Por Aaron Maté em 15 de outubro de 2023
Israel sempre escolheu a ocupação e a supremacia em vez da paz e da segurança.
(Foto de Ahmad Hasaballah/Getty Images)
“Em poucos dias”, escreve Amira Hass, a veterana correspondente israelense que reporta há décadas nos Territórios Ocupados, “os israelenses passaram pelo que os palestinos experimentaram rotineiramente por décadas e ainda estão experimentando”, incluindo “incursões militares, morte, crueldade, crianças mortas, corpos empilhados na estrada, cerco, medo, ansiedade por entes queridos, cativeiro… e humilhação abrasadora”.
A operação liderada pelo Hamas contra bases militares israelenses e bairros civis matou mais de 1.300 israelenses, além de pelo menos 120 reféns. Embora suportar esse tipo de violência possa ser rotina para os palestinos, Gaza está agora enfrentando o ataque militar israelense mais calamitoso até o momento.
Em menos de uma semana, até o momento em que este artigo foi escrito, Israel matou mais de 2.300 pessoas, incluindo 724 crianças. Os ataques israelenses atingiram edifícios residenciais, mesquitas, escolas, hospitais, universidades e civis em fuga. Israel intensificou seu bloqueio já incapacitante, cortando todos os alimentos, água e eletricidade. Ordenou a expulsão de 1,1 milhão de moradores do norte de Gaza, “uma sentença de morte para os doentes e feridos”, adverte a Organização Mundial da Saúde. Se Israel não restaurar o abastecimento de água de Gaza, diz a agência de refugiados palestinos das Nações Unidas, “as pessoas começarão a morrer de desidratação grave”.
Com uma invasão terrestre iminente, Israel está ameaçando cometer atrocidades em uma escala ainda maior, ao mesmo tempo em que adota uma retórica que exige limpeza étnica ou mesmo genocídio.
Justificando o que ele chamou de “cerco completo” de Gaza, o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, declarou que seu governo está “lutando contra animais humanos”. De acordo com o ex-vice-ministro das Relações Exteriores de Israel, Danny Ayalon, o plano israelense é forçar os palestinos a entrar no “espaço quase infinito no deserto do Sinai, do outro lado de Gaza”, onde podem viver em “cidades de tendas”. O presidente israelense Isaac Herzog declarou efetivamente que não há civis inocentes em Gaza, lar de “uma nação inteira… que é responsável”. Invocando a limpeza étnica de centenas de milhares de palestinos antes e depois da fundação de Israel em maio de 1948, conhecida como Nakba (“catástrofe”), Ariel Kallner, um parlamentar israelense, disse que Israel tem “um objetivo”: uma “Nakba que ofuscará a Nakba de ‘48”.
Mesmo que a ameaça de escalada regional cresça, o governo Biden endossa totalmente a sede de sangue de Israel. Os pedidos de cessar-fogo, declarou o secretário de imprensa da Casa Branca, são “repugnantes”. Os funcionários do Departamento de Estado foram instruídos a evitar mencionar os termos “desescalada/cessar-fogo”, “fim da violência/derramamento de sangue” e “restauração da calma”.
A posição de Biden é compartilhada por ambos os partidos políticos, com apenas um punhado de legisladores exigindo um cessar-fogo. Enquanto os EUA apoiam o ataque de Israel, “podemos estar prestes a ver uma limpeza étnica maciça” em Gaza, alertou um funcionário da União Europeia.
Como em casos anteriores, a mídia e o establishment político ocidentais justificam o apoio predominante ao ataque a Gaza, afirmando que Israel tem “o direito de se defender” e não tem outra opção contra os militantes palestinos que se recusam a aceitar sua existência.
Por uma questão jurídica, a primeira afirmação é falsa: embora Israel tenha um direito internacionalmente reconhecido de se defender de um ataque, não tem o direito de cometer crimes de guerra contra uma população civil sitiada. Além disso, Israel não está “se defendendo” de um agressor externo, mas de uma população interna aprisionada que também tem o direito reconhecido de resistir à ocupação militar (mas não, como é evidente, de matar e sequestrar civis israelenses). Adotar a narrativa israelense-americana, portanto, requer “ignorar a violência estrutural e a crueldade de Israel”, escreve Amira Hass, “e o contexto da desapropriação contínua do povo palestino de sua terra”.
Que Israel está “se defendendo” de um povo que colonizou há muito tempo é reconhecido nos níveis mais altos. Em um funeral de 1956 para um soldado israelense morto por palestinos em Gaza, o general Moshe Dayan, um dos líderes militares mais famosos de Israel, aconselhou o seguinte:
Não vamos jogar a culpa nos assassinos hoje. Por que devemos desaprovar seu ódio ardente por nós? Há oito anos eles estão sentados nos campos de refugiados em Gaza e, diante de seus olhos, transformamos as terras e as aldeias onde eles e seus pais moravam em nossa propriedade.
