Raro caso de lucidez e honestidade no The Guardian em 2014: “Na Ucrânia, os EUA estão nos arrastando para uma guerra com a Rússia”

John Pilger – 13 de maio de 2014

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Este foi um dos últimos artigos de John Pilger, renomado jornalista e documentarista australiano, no The Guardian, antes de ter sido demitido por escrever os fatos claramente como aconteciam e elaborar uma análise sem vieses, diferentemente do que o jornal britânico, hoje um tabloide, endossava – nota da tradutora.

US Meal Ready to Eat pack in Ukraine
Um ativista pró-Rússia com uma cápsula de projétil e um pacote de refeição fabricado nos EUA que caiu de um APC do exército ucraniano em um ataque a um bloqueio de estrada em 3 de maio em Andreevka, Ucrânia. Fotografia: Scott Olson/Getty
   "O papel de Washington na Ucrânia e seu apoio aos neonazistas do regime têm enormes implicações para o resto do mundo "

John Pilger – Terça-feira, 13 de maio de 2014

Por que toleramos a ameaça de outra guerra mundial em nosso nome? Por que permitimos mentiras que justifiquem esse risco? A escala de nossa doutrinação, escreveu Harold Pinter, é um “ato de hipnose brilhante, até espirituoso, altamente bem-sucedido”, como se a verdade “nunca tivesse acontecido mesmo enquanto estava acontecendo”.

Todos os anos o historiador americano William Blum publica seu “resumo atualizado do histórico da política externa dos EUA” que mostra que, desde 1945, os EUA tentaram derrubar mais de 50 governos, muitos deles democraticamente eleitos; interferiram severamente nas eleições em 30 países; bombardearam as populações civis de 30 países; usaram armas químicas e biológicas; e tentaram assassinar líderes estrangeiros.

Em muitos casos, a Grã-Bretanha foi colaboradora. O grau de sofrimento humano, sem falar da criminalidade, é pouco reconhecido no Ocidente, apesar da presença das comunicações mais avançadas do mundo e do jornalismo nominalmente mais livre. Que as vítimas mais numerosas do terrorismo – “nosso” terrorismo – sejam muçulmanos, é indizível. Esse jihadismo extremo, que levou ao 11 de setembro, foi nutrido como arma da política anglo-americana (Operação Ciclone no Afeganistão) e suprimido. Em abril, o Departamento de Estado dos EUA observou que, após a campanha da OTAN em 2011, “a Líbia se tornou um refúgio terrorista“.

O nome de “nosso” inimigo mudou ao longo dos anos, de comunismo para islamismo, mas geralmente é qualquer sociedade independente do poder ocidental e ocupando território estrategicamente útil ou rico em recursos, ou meramente oferecendo uma alternativa à dominação dos EUA. Os líderes dessas nações obstrutivas geralmente são empurrados violentamente para o ostracismo, como os democratas Muhammad Mossedeq no Irã, Arbenz na Guatemala e Salvador Allende no Chile, ou são assassinados como Patrice Lumumba na República Democrática do Congo. Todos estão sujeitos a uma campanha de difamação da mídia ocidental – pense em Fidel Castro, Hugo Chávez, agora Vladimir Putin.

O papel de Washington na Ucrânia é diferente apenas em suas implicações para o resto de nós. Pela primeira vez desde os anos Reagan, os EUA ameaçam levar o mundo à guerra. Com a Europa Oriental e os Balcãs agora como postos militares avançados da OTAN, o último “estado tampão” na fronteira com a Rússia – a Ucrânia – está a ser dilacerado pelas forças fascistas desencadeadas pelos EUA e pela UE. Nós, no ocidente, estamos agora apoiando neonazistas em um país onde nazistas ucranianos apoiaram Hitler.

Tendo planejado o golpe em fevereiro contra o governo democraticamente eleito em Kiev, a tomada planejada de Washington da histórica e legítima base naval russa de águas quentes na Crimeia fracassou. Os russos se defenderam, como fizeram contra todas as ameaças e invasões do Oeste por quase um século.

Mas o cerco militar da OTAN acelerou-se, juntamente com os ataques orquestrados pelos EUA contra russos étnicos na Ucrânia. Se Putin puder ser provocado a vir em seu auxílio, seu papel pré-ordenado de “pária” justificará uma guerra de guerrilha comandada pela OTAN que provavelmente se espalhará pela própria Rússia.

