7/5/2019, Sergei Naryshkin, Diretor do Serviço de Inteligência Internacional da Federação Russa (reporta-se diretamente ao presidente). The Vineyard of the Saker, trad. ru. ing. de Scott (aqui retraduzido).
IMPORTANTE: Vídeo (11’) Fala do Comandante do Diretorado Central de Inteligência do Comando do Estado-maior das Forças Armadas Russas, vice-almirante Igor Kostyukov (ru.legendado ing.) à Conferência sobre Segurança Internacional, semana passada, em Moscou. A desgraça do Brasil, pelos EUA, já está no mapa do mundo: “Como Afeganistão, Líbia, Venezuela, Brasil” (no vídeo)
Senhoras e senhores,
Nossa reunião acontece num cenário de situação internacional extremamente complexa.
É cenário qualitativamente diferente de períodos anteriores da “guerra fria” durante o breve triunfo da unipolaridade dos EUA. Naqueles anos, o confronto entre as potências era tenso, mas de modo geral previsível e regulado por conjunto claro de regras. Hoje, o grau de desordem e incerteza cresce rapidamente. Velhos equilíbrios de poder estão colapsando, reescrevem-se leis e normas e destroem-se leis e normas em todas as esferas da cooperação entre Estados.
A principal razão para os processos em andamento está na nenhuma disposição do chamado ‘ocidente’ liderado pelos EUA, para reconhecer que a formação do mundo multipolar, hoje em andamento, é irreversível. Vê-se muito claramente o desejo, na elite euro-atlântica, de não deixar que a liderança lhes escape, liderança que, até recentemente, parecida incontestável.
No início do século 20, o filósofo alemão Walter Schubart disse, dos britânicos, que eles, diferentes de todas as demais nações, olhavam para o mundo como uma fábrica, e só procuravam lucros e vantagens para si.
Desde o desmonte da União Soviética, temos podido observar o modo como sucessores históricos e políticos dos britânicos – os norte-americanos – construíram e expandiram a fábrica norte-americana ou, a empresa norte-americana, que hoje arranca lucros em escala global. Muitos países como Iugoslávia, Afeganistão ou Iraque conheceram de perto o modelo de negócio dos norte-americanos.
Mas no início do novo século, algo começou a dar errado para os (Integracionistas) Atlanticistas.[1] Estados e povos começaram a obrigar Washington, em temos cada dia mais assertivos, a levar em conta também outras subjetividades geopolíticas soberanas.
O cataclismo financeiro global de 2008 mostrou o quanto já estavam abalados os alicerces da economia liberal global que o ‘ocidente’ construíra. Até hoje, ainda não se descobriram novas fontes para qualquer crescimento alto e estável.
Nos próprios países do ‘ocidente’, as populações não estavam preparadas para as severas consequências da crise. Tampouco estavam preparadas para os experimentos da sua própria elite em campos como o multiculturalismo e a substituição de identidades tradicionais. Prova disso é o forte crescimento na popularidade de forças nacionalistas e populares antissistêmicas. A sociedade disparou mensagem clara às respectivas autoridades, de que se sente enganada. Mas, em vez de se ocupar em buscar ou construir respostas adequadas, as elites no ‘ocidente’ põem-se a cantar contra uma mítica “interferência externa”; e organizam mais uma “caça às bruxas”.
Muitos dos problemas acima mencionados perderiam a relevância se a elite ‘ocidental’ aprendesse a considerar as relações internacionais não como um “jogo de soma zero” [o vencedor leva tudo; o perdedor fica com nada], mas como uma trilha que leva a soluções conjuntas para problemas que se acumularam.
Problema é que a ‘fábrica global’ ‘ocidental’, hoje a empresa global ocidental, nunca pode parar de crescer, nem sobrevive se seus lucros começam a declinar. Muito mais provável e previsível é que a empresa global [imperial] tente destruir todo o sistema internacional de leis e regras, e toda a arquitetura de segurança e estabilidade do mundo – que se tenham tornado desvantajosos e incômodos para ela.