Dayan, tendo liderado as forças israelenses na campanha militar durante a fundação de Israel em 1948, reconheceu que seu país se originou com a desapropriação de palestinos e o roubo de suas casas. No entanto, seu reconhecimento não foi um ato de remorso. Em vez de tentar reverter ou corrigir a expulsão forçada de palestinos, Dayan decretou que Israel deveria manter a colonização com ainda mais agressão:
Somos uma geração que se instala na terra e sem o capacete de aço e a boca do canhão, não conseguiremos plantar uma árvore e construir uma casa… Não tenhamos medo de olhar diretamente para o ódio que consome e preenche a vida de centenas de árabes que vivem ao nosso redor. Não baixemos o olhar, para que nossos braços não enfraqueçam. Este é o destino da nossa geração. Essa é a nossa escolha – estar prontos e armados, resistentes e duros – ou então a espada cairá de nossas mãos e nossas vidas serão interrompidas.
O general Moshe Dayan faz um elogio fúnebre ao soldado israelense morto Roi Rutenberg — 19 de abril de 1956.
Nos quase 70 anos desde que Dayan disse essas palavras, Israel prestou atenção a elas, expandindo seu roubo de terras palestinas e criando novas gerações de refugiados. Como o B’Tselem, o principal grupo israelense de direitos humanos, reconheceu em 2021, isso transformou Israel em “um regime de apartheid” que “promove e perpetua a supremacia judaica entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão”.
Um momento fundamental para o regime de apartheid de Israel foi a conquista da Cisjordânia e da Faixa de Gaza em 1967, que colocou milhões de palestinos sob ocupação militar israelense. Como fez em 1956, Dayan articulou candidamente o que se tornou a política orientadora: “Vocês palestinos, como nação, não nos querem hoje, mas mudaremos sua atitude forçando nossa presença entre vocês”. Sob o governo israelense, disse o general israelense, os palestinos ocupados “viverão como cães, e quem sair, sairá”.
Para Gaza, uma das áreas mais densamente povoadas do mundo, essa ocupação israelense forçada confinou uma população de 2,3 milhões, mais da metade delas crianças, ao que o ex-primeiro-ministro do Reino Unido David Cameron descreveu como “uma prisão a céu aberto”, ou o que o professor da Universidade Hebraica Baruch Kimmerling chamou de “o maior campo de concentração que já existiu”.
O famoso “desengajamento” de Israel em 2005 foi falsamente descrito como o fim da ocupação de Gaza, quando, na verdade, apenas aprofundou o tormento. Após anos de bloqueios de fato, Israel impôs um cerco total em 2007. Esta foi a resposta de Israel e Washington à vitória surpresa do Hamas nas eleições legislativas palestinas do ano anterior, quando os eleitores nao optaram pela corrupta e inepta Autoridade Palestina apoiada pelo Ocidente. O Hamas então assumiu o controle total de Gaza em uma operação preventiva contra uma trama de golpe apoiada pelos EUA que buscava minar seus ganhos eleitorais. Hillary Clinton lamentou mais tarde que os EUA não conseguiram fraudar o voto palestino. “Se íamos forcar uma eleição, deveríamos ter certeza de que fizessemos algo para determinar quem venceria”, disse ela.
Como não conseguiu frustrar a democracia palestina, Israel, novamente com o apoio dos EUA, passou a punir os civis de Gaza por votarem da maneira errada. Controlando o fluxo de mercadorias e energia para Gaza, Israel restringiu as importações de alimentos com base em um cálculo do número preciso de calorias que seriam necessárias para devastá-los sem desencadear uma crise de desnutrição completa. “A ideia”, explicou o conselheiro israelense Dov Weisglass, “é colocar os palestinos em uma dieta, mas não fazê-los morrer de fome”.
Sob o controle israelense, mais de 90% da água de Gaza tornou-se imprópria para consumo humano. Em 2018, as Nações Unidas declararam que as condições eram tão terríveis que o território poderia se tornar “inabitável” dentro de anos. O cerco israelense foi acompanhado por ataques militares periódicos que mataram, feriram e deslocaram dezenas de milhares de palestinos.
O compromisso de Israel em impor a desapropriação e ocupação de palestinos também o levou a minar qualquer perspectiva da solução de dois Estados que alegava apoiar.
