BRIC-o-rama: na estrada no Brasil, de olho na Rússia e na China

Pepe Escobar – 1º de maio de 2024

Acabei de mergulhar em uma experiência extraordinária: uma miniturnê de conferências no Brasil, abrangendo quatro cidades importantes: São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Belo Horizonte. Casas cheias, perguntas afiadas, pessoas fabulosamente calorosas, gastronomia divina – um mergulho profundo na oitava maior economia do mundo e principal nó do BRICS+.

Ao mesmo tempo, em que eu tentava apresentar os pontos mais sutis do longo e sinuoso caminho para a multipolaridade e as múltiplas instâncias de confronto frontal entre a OTAN e a Maioria Global, eu estava aprendendo sem parar com uma série de brasileiros generosos sobre as atuais contradições internas de uma sociedade de complexidade surpreendente.

É como se eu estivesse imerso em uma viagem psicodélica conduzida por Os Mutantes, o trio icônico do movimento Tropicália do final da década de 1960: da frente de negócios em São Paulo – com seus restaurantes de classe mundial e negociações frenéticas – à beleza ofuscante do Rio; de Salvador – a capital da África brasileira – a Belo Horizonte, a capital do terceiro estado mais rico da Federação, Minas Gerais, uma potência de exportação de minério de ferro, urânio e nióbio.

Chancay-Shanghai

Aprendi sobre como a China escolheu o estado da Bahia como, sem dúvida, seu principal nó no Brasil, onde o investimento chinês está em toda parte, mesmo que o Brasil ainda não seja um membro formal da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI).

No Rio, fui presenteado com um trabalho surpreendente sobre os estoicos Zeno e Cleanthes, do ensaísta Ciro Moroni, que investiga, entre outras questões, as equivalências entre a teogonia/teologia estoica e o Vedanta hindu, a tradição de cultura, religião e rituais sagrados na Índia até a era de Buda.

E, em uma espécie de sincronia psicodélica, senti-me como Zeno na Ágora enquanto debatíamos a guerra por procuração da OTAN contra a Rússia na Ucrânia em um lindo pavilhão redondo – uma mini-Ágora – na lendária Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, do outro lado da rua de uma fabulosa exposição dos Tesouros da Arte Peruana.

Para minha surpresa, um peruano, Carlos Ledesma, voou de Lima especialmente para a minha conferência e para a exposição; e então ele me contou sobre o porto de Chancay que está sendo construído ao sul de Lima, de propriedade de 70% da COSCO e o restante de capital privado peruano; esse será um porto irmão de Xangai.

Chancay-Xanghai: APEC em ação no Pacífico. Em novembro próximo, haverá três eventos importantes quase simultâneos na América do Sul: o G20 no Rio, a cúpula da APEC em Lima e a inauguração de Chancay.

Chancay será impulsionada por nada menos que cinco corredores ferroviários que poderão ser construídos – certamente com investimento chinês – desde o Valhalla do agronegócio no Centro-Oeste brasileiro até o Peru.

Sim, a China está em todos os lugares em seu maior parceiro comercial na América Latina – para desespero de um hegemon que enviou o reles funcionário Little Blinken a Pequim para ouvir a letra da nova lei do próprio Xi Jinping: é cooperação ou confronto, uma “espiral descendente”. Sua espiral descendente.

Um rio que vai do Tibete a Xinjiang

Na conferência de Belo Horizonte, dividi o palco com o notável Sebastien Kiwonghi Bizaru, do Congo, que supervisiona programas de doutorado na Universidade Candido Mendes, além de ser professor de Direito Internacional, após uma extraordinária jornada acadêmica.

Ele também é autor de um livro inovador que examina o papel altamente discutível do Conselho de Segurança da ONU nos conflitos dos Grandes Lagos, com foco em Ruanda, Burundi e República Democrática do Congo.

Com a pesquisadora Natacha Rena, debruçamo-nos sobre um mapa da China, refazendo suas viagens de leste a oeste no ano passado até a fronteira de Xinjiang, enquanto ela me informava sobre o surpreendente projeto do Rio Honggqi, ou Rio da Bandeira Vermelha, proposto pela primeira vez em 2017: nada menos que uma tentativa de desviar a água do Tibete para as terras secas e os desertos de Xinjiang, construindo um enorme rio artificial de mais de 6.000 km de extensão, incluindo os canais de derivação.

O rio projetado será um pouco menos longo do que o Yangtze, desviando 60 bilhões de metros cúbicos de água por ano, mais do que o fluxo anual do Rio Amarelo. Como era de se esperar, os ecologistas da China estão atacando o projeto, que pode já ter recebido um sinal verde oficial e está avançando discretamente.

E então, enquanto eu estava na estrada entre o Rio e Minas Gerais, os 10 Ministros da Economia e os chefes dos Bancos Centrais do BRICS se reuniram em São Paulo: e todos eles saudaram o impulso em direção a mecanismos “independentes” de liquidação de pagamentos. A Rússia é o presidente desse grupo crucial em 2024.