Movidos por motivos sempre autorreferentes, os norte-americanos e seus aliados servis recorrem cada vez mais à força, para promover os próprios interesses, à custa de sacrificarem quaisquer negociações multilaterais.
Estão-se dedicando ininterruptamente a esforços para desestabilizar a situação em várias regiões do mundo. E, cada vez mais, agem não só sem qualquer atenção à lei internacional, mas, também, contra qualquer racionalidade ou senso comum.
Exemplo gritante é a situação construída em torno da Venezuela, que está hoje sendo destruída, como, antes, Líbia ou Síria. Até a Casa Branca já começa a falar dos riscos da imigração sem qualquer controle, planeja gastar bilhões de dólares para reforçar as fronteiras com o México, mas, ao mesmo tempo, infla mais um conflito civil, provoca mais um desastre nas condições humanitárias e, dessa vez – não a milhares de quilômetros de distância, mas ali, ao pé da própria porta. Essa arrogância e a tentativa alucinada de se autoenganar são, hoje, os principais desafios a serem enfrentados para preservar a segurança internacional.
Essa linha de ação temerária não se limita à Venezuela – que os EUA, a julgar pelo modo como se comportam, consideram província sua!
Vemos os EUA, o Reino Unido e seus mais leais aliados na OTAN afastarem-se gradualmente das regras e de regimes multilaterais, mesmo em questões críticas para a estabilidade estratégica como controle de armas e uso de Armas de Destruição em Massa.
Violam princípios do livre comércio – livre comércio que é fundamentalmente necessário para o funcionamento do sistema financeiro e econômicos que os mesmos EUA e Reino Unido e países da OTAN construíram!
Interpretam arbitrariamente a lei internacional, atacam militarmente territórios de Estados soberanos, matam dezenas e centenas de milhares de civis e impõem sanções econômicas e financeiras contra rivais políticos.
Até o conceito de “lei” já está convertido em piada, depois que os britânicos puseram em circulação, na interpretação da lei – e para condenar! –, a modalidade “altamente provável”. Outros países ocidentais acharam que bastaria essa ‘interpretação’ da lei para expulsar diplomatas russos, em massa (e receberam resposta especular).
A decisão dos EUA de reconhecer Jerusalém como capital de Israel e as colinas do Golan como território do estado judeu, contra Resoluções aprovadas pela ONU, e a retirada unilateral de Washington do acordo sobre o programa nuclear iraniano mina esforços coletivos para estabilizar a situação no Oriente Médio. Ainda mais grave, está sob ataque, também, o próprio princípio que recomenda negociações multilaterais para fazer gestão eficaz de crises.
Enfatizar sempre o uso da força, sem qualquer atenção aos princípios de soberania, integridade territorial e não interferência nos assuntos de outros Estados é elemento básico dos documentos doutrinais do governo Trump, inclusive da Estratégia de Segurança Nacional e da Estratégia dos EUA para Contraterrorismo.
Nesse cenário, muitas potências regionais também começam a agir mais agressivamente, contando, por exemplo, com assim decidir questões já antigas de fronteiras ou com fortalecer, pela via da força, as próprias posições militares e políticas. Efeito disso é uma reação em cadeia, e os mecanismos para respostas coletivas consensuadas vão-se estreitando cada vez mais, dia a dia. A impulsividade e a irreflexão substituem os processos racionais de tomada de decisões, e prevalecem as abordagens autistas, autorreferentes.
Aumenta hoje o risco dos chamados conflitos ‘por causa acidental’, porque se multiplicam as ações unilaterais e irrefletidas de atores individuais – e esses conflitos são difíceis de prever e, portanto, de tentar evitar. E todo o mundo, número sempre crescente de pessoas estão sendo colhidas em conflitos de variada intensidade. Efeito disso, qualquer pequena provocação pode bastar para disparar crise global.
Lembrem-se da Primeira Guerra Mundial. Nenhuma das grandes potências, acredita-se hoje, estava pronta para disparar a guerra; as grandes potências literalmente ‘caíram’ em guerra. E morreram dez milhões de homens e mulheres – e alguns países simplesmente desapareceram do mapa do mundo.
