Pepe Escobar – 10 de junho de 2024
No ano da presidência russa do BRICS, o Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo (SPIEF) tinha que entregar algo especial.
E foi o que aconteceu: mais de 21.000 pessoas, representando nada menos que 139 nações – um verdadeiro microcosmo da Maioria Global, discutindo todas as facetas do impulso em direção a um mundo multipolar, multinodal (itálico meu) e policêntrico.
São Petersburgo, além de todo o networking e da frenética negociação – US$ 78 bilhões conquistados em apenas três dias – elaborou três mensagens-chave interligadas que já estão repercutindo em toda a Maioria Global.
Mensagem número um:
O presidente Putin, um “russo europeu” e verdadeiro filho dessa deslumbrante e dinâmica maravilha histórica à beira do Neva, fez um discurso extremamente detalhado de uma hora sobre a economia russa na sessão plenária do fórum.
A principal conclusão: enquanto o Ocidente coletivo lançava uma guerra econômica total contra a Rússia, o estado civilizatório deu a volta por cima e se posicionou como a quarta maior economia do mundo em termos de paridade de poder de compra (PPP).
Putin mostrou como a Rússia ainda tem o potencial de lançar nada menos que nove mudanças estruturais abrangentes – globais -, um esforço total que envolve as esferas federal, regional e municipal.
Tudo está em jogo – desde o comércio global e o mercado de trabalho até as plataformas digitais, as tecnologias modernas, o fortalecimento das pequenas e médias empresas e a exploração do potencial fenomenal e ainda inexplorado das regiões da Rússia.
O que ficou perfeitamente claro é como a Rússia conseguiu se reposicionar além de contornar o tsunami de sanções – ilegítimas – para estabelecer um sistema sólido e diversificado voltado para o comércio global – e completamente ligado à expansão do BRICS. Os países amigos da Rússia já respondem por três quartos do volume de negócios de Moscou.
A ênfase de Putin no impulso acelerado da Maioria Global para fortalecer a soberania estava diretamente ligada ao fato de o Ocidente coletivo fazer o melhor – ou melhor, o pior – para minar a confiança em sua própria infraestrutura de pagamento.
E isso nos leva a…
Glazyev e Dilma agitam o barco
Mensagem número dois:
Esse foi, sem dúvida, o maior avanço em São Petersburgo. Putin declarou que os BRICS estão trabalhando em sua própria infraestrutura de pagamento, independente da pressão/sanções do Ocidente coletivo.
Putin teve uma reunião especial com Dilma Rousseff, presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) do BRICS. Eles conversaram detalhadamente sobre o desenvolvimento do banco – e, acima de tudo, conforme confirmado posteriormente por Dilma, sobre a Unidade, cujos traços foram revelados pela primeira vez com exclusividade pela Sputnik: uma forma apolítica e transacional de pagamentos internacionais, ancorada em ouro (40%) e nas moedas dos BRICS+ (60%).
No dia seguinte ao encontro com Putin, a presidente Dilma teve uma reunião ainda mais crucial, às 10 horas, em uma sala privada no SPIEF, com Sergey Glazyev, Ministro da Macroeconomia da União Econômica da Eurásia (EAEU) e membro da Academia Russa de Ciências.
Glazyev, que já havia dado total apoio acadêmico ao conceito da Unidade, explicou todos os detalhes à Presidente Dilma. Os dois ficaram extremamente satisfeitos com a reunião. Uma Dilma radiante revelou que já havia discutido a Unidade com Putin. Ficou acordado que haverá uma conferência especial sobre a Unidade no NDB em Xangai em setembro.
Isso significa que o novo sistema de pagamento tem todas as chances de estar na mesa durante a cúpula do BRICS em outubro, em Kazan, e ser adotado pelo atual BRICS 10 e pelo futuro próximo, o BRICS+ expandido.
Agora, para…
Mensagem número três:
Tinha que ser, é claro, sobre o BRICS – que todos, inclusive Putin, enfatizaram que será significativamente ampliado. A qualidade das sessões relacionadas ao BRICS em São Petersburgo demonstrou como a Maioria Global está enfrentando uma conjuntura histórica única – com uma possibilidade real, pela primeira vez nos últimos 250 anos, de fazer tudo para uma mudança estrutural do sistema mundial.
E não se trata apenas do BRICS.
Foi confirmado em São Petersburgo que nada menos do que 59 nações – e contando – planejam se juntar não apenas ao BRICS, mas também à Organização de Cooperação de Xangai (SCO) e à União Econômica da Eurásia (EAEU).
Não é de se admirar: essas organizações multilaterais agora finalmente se estabeleceram na vanguarda do impulso em direção ao multimodal (itálico meu) – e citando Putin em seu discurso – “mundo multipolar harmônico”.