Em vez disso, Putin confundiu o partido da guerra [norte-americano] ao buscar um acordo com Washington e a UE, ao retirar as tropas russas da fronteira ucraniana e instando russos étnicos no leste da Ucrânia a abandonarem o provocativo referendo do fim de semana. Essas pessoas de língua russa e bilíngees – um terço da população da Ucrânia – há muito buscam uma federação democrática que reflita a diversidade étnica do país e seja autônoma de Kiev e independente de Moscou. A maioria não são “separatistas” nem “rebeldes”, como a mídia ocidental os chama, mas cidadãos que querem viver em segurança em sua terra natal.

Assim como as ruínas do Iraque e do Afeganistão, a Ucrânia foi transformada em um parque temático da CIA – administrado pessoalmente pelo diretor da CIA John Brennan em Kiev, com dezenas de “unidades especiais” da CIA e do FBI montando uma “estrutura de segurança” que supervisiona os selvagens ataques contra aqueles que se opuseram ao golpe de fevereiro. Assista aos vídeos, leia os relatos de testemunhas oculares do massacre em Odessa este mês. Bandidos fascistas queimaram a sede do sindicato, matando 41 pessoas presas dentro. Assista a polícia imóvel, em espera.

Um médico descreveu a tentativa de resgatar pessoas, “mas fui parado por radicais nazistas pró-ucranianos. Um deles me empurrou rudemente, prometendo que em breve eu e outros judeus de Odessa encontraríamos o mesmo destino. O que ocorreu ontem não ocorreu nem mesmo durante a ocupação fascista na minha cidade na segunda guerra mundial. Eu me pergunto, por que o mundo inteiro está se calando?” [ver nota de rodapé]

Ucranianos de língua russa estão lutando pela sobrevivência. Quando Putin anunciou a retirada das tropas russas da fronteira, o secretário de Defesa da junta de Kiev, Andriy Parubiy – membro fundador do partido fascista Svoboda – gabou-se de que os ataques aos “insurgentes” continuariam. No estilo orwelliano, a propaganda no ocidente inverteu isso para Moscou ” tentando orquestrar conflito e provocação“, segundo William Hague. Seu cinismo é acompanhado pelas grotescas felicitações de Obama à junta golpista por sua “notável contenção” após o massacre de Odessa. A junta, diz Obama, está “devidamente eleita”. Como Henry Kissinger disse uma vez: “Não é uma questão do que é verdade que conta, mas o que é percebido como verdade.”

Na mídia norte-americana, a atrocidade de Odessa foi considerada “obscura” e uma “tragédia” na qual “nacionalistas” (neo-nazistas) atacaram “separatistas” (pessoas coletando assinaturas para um referendo sobre uma Ucrânia federal). O Wall Street Journal de Rupert Murdoch condenou as vítimas – “Incêndio mortal na Ucrânia provavelmente desencadeado por rebeldes, diz o governo”. A propaganda na Alemanha tem sido pura guerra fria, com o Frankfurter Allgemeine Zeitung alertando seus leitores sobre a “guerra não declarada” da Rússia. Para os alemães, é uma ironia pungente que Putin seja o único líder a condenar a ascensão do fascismo na Europa do século XXI.

Um truísmo popular é que “o mundo mudou” após o 11 de setembro. Mas o quê mudou? De acordo com o grande delator Daniel Ellsberg, um golpe silencioso ocorreu em Washington e o militarismo desenfreado agora impera. O Pentágono atualmente executa “operações especiais” – guerras secretas – em 124 países. Em casa, a pobreza crescente e a perda da liberdade são o corolário histórico de um Estado de guerra perpétuo. Adicione o risco de uma guerra nuclear e a pergunta é: por que toleramos isso?

www.johnpilger.com

A seguinte nota de rodapé foi anexada em 16 de maio de 2014: A citação de um médico que diz que foi “parado por radicais nazistas pró-ucranianos” foi de uma conta em uma página do Facebook que foi posteriormente removida.


John Pilger: Documentarista, dramaturgo, repórter intestigativo e correspondente de guerra australiano. Escreveu em diversos veículos da mídia corporativa: The Guardian, The Independent, The New York Times, The Los Angeles Times, The Age: Melbourne, The Sydney Morning Herald. Contribuiu também para a Al Jazeera, Russia Today, BBC e ABC Television. Recebeu um Emmy e um BAFTA por seus documentários.

Em abril de 2015, Pilger foi demitido do The Guardian por não aceitar ter seus artigos adulterados pela linha editorial do veículo de imprensa. Para maiores informações, acesse este artigo, de 2018 – nota da tradutora.

Fonte: https://www.theguardian.com/commentisfree/2014/may/13/ukraine-us-war-russia-john-pilger


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