Os Acordos de Oslo de 1993 entre Israel e a Organização de Libertação da Palestina (OLP) foram “fundados em uma base neocolonialista”, nas palavras do ex-ministro das Relações Exteriores de Israel, Shlomo Ben-Ami. “Um dos significados de Oslo”, explicou Ben Ami, “foi que a OLP acabou sendo a colaboradora de Israel na tarefa de sufocar a intifada” – uma revolta popular e em grande parte não violenta contra a ocupação israelense – “interrompendo o que era claramente uma luta autenticamente democrática pela independência palestina”. Os arquitetos israelenses de Oslo, incluindo o primeiro-ministro Yitzhak Rabin, nunca “quiseram a autonomia conduzisse a um Estado palestino”.
Como um empreendimento neocolonial disfarçado de “processo de paz”, a era de Oslo viu uma duplicação da população de assentamentos israelenses em seus primeiros oito anos. A chamada “generosa oferta de paz” de Israel em Camp David em julho de 2000 – amplamente citada por autoridades israelenses e especialistas ocidentais como prova de uma disposição israelense de “compromisso” e uma recusa palestina de “coexistir” – foi de fato uma perpetuação do ardil neocolonial de Oslo. Como Ben-Ami, que participou da cúpula como um dos principais negociadores israelenses, reconheceu anos depois: “Se eu fosse palestino, também teria rejeitado Camp David”.
Em 2002, a Liga Árabe ofereceu a Israel a plena normalização em troca de uma retirada de todos os territórios árabes (sírios, libaneses e palestinos) que ocupou em 1967; a criação de um Estado palestino na Cisjordânia e em Gaza, com Jerusalém Oriental como sua capital; e uma “resolução justa” para a questão dos refugiados. A iniciativa foi posteriormente endossada pelo Irã, que assinou uma declaração em dezembro de 2017 pedindo uma “solução de dois Estados com Jerusalém Oriental como a capital do Estado da Palestina”.
A proposta exigiria que Israel encerrasse sua ocupação da Cisjordânia e abandonasse os blocos de assentamentos ilegais, que dividem terras palestinas e consomem desproporcionalmente reservas preciosas de água. Mais tarde, a Liga Árabe sinalizou que aceitaria trocas de terras mutuamente acordadas, como a Autoridade Palestina já havia feito, que poderiam manter algumas áreas de assentamento sob controle israelense. Mas mesmo a oferta israelense de maior impacto, apresentada pelo primeiro-ministro Ehud Olmert em 2008, rejeitou a paridade em qualquer troca territorial. Como o veterano negociador israelense Michael Herzog escreveu em 2011: “Nenhum governo israelense até o momento aceitou a estipulação palestina de que as trocas de terras sejam totalmente iguais em tamanho e ‘qualidade’”.
Israel rejeitou repetidamente a iniciativa diplomática da Liga Árabe e até se recusou a aceitá-la como base para novas negociações. Ao evitar a solução de dois Estados baseada nas fronteiras de 1967, Israel mostrou uma posição menos conciliadora do que até mesmo o Hamas, em um ponto, alegou apoiar.
Em uma entrevista de março de 2008, Khalid Mishal, chefe do departamento político do Hamas, afirmou que “a maioria das forças palestinas, incluindo o Hamas, aceita um estado nas fronteiras de 1967”. Em 2013, Ghazi Hamad, vice-ministro das Relações Exteriores do Hamas, reafirmou essa posição: “Concordamos com o estabelecimento de um Estado palestino com Jerusalém como sua capital, dentro das fronteiras de 1967, e que isso incluiria uma solução para o problema dos refugiados”.
Embora o Hamas rejeitasse explicitamente qualquer reconhecimento de Israel, sua aceitação de um Estado palestino dentro das fronteiras dos Territórios Ocupados – cerca de 22% da Palestina histórica – constituía um reconhecimento tácito das fronteiras internacionalmente reconhecidas de Israel do outro lado. Isso contrastava com a posição de Israel, que nominalmente aceitava a noção de um Estado palestino, mas permanecia comprometido em manter os grandes blocos de assentamentos da Cisjordânia que tornariam tal Estado não contíguo e, portanto, insustentável.
Tendo frustrado a perspectiva de uma solução de dois Estados, Israel também esmagou violentamente qualquer esperança de resistência palestina não violenta. Em março de 2018, dezenas de milhares de palestinos lançaram a Grande Marcha de Retorno, uma campanha para romper o cerco de Gaza. “Gaza é um gueto e o que está acontecendo… é uma revolta do gueto”, escreveu o veterano jornalista israelense Gideon Levy. Israel respondeu ao levante do gueto matando a tiros pelo menos 214 palestinos, incluindo 46 crianças, e ferindo mais de 36.000. Especialistas ocidentais que imploraram aos palestinos que assumissem a não-violência gandhiana ficaram em silêncio retumbante.