O Vice-Ministro das Finanças da Rússia, Ivan Chebeskov, foi direto ao ponto: “A maioria dos países concorda que o pagamento em moedas nacionais é o que os BRICS precisam”. O Ministério das Finanças da Rússia privilegia a criação de uma plataforma digital comum que reúna as moedas digitais dos bancos centrais dos BRICS e seus sistemas nacionais de transmissão de mensagens financeiras.

É importante ressaltar que, nessa reunião do BRICS 10, a maioria dos membros enfatizou que é a favor de ignorar totalmente o dólar americano para as negociações.

O Ministro das Finanças da Rússia, Anton Siluanov, foi ainda mais ousado: ele disse que a Rússia está propondo ao BRICS a criação de um sistema global de pagamentos independente e “despolitizado”.

Siluanov deu a entender que o sistema pode ser baseado em blockchain – considerando seu baixo custo e o controle mínimo exercido pelo Hegemon.

BRICS mapeia o novo mundo em São Paulo

Um dia antes da reunião em São Paulo, o ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, apoiou em Moscou o desenvolvimento dessas estratégias do BRICS, observando que “se conseguirmos desenvolver mecanismos financeiros independentes, isso questionará seriamente o mecanismo de globalização atualmente liderado pelo Ocidente”.

Como mais de 100 nações estão atualmente pesquisando ou implementando embrionariamente uma moeda digital em seus bancos centrais, um grande avanço é iminente na Rússia – um processo que venho acompanhando em detalhes desde o ano passado.

No final, tudo se resume à Soberania. Esse foi o ponto crucial dos debates mais sérios que tive na semana passada no Brasil, com participantes acadêmicos e em vários podcasts relacionados às conferências. É o tema abrangente que paira sobre o governo Lula, uma vez que o presidente parece representar a figura de um lutador solitário encurralado por um círculo vicioso de quinta-colunistas e elites compradoras.

Em Belo Horizonte, fui presenteado com mais um livro surpreendente de um ex-funcionário brilhante do governo, o falecido Celso Brant. Depois de uma análise incisiva da história moderna do Brasil e de suas interações com o imperialismo, ele lembra ao leitor o que o ilustre escritor e poeta mexicano Octavio Paz disse na década de 1980 sobre o Brasil e a China: “Esses serão os dois grandes protagonistas do século 21”.

Quando Paz deu seu veredicto, todos os indicadores favoreciam o Brasil, que, desde 1870, tinha o maior crescimento do PIB do mundo. O Brasil exportava mais do que a China e, de 1952 a 1987, estava crescendo a uma taxa anual de 7,4%. Mantendo a tendência, o Brasil seria hoje a 4ª maior economia do mundo (está entre a 8ª e a 9ª, lado a lado com a Itália, e poderia ser a 5ª, não fosse a desestabilização direta do Império a partir da década de 2010, culminando com a operação Lava Jato).

É exatamente isso que Brant mostra: como o Hegemon interveio para impedir o desenvolvimento brasileiro – e isso começou muito antes da Lava Jato. Kissinger já dizia na década de 1970 que “os Estados Unidos não permitirão o nascimento de um novo Japão sob a linha do Equador”.

O neoliberalismo radical foi a ferramenta privilegiada. Enquanto a China, sob o comando do Pequeno Timoneiro Deng Xiaoping e depois de Jiang Zemin, tornou-se totalmente soberana, o Brasil estava atolado na dependência neocolonial. Lula tentou – e agora está tentando novamente, contra todas as probabilidades e cercado por todos os lados, com o Brasil marcado como um “swing state” pelo Think Tankland dos EUA e vítima em potencial de novas rodadas de Guerra Híbrida imperial.

Lula – e algumas sólidas elites acadêmicas afastadas do poder – sabem muito bem que, como uma neocolônia, o Brasil nunca realizará seu potencial de estar, lado a lado com a China, como profetizado por Paz, o grande protagonista do século XXI.

Esse foi o principal resultado da minha viagem psicodélica pela Tropicália: Soberania. Viktor Orban – acusado por simplórios de ser membro de uma “Internacional Neofascista” – acertou em cheio com uma formulação simples: “O período inglório da civilização ocidental chegará ao fim este ano, substituindo o mundo construído sobre a hegemonia liberal progressista por um mundo soberanista”.


Fonte: https://strategic-culture.su/news/2024/05/01/bric-rama-on-road-in-brazil-with-eye-russia-china/

3 Comments

  1. Nel said:

    Quinta colunas que ele mesmo colocou nos ministérios.

