômico de parte do coração da Europa, reverberando mundo afora. Analistas independentes como Andrei Martyanov, Dmitry Orlov e até mesmo o coronel norte-americano Douglas MacGregor, para citar apenas alguns, têm afirmado ao longo de suas análises que uma das possíveis consequências diretas da SMO, mesmo que a médio ou longo prazo, seria a reestruturação – ou destruição – das instituições globais que são, ou acabaram se tornando, vassalas do Hegemon atlanticista.

Tendo isso em mente, dentro dessa nova arquitetura multipolar emergente, esses analistas afirmam que a OTAN e a UE deixarão de existir e que a ONU poderá sofrer o mesmo destino ou ser totalmente reestruturada.

E, em meio a esse cenário, na América Latina, as maiores economias na região (Bra​s​il​,​ México, Argentina, Chile​, ​Colômbia, Venezuela e Peru) contam agora com governos de centro-esquerda. A efervescência parece estar em todo lugar. Honduras​ ​está seguindo seu caminho. Haiti, empobrecido por anos de neocolonialismo brutal americano, lutando por sua real independência. El Salvador, desafiando a lógica vigente de Washington de dominação, segue em tratativas ​para​ estabelecer tratado de livre comércio com a China.

Você concorda com essa linha de pensamento? E qual seria o papel do BRICS+ nesse embrionário cenário de transição que estamos vivendo? O que todo esse movimento implica para a segurança e estabilidade na América Latina? De que forma o poder hegemônico irá tentar frear essa incipiente mudança de ventos no continente​ e seu quintal​?


Bom dia Lady Bharani e Dakini, muito obrigado por organizarem mais esse bate-papo. É sempre muito agradável interagir com vocês.

Então, indo diretamente ao ponto, sim, concordo. Os desenvolvimentos que vocês citaram, e o parto lento, mas inexorável da multipolaridade em escala global e a consequente divisão do mundo em duas zonas, têm sido preditos há anos, pelo menos desde 2007, quando o Presidente Putin fez o seu histórico discurso na conferência de segurança de Munique. Trata-se de um processo inevitável e irreversível. As instituições do velho regime supremacista ocidental (o regime montado pelos Francos e atualmente parasitando os EUA) articuladas coletivamente, e posteriormente corrompidas pelos EUA e seus vassalos Europeus serão destruídas. Não existe mais lugar no mundo para a OTAN, mesmo que constrita aos países que de fato têm uma costa no Atlântico Norte, por exemplo. Também não existe mais lugar para uma ONU corrupta e propensa à violação de seu mandato. Muito menos para as instituições financeiras ocidentais, profundamente enviesadas pró EUA/EU, fomentadoras de concentração de renda (vide M. Hudson, Superimperialismo – livro) e instrumentais para a manutenção da supremacia ocidental via sanções econômicas, confiscos de reservas nacionais, etc. A primeira instituição a ruir provavelmente será o Dólar Americano, que deixou de ser uma moeda válida há muito tempo para se converter em um AMBIENTE PARA PRÁTICA DE PROSTITUIÇÃO E CAFETINAGEM FINANCEIRA. Para um exemplo concreto e recente do que estou falando, nossos leitores podem estudar o caso da FTX, que cobrimos extensivamente em nosso blog, e tirar suas próprias conclusões.

Nesse contexto, os BRICS+ são mais uma iteração, mais uma ferramenta, de abrangência global, para organizar e prover resiliência aos arranjos ganha-ganha que estão sendo articulados pelo Sul Global. Devemos sempre lembrar que BRICS+ & EAEU já contam com quase 75% da população do planeta, no mínimo, quase toda a indústria em operação e toda energia e matérias-primas necessárias para garantir a seus membros crescimento econômico e desenvolvimento cultural saudável e duradouro. E o mais importante. longe dos esquemas predatórios ocidentais.

A América Latina, assim como o resto do Sul Global, está exausta da intromissão, tutelagem e sabotagem dos EUA e Europa. O ressurgimento periódico de governos de centro-esquerda, de caráter nacionalista, deixa isso bastante claro. Esses governos são combatidos com golpes de Estado articulados em Washington, e outros truques da cartola imperial. Acabou de acontecer um desses golpes no Peru, inclusive.

Os países da região estão se organizando como possível para tirar proveito da decadência dos EUA/EU para restabelecer seus laços políticos, econômicos e diplomáticos, bem como, ampliar sua soberania. Por outro lado, como já comentei, os BRICS+ são um componente fundamental para o florescimento da multipolaridade em escala global e podemos esperar a adesão da Argentina, Venezuela, México e outros países latino-americanos no futuro próximo. Os EUA e Europa não estão observando esses desenvolvimentos de forma passiva. Muito pelo contrário, eles estão mais ativos que nunca, elevando o nível da sabotagem. Como acabei de citar, um golpe nesse contexto acaba de ser executado no Peru, Castilho está preso neste momento se não me engano.