As principais sessões para referência adicional
Todos os itens acima puderam ser acompanhados, ao vivo, durante os frenéticos dois dias e meio de sessões do fórum. Esta é uma amostra do que foi, sem dúvida, o mais envolvente. As transmissões devem ser muito úteis como referências para o futuro – até a cúpula do BRICS em outubro e além.
Sobre a Rota do Mar do Norte (NSR) e a expansão do Ártico. Melhor lema da sessão: “Precisamos de quebra-gelos!” A discussão essencial para entender como as atuais cadeias de suprimentos do comércio global não são mais confiáveis e como a NSR é mais rápida, barata e confiável.
Sobre a expansão dos negócios do BRICS.
Sobre as metas do BRICS para uma verdadeira nova ordem mundial.
Sobre os 10 anos da EAEU.
Sobre a integração mais estreita entre a EAEU e a ASEAN.
A mesa redonda do BRICS+ sobre a
Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (INSTC).
Essa sessão foi particularmente crucial. Os principais atores do INSTC são a Rússia, o Irã e a Índia – todos membros do BRICS. Os atores nas margens que lucrarão com o INSTC – do Cáucaso à Ásia Central e do Sul – já estão interessados em fazer parte do BRICS+. Igor Levitin, um dos principais assessores de Putin, foi uma figura-chave nessa sessão.
A Parceria da Grande Eurásia (GEP).
Essa foi uma discussão essencial sobre o que é eminentemente um projeto civilizacional – em contraste com a abordagem coletiva e excludente do Ocidente. A discussão mostra como a GEP se interliga com a SCO, a EAEU e a ASEAN e enfatiza a inevitável complementaridade das estruturas de transporte, logística, energia e pagamento em toda a Eurásia. Glazyev, o vice-primeiro-ministro Alexey Overchuk e a ex-ministra das Relações Exteriores da Áustria Karin Kneissl – sempre muito perspicaz – são os principais participantes. Extra – surpreendente – bônus: Adul Umari, Ministro do Trabalho em exercício no Afeganistão do Talibã, interagindo com seus parceiros da Eurásia.
Sobre a filosofia da multipolaridade.
Conceitualmente, esta sessão interage com a sessão GEP. Ela oferece a perspectiva de um diálogo intercivilizacional conciso sob a estrutura do BRICs+. Alexander Dugin, a irreprimível Maria Zakharova e o professor Zhang Weiwei, da Universidade de Fudan, estão entre os participantes.
Sobre policentricidade. Isso envolve todas as instituições da Maioria Global: BRICS, SCO, EAEU, CIS, CSTO, CICA, União Africana, o renovado Movimento dos Não Alinhados (NAM). Glazyev, Maria Zakharova, o senador Pushkov e Alexey Maslov – diretor do Instituto de Estudos Asiáticos e Africanos da Universidade Estadual de Moscou – discutem como construir um sistema policêntrico de relações internacionais.
Enquanto o Projeto Ucrânia enfrenta a desgraça…
Por fim, é inevitável contrastar o clima – esperançoso e auspicioso – da SPIEF com a histeria coletiva do Ocidente enquanto o Projeto Ucrânia enfrenta a desgraça. Putin deixou bem claro: a Rússia prevalecerá, não importa o que aconteça. O Ocidente coletivo pode reacender “a solução de Istambul”, como observou Putin, mas modificada “com base na nova realidade” no campo de batalha.
Putin também desarmou habilmente toda a paranoia nuclear pré-fabricada e sem sentido que infestava os círculos atlantistas.
Ainda assim, isso não será suficiente. Nos corredores lotados da SPIEF e em reuniões informais, havia uma consciência total sobre o desespero alimentado pelo belicismo do Hegemon, mascarado de “defesa”. Não havia ilusões de que a demência atual, que se faz passar por “política externa”, está apostando em um genocídio, não apenas por causa do “porta-aviões” na Ásia Ocidental, mas principalmente para intimidar a Maioria Global e levá-la à submissão.
Isso levantaria a séria possibilidade de que a Maioria Global precisasse construir uma aliança militar para impedir essa – planejada – Guerra Global.
Rússia-China, é claro, mais o Irã e a dissuasão árabe confiável – com o Iêmen mostrando o caminho: tudo isso pode se tornar obrigatório. Uma aliança militar da Maioria Global terá que aparecer de uma forma ou de outra: ou antes do desastre – que está chegando, planejado – para mitigá-lo ou depois que ele tiver engolfado totalmente a Ásia Ocidental em uma guerra monstruosa e cruel.
É preocupante o fato de que podemos estar quase lá. Mas pelo menos São Petersburgo ofereceu vislumbres de esperança. Putin: “A Rússia será o coração do mundo harmônico multipolar”. É assim que se encerra um discurso de uma hora.
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