    6 May, 2024
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    • Quantum Bird said:

      No papel, sim, foi ele mesmo quem colocou no ministério. Por outro lado, temo que a realidade seja um pouco mais complexa. De fato, acredito que a infestação do primeiro escalão do governo por quinta colunas era inevitável depois da série de acontecimentos que tiveram lugar no Brasil após 2013/14. O país foi totalmente “primaverado”.No ápice desse processo, temos:

      * a remoção quase sem resistência de Dilma do governo e
      * a instalação de Temer — um governo completo de quinta colunas —
      * o auge da lava jato — que consolidou o Brasil como um país oco, privado de indústrias nativas de alta tecnologia, e exportador de engenheiros qualificados. Os profissionais que não puderam sair, hoje dirigem UBER.
      * prisão de Lula.
      * eleição de Bolsonaro para presidência e do mais desqualificado e corrupto congresso nacional possível.

      A resposta da esquerda a este processo foi o identitarismo e a troca da liberação de Lula pela formulação de uma arquitetura política que eles gostam de chamar de Frente Ampla, que corresponde a replicação a arquitetura politica estadunidense no Brasil. Ou seja, atualmente a opção é entre o governo instalado, que emula na maior parte do tempo o Partido Democrata yanque ou a “extrema-direita”, que emula o que há de pior no Partido Republicano.

      Não existe lugar para esquerda trabalhista ou mesmo uma direita nacionalista.

      Nessas condições, a o unico governo possivel era um infestado por quinta colunas, que não permitirão a Lula conquistar qualquer nível de protagonismo que o permita alavancar poder para expulsá-los.

      6 May, 2024
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      • Jose Silva said:

        Lúcida sua abordagem.

        A classe média alta que conheci nas corporações tem ódio e nojo do brasileiro pobre que trabalha. Cansei de ouvir a citação “essa gente” pra se referir ao povo comum.

        Desconheço qualquer patrão que tenha me pago um bom salário que não fosse de atividade criminosa: além dos bancos, inclua a telefonia celular, que rouba descaradamente seus clientes, 99% de analfabetos digitais.

        Nunca negociei a eficiência ou a honra e enfrento, o “desemprego” e a onça do iFood de frente. Vejo os absurdos implantados por mais esse monopolio. Desde gente desnutrida, sem contrato de trabalho, fazendo entregas com bicicletas, numa cidade com ladeiras (isso é contratar problemas futuros para o SUS) e total atitude shadow company, da empresa mais sombria que o MercadoLivre antes de 2006. ZERO de atendimento pós venda, pra “loja” e pro cliente. Eles trabalham com estatistica, se der errado a entrega indenizam o cliente e a “loja” e fim de conversa, isso da margem a entregadores espertos que dizem que o pneu da moto furou, entre outros e dane-se loja e cliente. O pior uso da estatistica que ja vi. Fora a comissão deles que é um descalabro pra quem trabalha com escala: 33% do preço de venda. Na prática algo que vendo a R$ 20, no iFood sai por R$ 30. E os clientes, que podem fazer contato direto, preferem via iFood, é uma espécie de hipnose. Em 1 ano de atuação, mais de 800 pedidos, tivemos 4 contatos diretos espontâneos.

        Agora a pouco saiu uma entrega, cujo entregador com moto estava alcoolizado e eu, “loja”, na prática, não tenho como avisar isso.

        Resido na periferia de Guarulhos, aqui até os miseráveis (salvo raras excessões) falam que Lula é ladrão. Ninguem aqui, nem os “classe médias” resistiriam sem dificuldades a 6 meses sem salário. Incrível como o povo é manipulável. Infelizmente a corrupção faz parte de todo sistema politico, nem Requião escapou, assim sendo mais me vale o corrupto que me defenda.

        Guarulhos tem uma coisa peculiar, o numero de evangélicos pentencostais é grande: mais de 80% da classe média. Pela fé? Não, pelo interesse financeiro, boa parte das empresas são made in USA, como a Lincoln Electric, a 3km daqui – mas a minha maquina de solda é chinesa. Nunca vi tanta exigência de ingles fluente para empresas de pequeno porte como vejo aqui, parece piada. Na verdade uma lavagem cerebral de classe prostituida, que pra ser classe média vende a honra ao diabo e idolatra seu algoz.

        Aqui no bairro, ainda ontem (domingo), uma “fabrica” de fundo de quintal operando normalmente com empregados esperando o patrão. É o empreendedorismo braçal, sem conhecimento técnico, impregnado no desejo do “ter para ser”.

        Sendo a 14a economia em cidades do Brasil, batendo algumas capitais, Guarulhos tem um sistema de transporte antiquado, sem terminais integrados, com a passagem cara e com vias esburacadas. Sistema tão ruim assim em cidade grande, só igualado ao de Brasilia/DF, mas lá existe ciclovia. Quem pedalar pelas vias esburacadas de Guarulhos vai engolir umas 100x mais fuligem que em Brasilia. Aqui minhas bicicletas estão em repouso.

        6 May, 2024
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