Mas há cem anos, os líderes dos Estados ainda podiam alegar, para justificar o morticínio em massa, que não havia mecanismos internacionais legais que conseguissem deter, ainda nos estágios iniciais, o avanço das contradições e dos impasses. Hoje existem tais instrumentos, mas o chamado ‘ocidente’ e especialmente os EUA, dedicam-se aplicadamente a destruir todos esses instrumentos e mecanismos, sem nada oferecer que os substitua, além de provocações típicas de valentões e provocadores de fundo de beco ou declarações ocas sobre alguma sua suposta ordem liberal universal – ordem e realidade na qual nem os próprios inventores confiam.
Essa leviandade irresponsável talvez possa ser explicada pelo fato de que os EUA não conhecem o trauma histórico da guerra, como o conhecem outros países, especialmente a Rússia e países europeus. Mas o mundo moderno (graças a empenhados esforços dos próprios EUA, vale lembrar) tornou-se tão interdependente, pequeno e liso, que nem os oceanos Atlântico e Pacífico permanecem como proteção suficiente, se o mundo chegar a um conflito global possível.
A Rússia, que passou por três guerras devastadoras nos últimos cem anos, jamais se cansa de convidar todos os membros da comunidade internacional para, juntos, buscar soluções para os problemas que se acumularam. Infelizmente, nem em áreas onde há negociações em curso – como na luta contra o terrorismo ou na segurança das informações – os parceiros ocidentais mantêm um ‘foda-se’ escondido por baixo da mesa [ing. Western partners continue to keep a middle finger in their pocket].
Não significa, claro, que tenhamos de cortar todos os contatos, e partir para o autoisolamento ou para isolá-los completamente. É preciso manter algum diálogo, se por mais não for, para impedir o colapso completo do sistema internacional existente o qual, pelo menos, oferece alguma estabilidade estratégica.
Na atual situação, é preciso escolher não o caminho da destruição, mas fortalecer os formatos globais e regionais e, simultaneamente transformá-los e aprimorá-los, no interesse da paz e da segurança em todo o mundo.
Se o ‘ocidente’ liderado pelos EUA não dá sinais de maturidade e de coragem para caminhar na direção da paz e da segurança, os demais centros de poder terão de projetar e construir um futuro global sem o ‘ocidente’.
Deve-se estabelecer uma nova ordem para o mundo, justa e sustentável, sob condições e nos formatos que assegurem a coexistência lado a lado de Estados e blocos regionais, sempre preservando o direito de cada um desses promover desenvolvimento original seu.
Não tenho dúvidas de que os agentes das forças da racionalidade e do senso comum em todos os países ocidentais estão conscientes dos riscos de desafiar a comunidade internacional. E a cada dia que passe, mais estarão sendo convocados interesses elementares de autopreservação.
Os contornos do sistema mundial futuro ainda estão envoltos em incertezas. Se conseguirá garantir genuína unidade na diversidade, ou se, mais uma vez, não passará de máscara para esconder o poder de um clube fechado de poucos, depende do nosso trabalho conjunto. Essa conferência de Moscou é plataforma excelente para esse trabalho, para aprofundar a cooperação no campo da segurança global e regional.
Muito obrigado pela atenção.
[1] Sobre “Atlanticistas Integracionistas” versus “Soberanistas Eurasianos”, ver o longo e brilhante ensaio, ainda imbatível, seis anos depois de publicado: “O longo (20 anos!) pas de deux de Rússia e EUA está chegando ao fim?” do analista militar russo The Saker, do blog The Vineyard of the Saker, traduzido em Redecastorphoto (1ª parte) e (2ª parte), 16/10/2013.
“Soberanistas Eurasianos” é o grupo no qual se reúnem o presidente Putin e seus ministros Lavrov (Relações Exteriores) e general Shoigu (Defesa), dentre outros; além da maioria do Parlamento eleito e todas as Forças Armadas da Rússia, hoje [NTs].
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