O governo de Netanyahu, por sua vez, voltou a uma política de longa data de apoiar o governo do Hamas, reconhecendo que o isolamento global e as divisões internas do grupo poderiam ser explorados para minar a possibilidade do Estado palestino que alguns líderes do Hamas alegaram aceitar. “Qualquer um que queira impedir o estabelecimento de um Estado palestino tem que apoiar o reforço do Hamas e transferir dinheiro para o Hamas”, explicou Netanyahu aos membros do Partido Likud em março de 2019. “Isso faz parte da nossa estratégia – isolar os palestinos em Gaza dos palestinos na Cisjordânia.”
Tendo aprofundado com sucesso o isolamento palestino, o governo de Netanyahu intensificou a opressão. A política israelense orientadora, declarou o governo de Netanyahu em dezembro de 2022, é que “o povo judeu tem um direito exclusivo e inalienável a todas as partes da Terra de Israel”. Isso incluiu Gaza, explicou a ministra do Gabinete, Orit Strock, em março deste ano. “Acredito que, no final do dia, o pecado da retirada [de Gaza] será revertido”, disse Strock. “Infelizmente, um retorno à Faixa de Gaza envolverá muitas vítimas… Mas, em última análise, faz parte da Terra de Israel, e chegará o dia em que voltaremos a ela.”
Tareq Bacouni, ex-analista sênior do International Crisis Group, resume como o governo supremacista de Netanyahu pisoteou recentemente os direitos inalienáveis dos palestinos:
Sob o governo mais direitista de sua história, Israel realizou invasões em larga escala de campos de refugiados palestinos e cidades na Cisjordânia, matando e ferindo dezenas de pessoas. Combatentes israelenses armados invadiram as ruas e casas palestinas quase todas as noites, muitas vezes tirando crianças de suas camas no meio da noite para serem levadas para detenção administrativa – atos de terror que em grande parte não foram noticiados pela imprensa ocidental.
O Estado acelerou as expulsões de palestinos de suas casas em Jerusalém e na Cisjordânia e expandiu a construção de assentamentos ilegais. Os colonos têm realizado assaltos semanais a aldeias palestinas, atacando e, em alguns casos, matando palestinos, incendiando as suas casas e destruindo as suas propriedades, muitas vezes sob a proteção de soldados israelitas. A polícia secreta doméstica facilitou e fomentou a violência contra cidadãos palestinos. Altos membros do governo de Israel e extremistas judeus messiânicos têm sido cada vez mais agressivos em suas provocações dentro e ao redor do complexo da Mesquita do Santuário Nobre, em Jerusalém Oriental ocupada. Nas semanas que antecederam a ofensiva do Hamas, o Estado reforçou o bloqueio a Gaza, restringindo ainda mais o movimento de entrada e saída.
Tendo sempre escolhido a ocupação e a supremacia em vez da paz e da segurança, Israel optou agora por devastar, deslocar e assassinar ainda mais os palestinos ocupados em retaliação contra aqueles que revidaram.
Zaha Hassan e Daniel Levy, ex-assessores de seus respectivos governos palestino e israelense, oferecem três pontos de acordo que poderiam ajudar a acabar com a crise atual:
Primeiro, o ataque militante a civis israelenses foi inconcebível, desumano e violou o direito internacional. Em segundo lugar, a punição coletiva de Israel contra civis palestinos e suas ações em Gaza são inconcebíveis, desumanas e uma violação do direito internacional. E, terceiro, é preciso abordar o contexto de ocupação e apartheid em que isso está se desenrolando, se quisermos manter a integridade e sermos capazes de traçar uma estratégia para o futuro, na qual palestinos e israelenses possam viver em liberdade e segurança. Se pudermos manter essas três verdades, será possível evitar mais baixas, garantir a libertação de prisioneiros e recuar do precipício.
Hassan e Levy condicionam sua orientação ao princípio de que “se aceita a humanidade e a igualdade de todas as pessoas sem discriminação ou distinção”. Israel rejeitou explicitamente esse princípio desde a sua fundação. E com o apoio de Washington, a determinação de Israel em impor a desapropriação e subjugação dos palestinos está produzindo uma nova campanha de limpeza étnica diante de nossos olhos.
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Para leitores interessados em mais informações, recomendo o livro de Norman Finkelstein “Gaza: An Inquest Into Its Martyrdom” [NT: traducao livre do título: Gaza: Um Inquérito sobre seu Martírio], juntamente com todo o seu trabalho sobre Israel-Palestina.
Fonte: https://www.aaronmate.net/p/the-roots-of-israels-ethnic-cleansing
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