As viagens contínuas de alto-funcionários do governo dos EUA ao Brasil e outros países da região, buscando provavelmente a corrupção de seus líderes e a fomentação de golpes de Estado, são uma evidência disto que estou dizendo. Os países da região jamais obtiveram qualquer vantagem dialogando com os EUA.

Pergunta 02: Sabemos que o mundo está gradualmente se desdolarizando e que este será um processo longo, complexo e meticuloso. Historicamente, a última vez em que algo semelhante aconteceu foi com a libra esterlina e foram necessárias duas Guerras Mundiais e uma Grande Depressão para que o dólar destronasse a libra. Por outro lado, a própria forma como os EUA têm se posicionado, sobretudo no campo das relações internacionais, ironicamente, vem contribuindo para acelerar ainda mais esse processo.

Recentemente, o Brasil e a Argentina assinaram um acordo para implementar um sistema de pagamento bilateral em moedas locais para o comércio de eletricidade. Paralelo a isso, como Pepe Escobar nos explicou formidavelmente em uma de suas últimas colunas, a EAEU está acelerando um projeto de um sistema de pagamento comum ao Sul Global, e acaba de apresentá-lo às nações do BRICS. No futuro, segundo ele, haverá uma união entre a EAEU-BRICS-SCO, “pois um novo sistema de pagamento internacional – e depois uma nova moeda – avançando ainda mais na estrada, terá como objetivo interromper para sempre a Era da Pilhagem centrada no Ocidente”.

Qual a sua opinião a esse respeito e você poderia nos explicar as repercussões de um novo sistema de pagamento olhando para isso hoje e a longo prazo? E também à luz de que esse novo sistema potencialmente não dependesse do controle e apoio de um único Banco Central?


A análise de Escobar sobre isso é impecável e pouco, se alguma coisa, poderia ser acrescentada às suas palavras. A relevância desse desenvolvimento é a negação ao Hegemon de um de seus mais poderosos recursos: a possibilidade de controlar a moeda de reserva internacional e, simultaneamente, de instrumentalizar o sistema financeiro global para exportar inflação, e agredir ou impor condições desfavoráveis aos países que buscam uma gestão mais soberana de seus próprios recursos e economia, para forçar a sua submissão. A proliferação de acordos comerciais bilaterais usando moedas nativas das partes envolvidas e o estabelecimento de um sistema de pagamentos global e fora da zona do dólar é o tiro de misericórdia na nuca da hegemonia financeira dos EUA/EU. Digo financeira, porque a hegemonia econômica eles já perderam. A situação de degradação econômica da Europa e dos EUA, acelerada pela tentativa de isolar economicamente a Rússia, demonstram isso claramente.

A gestão coletiva, e para o coletivo, do novo sistema de pagamentos deixa claro que não existe nenhuma intenção de convertê-lo em uma nova iteração do antigo sistema, e afasta definitivamente a possibilidade do seu abuso para o exercício de bullying financeiro.

Pergunta 3: As vozes da América Latina também tomam formas de “defensores das trevas”, quando compram a briga de Assange com o Hegemon. Lula se posiciona e considera a perseguição a Assange uma “ameaça à liberdade de imprensa em todo o mundo” segundo informa o jornalista Hrafnsson.

O que devemos entender está por trás desse movimento? Arriscamos cair muito na discursividade ou essa onda de diplomacia partindo da América Latina pode, sim, influenciar e moldar o novo mundo, as relações sul-sul e se tornar exemplo para outras partes do Sul Global, na totalidade?

Os líderes dos países da região estão habilmente usando o caso Assange para sinalizar seu compromisso com a democracia e a liberdade de expressão, enquanto educam didaticamente suas populações expondo a hipocrisia e a ambiguidade moral e ética dos EUA, da Europa e da Inglaterra. Simples assim.

Muito obrigada, Quantum Bird!

Referências:

Brasil e Argentina acabaram de concordar em usar moedas locais para o comércio bilateral de energia, esnobando mais uma vez o dólar americano, por Nick Corbishley – 29 de novembro de 2022.

O Sul Global cria um sistema de pagamento revolucionário, por Pepe Escobar – 30 de novembro de 2022.

Abróchese el cinturón, el imperio podría explotar, por Jochen Mitschka10 de novembro de 2022.

Pepe Escobar explica o mundo multipolar, por Pepe Escobar – 1º de dezembro de 2022.

Líderes latino-americanos pedem perdão e libertação de Julian Assange de sua “prisão injusta”, por Nick Corbishley – 02 de novembro de 2022.

FTX: Novo Ex-CEO da Enron descobre “Ausência completa de informações financeiras confiáveis”, US$ 3,3 bilhões em empréstimos à SBF, depósitos de clientes não registrados em balanços patrimoniais; Confirma backdoors de software, comunicações excluídas automaticamente, por Yves Smith – 18 de novembro de 2022

Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire – 3ª Edição – Michael Hudson – 30 setembro de 2021.

Colombia y Venezuela impulsan la integración continental – por Eduardo Jorge Vior – 02 de dezembro de 2022.


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